Nesta semana, um fato viralizou nas redes sociais: a bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) na Câmara Municipal de Porto Alegre escolheu como sua liderança a vereadora Natasha Ferreira, a primeira travesti a liderar a bancada petista gaúcha na história da legenda.
Em entrevista exclusiva à Fórum, Natasha Ferreira afirma que ter sido escolhida como líder da bancada "é uma expressão também de uma política acertada do partido, com que novas caras, novas figuras eleitas possam também ter a chance de liderar esses processos políticos do PT".
Sobre a fala do prefeito Sebastião Melo (MDB), em que a ditadura foi relativizada, Natasha Ferreira dispara: "Foi um prefeito acenando ao bolsonarismo e vestindo, literalmente, essa mesma farda, que é uma farda atrasada [...] Como líder do PT, com a nossa bancada, a gente anunciou que nós acionaremos o Procurador-Geral de Justiça do Estado para que fosse para cima do prefeito, por apologia à ditadura militar."
Na entrevista que você confere a seguir, Natasha Ferreira analisa os fatores que levaram a população de Porto Alegre a dar um novo mandato a Sebastião Melo, mesmo após a tragédia das enchentes em 2024, e também fala dos principais projetos de seu mandato, que acaba de começar.
Fórum - Como é receber a missão de liderar a bancada do PT na Câmara Municipal de Porto Alegre?
Natasha Ferreira: Pra mim, é uma honra. Eu tô com 36 anos e sou literalmente cria do PT, tanto de formação quanto também na militância. Eu conheci o PT aos 13 anos de idade, no movimento estudantil. Então, o PT, para mim, sempre foi um símbolo que, para além de um partido, vejo como companheiros e companheiras de família mesmo. A gente trilha o mesmo caminho, tem a mesma visão de mundo e compartilha visões muito próximas.
Acho que é uma expressão de uma política acertada do partido, que permite que novas caras e figuras eleitas possam liderar esses processos políticos. É um partido que tem uma correlação de forças gigante em nível federal. É o maior partido da esquerda na América Latina. Acho fundamental que, numa capital que já foi eleita a capital da democracia, do Fórum Social Mundial, do Orçamento Participativo — com uma história linda com a esquerda —, o PT seja o partido mais votado na Câmara. E agora temos uma travesti liderando o PT, com muita responsabilidade, consciência e construindo a unidade interna, que é essencial.
Fórum - O PT está passando por uma renovação?
Natasha Ferreira: Acho que esse processo de renovação... Vejo de forma diferente entre o PT e o PSOL: o PSOL tem uma facilidade maior para renovar quadros. Já o PT tem mais dificuldade, principalmente porque estamos na gestão há muitos anos.
Nossos melhores quadros estão há muito tempo como deputados, ministros, vereadores e gestores em prefeituras. Isso gera uma dificuldade, que é natural do regime político: construir gestão, mas também compreender a necessidade de renovação dentro do partido.
Chegou um momento em que o PT começou a entender a nova correlação das ruas, esses novos corpos que se apresentam. Inclusive, como a esquerda tem votado, as pessoas têm procurado falar de emprego e renda para pessoas LGBTs. A luta de classes também precisa de atualização.
Quando nos expressamos com uma bancada negra, com uma bancada LGBT e esses novos quadros, criamos uma correlação em que a sociedade vai dando o tom ao partido, e o partido também cria novas caras. Isso se reflete nas eleições. Por exemplo, eu, uma travesti que defende o governo do presidente Lula, falava sobre orçamento público, a precarização do mercado de trabalho e novas relações de trabalho, indo além do nicho LGBT.
Esse trabalho de renovação política tem dado muito certo, especialmente entre as mulheres.
Fórum - Durante a cerimônia de posse o prefeito Melo fez apologia à ditadura. Como você avalia essa cena?
Natasha Ferreira: A fala do prefeito Sebastião Melo nos chocou. A sessão de posse ocorreu de forma, digamos, normal. Temos essas expressões políticas hoje de aplausos e gritos, tanto do nosso campo quanto da extrema-direita.
Mas o problema foi a fala do prefeito. Durante a diplomação dos vereadores e vereadoras, ele teve um tom democrático. Porém, ontem [quarta-feira, 1º de janeiro], foi outro Melo: um prefeito acenando ao bolsonarismo e vestindo essa mesma farda atrasada. Ele usou o conceito de liberdade de expressão num sentido norte-americano, onde pode-se, por exemplo, fazer apologia ao nazismo. Disse que um parlamentar que defende a ditadura não pode ser processado. Discordo. Ele não só pode como deve ser processado.
Ontem mesmo, no plenário, como líder do PT e junto à nossa bancada, anunciamos que acionaríamos o Procurador-Geral de Justiça do Estado para tomar providências contra o prefeito por apologia à ditadura militar.
Fórum - Você usou uma expressão "de baixo nível". Isso tem sido uma marca das eleições recentes. Eu até separei essa pergunta aqui, Natasha, porque para nós aqui de São Paulo, a política do dia a dia de vocês não chega. Então eu queria que você falasse um pouco pra nós, como que um candidato que deixou a cidade embaixo da água, de tão baixo nível, recebeu uma segunda chance do eleitorado?
Natasha Ferreira: Acho que a gestão do Melo construiu, ao longo desses últimos quatro anos, o que eles chamam de "parcerização", que é, na prática, a privatização dos setores da saúde e educação pública. Hoje, quando você chega num posto de saúde, quem está lá é alguém de uma empresa terceirizada, que é amiga do prefeito. Na educação pública, quando você precisa de uma vaga na creche, quem consegue é outra terceirizada, também amiga do prefeito. Os tentáculos da gestão pública chegaram onde as pessoas mais precisam.
