Vladimir Putin está no poder na Rússia há pouco mais de duas décadas. Durante este período, os caminhos da política doméstica e externa da Rússia têm sido objeto de controvérsia. Tais debates ganharam novo impulso com a recente aprovação de emendas constitucionais que permitem a Putin permanecer presidente até 2036. Para falar sobre estas e outras questões, os membros do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP) entrevistaram o historiador especialista em Rússia Angelo Segrillo, professor livre docente do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), na sétima edição do programa Terra em Transe.
Seja como presidente, seja como primeiro-ministro, Vladimir Putin está no poder na Rússia desde 1999. Graças a emendas constitucionais aprovadas recentemente no país, que permitem a Putin mais duas candidaturas à presidência, este longo período pode se estender ainda mais, chegando até 2036.
No poder, Putin promoveu a centralização político-administrativa da Rússia e a condução de uma política externa assertiva. Para diversos atores políticos e observadores, esta trajetória ocorreu sob tendências autoritárias no plano interno e agressivas no campo externo. Por outro lado, há visões que enxergam pragmatismo, racionalidade, legitimidade e resultados positivos em políticas adotadas pelo governo Putin diante dos desafios que apareceram para a Rússia desde que o atual presidente chegou ao poder.
Para falar sobre estas e outras questões, os membros do GECI Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, e Gustavo Oliveira, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), entrevistaram o historiador especialista em Rússia Angelo Segrillo na sétima edição do Terra em Transe. Exibido no dia 08/07, o programa foi apresentado por Bárbara Blum, pesquisadora do GECI e discente do Mestrado Profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais da PUC-SP.
A entrevista teve início com um balanço geral sobre as razões da popularidade e da longevidade de Putin no poder. Para Segrillo, este fenômeno não é artificial. Segundo o historiador, Putin possui uma popularidade autêntica, que se explica, em grande medida, pela experiência histórica da Rússia pós-soviética. Após a traumática experiência dos anos 1990 – época de aguda deterioração econômica na transição para o capitalismo -, Putin esteve à frente do país em um momento de forte melhoria econômica nos anos 2000 impulsionada pela alta dos preços de petróleo (um dos principais produtos de exportação da Rússia). “Putin foi muito associado a essa melhora econômica”, afirmou Segrillo.
Esta mesma comparação econômica também explica, segundo Segrillo, parte da fraqueza relativa de setores da oposição russa: em virtude de sua associação com a crise dos anos 1990 – época em que esteve no poder sob o ex-presidente Boris Yeltsin -, a oposição liberal russa, por exemplo, tem sua imagem desgastada na sociedade russa.
A este fator econômico, o especialista soma um elemento político com raízes na experiência medieval russa. Especificamente, o contraste entre o declínio de épocas em que havia descentralização política com a ascensão em períodos de maior centralização fez difundir-se na sociedade russa a crença nas virtudes de um Estado forte e centralizado. “Os russos entendem – ao contrário do Ocidente, onde o liberalismo é muito forte, porque houve outras condições – que é geralmente com um Estado forte e centralizado que a Rússia vive melhor”, resumiu Segrillo.
Este estereótipo, ressalta o historiador, foi reforçado no período pós-soviético. Os traumáticos anos 1990 foram uma época de maior descentralização política, e a Rússia chegou a se deparar com a possibilidade de desintegração territorial. Uma vez no poder, Putin, na contramão destas tendências, promoveu a recentralização do Estado. Apesar de enxergado por observadores ocidentais como um processo autoritário, esta recentralização, conforme Segrillo, trouxe mais tranquilidade para a sociedade russa.
Temas de política externa também foram abordados no programa. Nesse sentido, Segrillo posiciona Putin como um ocidentalista moderado no espectro de correntes históricas sobre a identidade da Rússia, que se divide entre ocidentalistas, eslavófilos e eurasianistas. Questionado sobre a visão de Putin acerca do papel da Rússia na região da ex-URSS, Segrillo disse acreditar que Putin favorece algum tipo de união entre as ex-repúblicas soviéticas. O historiador alertou, contudo, que isto não significa a vontade de construir um império direto, e sim de estabelecer uma espécie de hegemonia regional.
