Alvo de ataques de Jair Bolsonaro (Sem partido) desde quando o presidente ainda era um inexpressivo deputado federal, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) chega esvaziado em sua versão 2021 neste domingo (21) e entregue ao aparelhamento do Ministério da Educação, que vê o ensino como aparato de doutrinação ideológica.
Com cerca de 3,4 milhões de inscritos, o exame registra o menor número de estudantes desde 2005, um ano após o então ministro da Educação, Fernando Haddad (PT), incluir a prova como "vestibular" para bolsas de estudo em faculdades particulares pelo Programa Universidade Para Todos (ProUni), o que permitiu que muitos alunos de baixa renda pudessem cursar o ensino superior.
O esvaziamento da prova mostra que Bolsonaro vem cumprindo ano a ano a promessa de destruição do Enem.
Em pouco mais de quatro meses no cargo, o primeiro ministro da Educação, o colombiano Ricardo Vélez-Rodriguez iniciou o desmonte, que foi aprofundado pelo seu sucessor, Abraham Weintraub.
Alçado a cargo de direção no Banco Mundial, representando o governo brasileiro, após fugir do país ao ser investigado por participação na milícia digital que planejou ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Congresso, Weintraub trocou por quatro vezes o presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em 2019.
Na edição daquele ano, o Enem teve denúncias de favorecimento a uma gráfica contratada sem licitação, além de vazamento de questões e erro na correção de 6 mil candidatos.
Weintraub quis colocar fim ao Enem presencial
Em julho de 2019, Weintraub chegou a anunciar ao lado de Jair Bolsonaro que a partir de 2020 haveria um piloto do ENEM Digital com quatro edições por ano, que substituiria o exame em papel até 2026.
À época, Weintraub se reuniu com o Inep para pensar em uma divisão da prova em três etapas – uma a cada ano do Ensino Médio.
O “Enem seriado” seria incorporado Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) – que aplica provas a estudantes do 5º e 9º do ensino fundamental e do 3º do médio – e se combinaria com taxas de aprovação, repetência e abandono. Esse novo modelo seria paralelo ao Enem convencional, que seria aplicado apenas a pessoas já formadas no Ensino Médio ou que perderam uma das três provas.
Em 2020, Bolsonaro ainda editou uma Medida Provisória (MP-934) que desobrigou
Aparelhamento e doutrinação a utilização dos resultados individuais do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem 2020) para o Sistema de Seleção Unificado (SiSU) e do ProUni.
Com a medida, os estudantes puderam utilizar as notas das edições anteriores do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como forma de acesso ao ensino superior
Aparelhamento e doutrinação ideológica
As críticas de Jair Bolsonaro ao Enem subiram de tom após o então deputado ser eleito, em 2018.
Com os filhos alinhados ao pensamento do guru Olavo de Carvalho, o presidente anunciou que faria interferências no conteúdo das provas.
"Essa prova do Enem, vão falar que eu estou implicando. Agora pelo amor de Deus. Esse tema da linguagem ‘particulada’, aquelas pessoas, o que isso tem a ver? Vai estimular a molecada a se interessar por isso agora. No ano que vem, pode ter certeza, não vai ter questão dessa forma. Nós vamos tomar conhecimento da prova antes”, disse em novembro de 2018.
A questão fazia referência ao Pajubá, linguagem de origem Iorubá que foi adotada por travestis como um "dialeto secreto".
Bolsonaro disse na ocasião que perguntas da prova que envolvem LGBTs não privilegiam, nas suas palavras, “questões realmente voltadas ao que interessa”. “Não vai ter isso daí, vai ter perguntas sobre geografia, dissertação de história”, afirmou.
Ditadura bolsonarista no Inep
Com o tempo, Bolsonaro montou uma comissão para atuar como uma espécie de Serviço Nacional de Informação (SNI), órgão de repressão da Ditadura responsável pela censura.
A comissão já teria barrado diversas questões relacionadas à Ditadura Militar e ao Golpe de 64 - que Bolsonaro quer que seja chamado de Revolução -, além de censusar perguntas que trazem em seu contexto a personagem Mafalda, do cartunista argentino Quino, e textos e músicas de Chico Buarque, que também foi alvo dos militares.
Em uma questão de 2019, que de acordo com a comissão iria gerar uma “polêmica desnecessária”, Mafalda se dirige à mãe: “sabe, mamãe, eu quero ir para o jardim de infância e estudar bastante. Assim, mais tarde não vou ser uma mulher frustrada e medíocre como você!” A mãe fica desolada e Mafalda sai andando, feliz. “É tão bom confortar a mãe da gente!”
Carimbos de sim e não
De acordo com reportagem de Luigi Mazza, na revista Piauí, “o grupo, composto por um procurador de Justiça, um diretor do Inep e um ex-aluno de Ricardo Vélez Rodríguez, então ministro da Educação, se reuniu ao longo de dez dias em março de 2019 e usou carimbos de ‘sim’ e ‘não’ para aprovar ou rejeitar questões”.
A reportagem prossegue “ao final dos trabalhos, eles excluíram 66 questões da prova, sem consultar a equipe técnica do Inep, que já havia aprovado todos aqueles itens. Numa planilha de Excel, os censores apresentaram justificativas sucintas – e mal explicadas – para suas escolhas”.
A Mafalda, no entanto, não foi a única censurada pela comissão. A cantora Madonna também foi, na mesma prova de 2019. Uma questão usava a letra da música “Papa Don’t Preach” para falar de gravidez na adolescência. Na música, Madonna interpreta uma adolescente que confessa para seu pai que está grávida.
Outras questões foram censuradas por fazerem referência à ditadura militar. Uma delas citava o poema “Maio 1964”, escrito por Ferreira Gullar; outra cortou uma canção de Chico Buarque que não se sabe qual foi, além de um poema de Paulo Leminski que tratava do mesmo assunto.