EXCLUSIVO

Sem especificação: os gastos públicos mal explicados (e aprovados) de Ricardo Nunes

A reportagem identificou cerca de R$ 1,3 milhão suspeito de ter sido utilizado de forma irregular pela campanha do prefeito de São Paulo; especialista aponta possibilidade de perda de mandato, mas nenhuma denúncia foi apresentada

O prefeito Ricardo Nunes.Créditos: Marina Uezima/Brazil Photo Press/Folhapress)
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Passados poucos meses das eleições municipais de 2024 e alguns dias das diplomações dos eleitos, a aplicação de recursos públicos pelas campanhas eleitorais ainda é alvo de controvérsias e, mesmo contas de campanha aprovadas, aparentemente, não obedeceram os padrões legais de transparência. Em São Paulo, a reportagem da Fórum identificou pelo menos R$ 1,3 milhão utilizado pela campanha do prefeito reeleito Ricardo Nunes (MDB) para a contratação de funcionários com funções genéricas e serviços não especificados que levantam suspeitas de irregularidades

Em todo o país foram destinados R$ 4,96 bilhões em dinheiro público para as campanhas que disputaram as eleições municipais por meio do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). O fundo é previsto nos artigos 16-C e 16-D da Lei nº 9.504/1997 e regulado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por meio de sua Resolução 23.605/2019. 

A fiscalização das campanhas é feita pela Justiça Eleitoral por meio da Prestação de Contas Eleitorais (PCE) que candidatos, chapas e partidos têm obrigação de fornecer após o pleito. Dentre os 29 partidos que receberam recursos, o PL de Jair Bolsonaro esteve no topo da lista com R$ 886 milhões, seguido pela Federação PT-PCdoB-PV com R$ 721 milhões. A lista segue com União Brasil (R$ 536 milhões), PSD (R$ 420 milhões), PP (R$ 417 milhões) e o MDB de Ricardo Nunes com R$ 404 milhões.

Do montante recebido pelo MDB, a campanha de Ricardo Nunes ficou com R$ 39 milhões, dos quais cerca de R$ 740 mil correspondem a gastos mal explicados na já aprovada prestação de contas da campanha. Desse montante, pouco mais de R$ 200 mil correspondem a contratação de pessoas físicas, R$ 401 mil dizem respeito a contratação de uma cooperativa para prestação de serviços terceirizados não especificados e R$ 140 mil se referem a fretamento aéreo também não especificado.

A reportagem teve acesso a documentos que comprovam as contas suspeitas. No caso de contratação de pessoal, alguns casos puderam ser verificados. Dois homens, R.C.S. e D E.F. [a reportagem optou por preservar suas identidades], por exemplo, foram contratados pela campanha de Ricardo Nunes por R$ 34 mil cada um. Seus cargos são apenas especificados como “Coordenador IV”, sem maiores detalhes da função e das tarefas que deveriam exercer. Do total de cada contrato, cerca de R$ 20 mil foram pagos com recursos oriundos do FEFC. 

O padrão se repete com outros cargos e contratados ao longo de 244 páginas da prestação de contas de Nunes. Outro exemplo é o de M.M.F., contratado por R$ 22 mil como “Gestor de Área II - 1o Turno”. Ele também não tem especificadas as suas funções e R$ 8 mil referentes ao contrato foram pagos com recursos do FEFC. S.L.R., contratada para o mesmo cargo , assinou um contrato de apenas R$ 8 mil – valor integralmente oriundo do FEFC. Fica a dúvida, nesse caso, para além da falta de especificação das funções, a respeito de uma possível falta de isonomia salarial no interior da campanha. 

A reportagem teve acesso, ainda, a cópia de um contrato assinado por um outro homem para o cargo de “Auxiliar II”, com salário de R$ 3 mil mensais. No texto tampouco são especificadas as funções do contratado.

A essa conta somam-se R$ 401 mil pagos à Cooper Poli – Cooperativa de Trabalho da Infraestrutura Empresarial, responsável pelos terceirizados da campanha. No maior contrato com a empresa, de pouco mais de R$ 161 mil, a descrição se limita a apontar “serviços dd cooperados” (SIC). Em outro contrato, de R$ 58 mil, está dito que o montante se destina ao “custeio de refeição dos cooperados” e ao pagamento de “taxas administrativas”. Sem maiores explicações.

Além disso, há ainda uma despesa de R$ 140 mil com fretamento aéreo, pago à empresa Service Premium Air no dia 30 de agosto de 2024, sem discriminação dos serviços realizados ou justificativa para o valor.