No que tange ao posicionamento da Rússia entre a política das grandes potências e as articulações com o grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e o chamado Sul Global, Segrillo acredita que a navegação entre os dois eixos não é uma contradição para Putin. Apesar da recuperação dos anos 2000 e da manutenção de elevadas capacidades militares, o poderio da Rússia, ressaltou Segrillo, não se equipara ao da URSS. Desse modo, segundo Segrillo, é interessante para a Rússia, com vistas a ser uma grande potência, “se associar a outros países para tentar diminuir a hegemonia norte-americana”. Nesse sentido, o BRICS seria, na ótica de Putin, uma espécie de alavanca para a Rússia em seu posicionamento com respeito aos EUA. Nesse sentido, apesar de certos setores da sociedade brasileira, particularmente na esquerda, projetarem em Putin uma herança soviética e o alinhamento com pautas de esquerda, Segrillo considera que o presidente russo, na atualidade, aproxima-se mais de uma orientação de direita.
Em seu trecho final, a entrevista dirigiu-se a uma questão de maior profundidade histórica: a dissolução da URSS e as percepções sobre este fenômeno na atualidade na Rússia. Recente pesquisa de opinião pública no país mostrou que quase dois terços dos russos lamentam o colapso da URSS. Para Segrillo, isto se explica primariamente pela nostalgia com relação à estabilidade e ao padrão de vida alcançados na fase final de existência da URSS - particularmente na era Leonid Brezhnev (1964-1982). Apesar da diminuição das taxas de crescimento econômico, o período Brezhnev, ressaltou Segrillo, foi de elevação do nível de vida da sociedade, havendo acesso facilitado à moradia, ao emprego, à educação e à saúde. Mesmo com a melhoria da situação econômica sob Putin, a perda desta estabilidade em um sistema capitalista, destacou Segrillo, ainda é sentida por muitos russos – principalmente os de gerações mais velhas.
No último bloco do programa, Vitor Sion, pesquisador do GECI e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), trouxe referências de estudo sobre a Rússia. O entrevistado Angelo Segrillo, por exemplo, é autor do livro “De Gorbachev a Putin: a saga da Rússia do socialismo ao capitalismo”, em que aborda a história da Rússia desde a fase final da URSS até a época Putin. O livro está disponível no site do Laboratório de Estudos da Ásia (LEA) do Departamento de História da USP, coordenado por Segrillo.
Outra obra indicada foi o livro “The Putin Paradox”, do cientista político britânico Richard Sakwa. Neste livro, Sakwa, que possui vasta obra sobre a Rússia, analisa a era Putin na Rússia em diversas dimensões, como economia, política interna e política externa. A terceira indicação do programa foi o livro “Todos os homens do Kremlin: os bastidores do poder na Rússia de Vladimir Putin”, do jornalista russo Mikhail Zygar. Neste livro, Zygar aborda os principais acontecimentos políticos da Rússia a partir do ângulo da elite próxima a Putin. A equipe do Terra em Transe indica, por fim, o livro do jornalista estadunidense Steven Lee Myers: "O novo czar: ascensão e reinado de Vladimir Putin". Neste livro, Myers traz um retrato biográfico de Putin e de sua trajetória política, bem como da política russa na era Putin.
O Terra em Transe é exibido às quartas-feiras, às 18h30, com transmissão pela TV PUC (YouTube), o Facebook do GECI e o Canal Universitário de São Paulo (CNU). O programa com Angelo Segrillo, bem como as edições anteriores, podem ser assistidos também pela TV PUC no YouTube. A próxima edição do Terra em Transe, no dia 15/07, discutirá as consequências da pandemia da Covid-19 para a alimentação global. O convidado entrevistado será Thiago Lima, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Cooperação Internacional, professor do Departamento de Relações Internacionais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).