Antes das enchentes, a avaliação dele era muito alta. É importante lembrar que, no início do ano, havia pesquisas mostrando que uma candidatura de esquerda, como a de Maria do Rosário (PT-RS), tinha chances de vencer após as enchentes.
As enchentes geraram uma forte disputa de narrativa. O governo estadual e Sebastião Melo jogaram a culpa no governo federal, dizendo que não conseguia executar o orçamento prometido. Essa disputa de narrativa, mais uma vez, não conseguimos vencer nas redes. E, por óbvio, ele construiu essa imagem de "cara do chapéu de palha", indo até os locais alagados. Além disso, donativos como colchões, fogões, comida e roupas foram segurados para serem distribuídos durante o período eleitoral.
Boa parte da população das áreas mais afetadas pelas enchentes não voltou para casa e sequer votou. Foi um processo que, muitas vezes, a mídia não conseguiu cobrir. O que fizeram aqui foi criminoso.
Ele construiu essa imagem de "humilde", mas é um assistencialismo barato — e as pessoas precisam. Precisamos criar um movimento na cidade para debater o orçamento de forma estrutural, sem aceitar esse tipo de assistencialismo.
Fórum - Na eleição de 2020 e 2024 houve uma onda de eleição de candidaturas LGBT, porém o debate sumiu entre as candidaturas ao executivo. Houve um retrocesso empurrado pela extrema direita?
Natasha Ferreira: Algumas pessoas apostam em ondas. Em 2020 houve uma onda, e aqui em Porto Alegre se consolidou uma bancada de negros e negras. Tenho uma leve discordância. Acho que nos organizamos para ocupar espaço político. Em 2018, com a vitória do Bolsonaro, começamos a entender que esse espaço também era nosso. Estávamos anestesiados desde o golpe na presidenta Dilma [Rousseff], mas o movimento LGBT e as pessoas negras, socialmente falando, foram os que mais sofreram.
As mulheres começaram a entender que a disputa política se dava dentro dos partidos. A partir disso, começamos a nos bancar mais como movimentos sociais e a nos organizar para fora. Antes, queríamos elaborar uma sociedade que nos entendesse. Hoje, queremos pautar a sociedade e disputar outras relações de força.
Não considero 2020 uma onda. A bancada LGBT em Porto Alegre veio para ficar. Eu já tinha sido suplente de vereadora, fiz seis mil votos para deputada federal. Era um quadro em construção. O Giovani [Culau, PCdoB] e a Atena [Roveda, PSOL] também já vinham disputando. Isso é uma resposta para dentro das nossas organizações.
Após a derrota majoritária, com Maria do Rosário, houve um debate sobre identitarismo, termo que refuto. Não sou apenas uma travesti; sou uma travesti que paga aluguel, usa transporte público e vive as praças da cidade. Sou uma sujeita da vida pública real. Estamos consolidando uma frente, dialogando com setores diversos, como Uber e evangélicos, que não necessariamente dialogam com o movimento LGBT.
Fórum - Quais são as principais pautas do seu mandato que você pretende trabalhar?
Natasha Ferreira: Uma das principais, quem sabe a maior delas, está relacionada à gestão pública. Estou na Comissão de Finanças da Câmara e falo muito sobre isso porque acredito que não podemos debater nenhuma estrutura pública — seja casa de acolhimento, centros de referência, políticas afirmativas ou de ressarcimento público — sem discutir economia.
Sou entusiasta da ideia de que pessoas LGBT, negras e outras minorias devem começar a debater as fatias do orçamento público. Porto Alegre arrecada mais de 12 bilhões por ano, e sabemos que essa distribuição não chega até nós. Nosso dinheiro não volta para nós. A perspectiva econômica é fundamental.
Precisamos alinhar essa correlação com os direitos humanos, uma pauta na qual a esquerda tem regredido. Tenho visto muitas pessoas dizendo: “Ah, mas defender direitos humanos é defender gênero neutro”, como se isso fosse a nossa principal bandeira. Na verdade, defender o direito de existir do outro é uma virtude essencial da esquerda.
Além disso, é urgente falar sobre sustentabilidade e resiliência. Porto Alegre tem sido vítima de crises climáticas severas. Nos últimos dois anos, tivemos pelo menos nove ciclones aqui. Ontem, por exemplo, estava 41 graus, e depois veio um temporal que alagou a cidade. Isso não é normal.
Também é importante estruturar o mercado de trabalho na cidade, apoiar pequenos e médios empresários, além de cooperativas e cozinhas solidárias. Estamos propondo a ideia de restaurantes populares bancados pelo poder público, especialmente em áreas afetadas. Nessas regiões, não há mercados nem farmácias, e as pessoas precisam de uma estrutura mínima.
Fórum - Porto Alegre foi pioneira no orçamento participativo. Você acha que, hoje, com as redes sociais, seria interessante retomar?
Natasha Ferreira: Falei algumas vezes durante a campanha que precisamos retomar o orçamento participativo, mas ele precisa ser atualizado. Não vejo, hoje, a classe trabalhadora, após uma jornada dupla ou tripla, indo até um ginásio de bairro ouvir políticos e votar no orçamento.
Precisamos de um aplicativo. Por meio dele, as pessoas poderiam cadastrar seus endereços, acompanhar a vida pública da Câmara e votar no orçamento público. Imagine uma mãe solo que trabalha 14 horas fora de casa. Ela não vai conseguir ir a uma reunião no sábado, mas, pelo aplicativo, poderia votar para que seu bairro recebesse uma creche comunitária, por exemplo. Isso é uma questão de pedagogia, mas perfeitamente viável.
O orçamento participativo foi histórico, mas precisa de atualização para dialogar com os novos tempos e a forma como as pessoas se conectam à política.