O Brasil tem um amplo histórico de violações e conflitos ecológicos. Nos últimos anos, este problema tem sido ilustrado por tendências e acontecimentos como assassinatos de ativistas ambientalistas, diversos desastres ambientais, ataques aos povos indígenas e o aparelhamento de instituições responsáveis por temas ambientais no país. Estes temas foram discutidos na quinta edição do programa Terra em Transe, na qual membros do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP) entrevistaram o pesquisador e ecologista político Felipe Milanez, professor de Humanidades da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e colunista da revista Carta Capital.
Desmatamentos na Amazônia, colapsos de barragens e manchas de petróleo. Acontecimentos deste tipo têm marcado a realidade brasileira nos últimos, atraindo atenção midiática internacional. O país também está entre os líderes mundiais em assassinatos de ambientalistas. Já os povos indígenas vêm sendo alvo de ataques verbais e invasões, além de serem afetados pelo alastramento da Covid-19. Durante o governo Bolsonaro, observam-se, ainda, ataques a Organizações Não Governamentais (ONGs), o enfraquecimento de iniciativas ambientais internacionais e tentativas de aparelhamento e esvaziamento de instituições como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).
Pode-se afirmar que acontecimentos e tendências deste tipo são expressão contemporânea do longo histórico de violações e conflitos ecológicos no Brasil. Para falar sobre este assunto, Rodrigo Amaral e Isabella Lamas, pesquisadores do GECI e professores de Relações Internacionais da PUC-SP, entrevistaram o pesquisador e militante em ecologia política Felipe Milanez na quinta edição do Terra em Transe. Exibido no dia 24/06, o programa foi apresentado por Isadora Souza, pesquisadora do GECI e discente do Mestrado Profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais da PUC-SP.
Na entrevista, Milanez falou sobre a importância do entendimento dos conflitos ecológicos e da ecologia política. O entrevistado ressaltou que os conflitos são uma realidade social. Eles sinalizam a insurgência de grupos oprimidos contra a injustiça e em defesa de seus meios de vida e de seus territórios. A partir das realidades empíricas associadas a estes processos, a ecologia política, ligada à atuação de ativistas como Paulinho Paiakan, Chico Mendes e Ailton Krenak, cresceu como uma abordagem que questiona a separação entre sociedade e natureza. Milanez ressalta, ainda, que a ecologia política promove o diálogo de saberes e se apresenta como uma perspectiva para o entendimento e superação da crise do capitalismo e fenômenos a ele associados, como a emergência climática.
Os problemas históricos enfrentados pelas populações indígenas - inclusive na atualidade - a partir da expansão da acumulação capitalista no território brasileiro fornecem, como indicou Milanez, um exemplo da importância da perspectiva da ecologia política - particularmente na sua vertente decolonial. “Uma vantagem analítica da ecologia política para a gente trabalhar sobre essas questões empíricas”, disse Milanez, é que ela permite “cruzar a análise econômica junto com uma análise ecológica e uma análise sociológica e antropológica, também, dessas populações que estão sendo afetadas”.
Milanez ilustrou este pensamento com uma análise do contexto da pandemia no Brasil. A inação do governo federal brasileiro em prol dos povos indígenas, acoplada à promoção de interesses econômicos extrativistas e de projetos de acumulação territorial, constitui, na visão do entrevistado, um tipo de expressão da violenta conquista colonial que historicamente ditou o desenvolvimento do Brasil. Nesse sentido, as resistências indígenas a este processo a partir do conhecimento e da interação com a natureza ilustram exatamente a importância, para aqueles povos, da ecologia para a defesa da vida e de suas comunidades. Ainda sobre este contexto de pandemia, Milanez também acredita que os efeitos mais agudos da Covid-19 sobre negros e indígenas no Brasil põem em evidência o racismo e o genocídio sobre estas populações racialmente classificadas e inferiorizadas.
A saída desses problemas, para Milanez, é também uma tarefa complexa. “Não há como sair dessa situação sem uma transformação profunda do sistema econômico – até conseguir sair do capitalismo, que pelo menos se transforme o capitalismo”, disse o entrevistado. A descolonização da ideia do Estado brasileiro e a superação das relações de opressão racial constituem, também, outra dimensão desta luta. “Não tem condições de a gente pensar num país mais justo se não for um país, um Estado plurinacional”, disse Milanez, que complementou: “não há como imaginar uma distribuição de justiça de terra tendo como único modelo o desenvolvimento econômico baseado na exploração dos recursos naturais e na despossessão das pessoas”.
No último bloco do programa, Isabela Agostinelli, pesquisadora do GECI e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), falou sobre materiais e entidades que dialogam com a questão dos conflitos ecológicos. Nesse sentido, há, por exemplo, a mencionada coluna de Felipe Milanez na Carta Capital. Neste espaço, Milanez escreve sobre violências e conflitos ecológicos, a exemplo dos problemas relacionados à demarcação e às invasões de terras indígenas. O entrevistado do Terra em Transe #5 também contribuiu como roteirista no primeiro episódio da série Guerras do Brasil (disponível na plataforma Netflix), na qual o histórico colonial do Brasil e seus desdobramentos até a atualidade são abordados desde uma perspectiva decolonial.
Entre as entidades, o Environmental Justice Atlas, projeto colaborativo entre ONGs, ativistas e acadêmicos vinculado ao Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Autônoma de Barcelona, mapeia conflitos socioambientais pelo mundo e atua como recurso de advocacy. Já a Global Witness é uma organização voltada para a defesa dos direitos humanos e ambientais, bem como para o combate à corrupção em nível mundial. A Global Witness chama atenção para conexões intrínsecas, mas por vezes invisibilizadas, entre conflitos, corrupção e recursos naturais. A Amazon Watch, por sua vez, combate a destruição da Amazônia apoiando e se articulando a povos indígenas locais. Nesse sentido, a organização promove o uso do conhecimento indígena para a solução dos conflitos na região.
No Brasil, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) procura dar visibilidade à situação dos direitos dos indígenas no país e fazer as demandas dessas populações chegarem ao Estado brasileiro. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), por sua vez, concentra-se no monitoramento da questão agrária e seus conflitos, buscando principalmente apoiar e defender os trabalhadores do campo. Por fim, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) atua em defesa da sobrevivência e do direito à demarcação de terras dos quilombolas.
O Terra em Transe é exibido às quartas-feiras, às 18h30, com transmissão pela TV PUC (YouTube), o Facebook do GECI e o Canal Universitário de São Paulo (CNU). O programa com Felipe Milanez, bem como as edições anteriores, podem ser assistidos também pela TV PUC no YouTube. A próxima edição do Terra em Transe, no dia 01/07, discutirá o papel dos militares no Brasil com o cientista político João Roberto Martins Filho, professor titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).