Suspeitas de irregularidades

Para o especialista em direito eleitoral Wallyson Soares, a falta de transparência nesse gasto, assim como nas contratações sem especificação das funções, compromete a fiscalização e a transparência no uso dos recursos públicos. A prática levanta suspeitas de seu mal uso.

Em entrevista à Fórum, o profissional explicou que essas irregularidades violam os artigos 35 e 60 da Resolução 23.607/2019 do TSE, que determina que as despesas com pessoal devem ser detalhadas com a especificação das atividades executadas e da justificativa do preço. Também devem conter descrição detalhada da execução dos serviços, para que tais gastos possam ser devidamente fiscalizados.  

“Todas as despesas devem obedecer rigorosamente a legislação, principalmente as despesas pagas com recursos do FEFC. Os objetos dos contratos não podem ser genéricos, deve-se discriminar qual o tipo de serviço está sendo prestado, local, quantidade de horas, a comprovação do serviço e a compatibilidade do valor com o preço de mercado. Tudo para que haja transparência e a sociedade possa fiscalizar a aplicação dos recursos públicos, sob pena de devolução dos recursos e até mesmo a cassação do mandato”, afirma Soares.

Há, ainda, um outro caso, envolvendo a BT Locadora de Veículos, que já foi divulgado para a imprensa. A empresa localizada em São Paulo, com sede numa residência e constituída em abril de 2024 recebeu R$ 637 mil da campanha de Nunes pela locação de uma frota considerada incompatível com sua capacidade de operação. A revelação foi feita por reportagem do The Intercept Brasil publicada em 27 de setembro por Laís Martins, que visitou o endereço da empresa.

Para se ter uma ideia, Carlos Alberto de Oliveira, o único sócio da BT Locadora de Veículos, não vivia naquele endereço residencial “há muitos muitos”. Ele aparentemente teve uma ascensão meteórica: em 2020 e 2021 recebia auxílio emergencial do governo para Covid-19 e, três anos depois, fundava sua locadora de carros com capital social de R$ 100 mil e já tinha o prefeito de São Paulo como cliente. Denúncias sobre o caso foram protocoladas na Justiça Eleitoral, exigindo a documentação completa dos contratos e da prestação desses serviços. Uma dessas denúncias foi enviada ao Ministério Público de São Paulo pela vereadora paulistana Silvia Ferraro (Psol). 

“Nesse caso, o parágrafo 3º do art. 60 da Resolução 23.607/2019 determina que, na dúvida, a Justiça Eleitoral exigirá provas da efetiva prestação de serviços e uso real desses veículos, e, caso não haja a comprovação da execução dos serviços, poderá haver sanções, todas no sentido de devolução e até mesmo a perda do mandato”, explicou Wallyson Soares sobre a possibilidade de desfecho.

A reportagem enviou pedidos de esclarecimentos sobre cada um dos pontos elencados nesta matéria ao diretório municipal do MDB em São Paulo, responsável pela campanha eleitoral de Nunes. O partido se limitou a afirmar que as contas foram aprovadas e não respondeu às demais questões.

“As contratações de pessoas físicas e jurídicas durante a campanha eleitoral do candidato Ricardo Nunes foram realizadas seguindo a legislação e as resoluções eleitorais vigentes. Após o processo eleitoral, com a devida prestação de contas perante os órgãos competentes, houve a aprovação das contas sem ressalvas”, diz a íntegra da mensagem enviada à reportagem.

Para Wallyson Soares, de acordo com a Lei Eleitoral, se confirmadas essas irregularidades, seria possível abrir um processo de cassação do mandato de Nunes e de outros prefeitos e vereadores que tenham incorrido na mesma prática. O problema, lamentou o especialista, é que o prazo para tais denúncias se encerrou na última terça-feira (7).

“A lei eleitoral 9.504 em seu artigo 30-A e também no artigo 96 prevê que o Ministério Público Eleitoral e qualquer partido político ou coligação poderia ajuizar uma representação até o dia 7 de janeiro para apurar essas irregularidades, ainda que as contas tenham sido aprovadas. Caso os ilícitos sejam comprovados, o candidato eleito poderá ter o mandato cassado sendo determinado novas eleições pela Justiça Eleitoral”, explicou.

*Raphael Sanz é jornalista, escritor, fotógrafo e músico independente. Assine sua newsletter: https://substack.com/@raphaelsanz 

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