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O pastel de vento da Folha

Especialistas apontam que não há nada de irregular na “denúncia” do periódico paulistano contra Alexandre de Moraes; pretensa reportagem se tornou base para bolsonaristas pedirem anistia a golpistas

Folha de S. Paulo publica matéria "pastel de vento".Créditos: Wikimedia Commons
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*Matéria publicada na Revista Fórum Semanal

Era final de tarde de uma terça-feira, 13 de agosto de 2024, quando a "Folha de São Paulo", jornal que desde sua fundação exerce o papel de porta-voz da elite financeira paulista, publicou uma matéria que tinha toda a pretensão de ser uma “bomba” contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), alvoroçando bolsonaristas que apoiaram ou participaram de uma tentativa de golpe de Estado no Brasil.

“Moraes usou o TSE fora do rito para investigar bolsonaristas no Supremo, revelam mensagens”, diz o título da matéria em questão, assinada por Fabio Serapião e pelo jornalista dos EUA Glenn Greenwald, famoso pela série Vaza Jato e, mais recentemente, por ter endossado o Twitter Files Brazil, relatório totalmente vazio utilizado Elon Musk para criar a narrativa de que o Brasil viveria sob uma espécie de ditadura judiciária liderada pelo ministro do STF.

A "Folha" afirma que o ministro agiu "fora do rito" ao requisitar, através de seus assessores, relatórios ao TSE sobre investigados no inquérito das fake news com o objetivo de embasar suas decisões no Supremo. Apesar de a reportagem em momento algum utilizar a palavra "ilegal", fica claro, no texto, que o objetivo é sugerir que Moraes tivesse agido à margem da lei ou às escondidas para "perseguir" bolsonaristas.

A matéria utiliza como base diálogos vazados por uma "fonte interna" entre assessores do gabinete de Moraes e assessores do TSE, tratando sobre informações e relatórios solicitados pelo ministro entre o final de 2022 e o início de 2023, quando Moraes presidia o TSE, sobre pessoas que estariam promovendo ataques à Justiça brasileira e divulgando notícias falsas no âmbito da tentativa de golpe de Estado registrada no Brasil naquele período. O ápice do movimento golpista se deu em 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília clamando por uma intervenção militar.

O suposto “material explosivo” da reportagem são áudios e mensagens trocadas entre assessores. Um deles é o juiz instrutor Airton Vieira, principal assessor de Moraes no STF; o outro é Eduardo Tagliaferro, perito criminal que, à época, chefiava a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do TSE. O texto, nas entrelinhas e, principalmente, em seu título, sugere que a interação entre esses assessores, via WhatsApp, configuraria uma espécie de abuso das funções por Moraes.

Em um desses áudios expostos, por exemplo, Vieira pediria aos assessores de Moraes no TSE que produzissem os relatórios. Segundo a Folha, os diálogos se referem a “dezenas de casos” em que os relatórios seriam solicitados de forma extraoficial pelo gabinete do STF ao do TSE.

A repercussão foi imediata. Bolsonaristas entraram em polvorosa, gritando aos quatro ventos que Moraes seria um ditador e que as “revelações” feitas pela Folha provocariam a nulidade de seus atos contra investigados no inquérito das fake news. Em última instância, os apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro acreditam que todos os processos contra os acusados de contribuírem para a tentativa de golpe no país cairão. E não só os processos, mas o próprio Moraes, que já é alvo de uma articulação por impeachment de parlamentares da oposição.

Acontece que, além de relator do inquérito das fake news no STF, Moraes era, à época, presidente do TSE. Como presidente da Corte Eleitoral, por lei, o ministro tem poder de polícia para requisitar tais informações e encaminhá-las, em caso de indícios de crime, à seara criminal – no caso, o próprio STF, mais especificamente no âmbito do inquérito que relata.

Juristas e especialistas ouvidos pela Fórum apontam que a “denúncia” da "Folha" não revela nada além do fato de que Alexandre de Moraes usou suas prerrogativas legais como ministro do STF e presidente do TSE. Trata-se, na verdade, de um “pastel de vento”como bem definiu o colunista da Fórum Antonio Mello – que, sem recheio, engana por prometer tudo e não entregar nada.

O que dizem os juristas

À Fórum, o advogado e cientista político Fernando Augusto Fernandes esclareceu que “não há nada de anormal” na conduta de Moraes descrita pela matéria da "Folha de São Paulo".

“O ministro Alexandre Moraes, como relator do inquérito no Supremo Tribunal Federal, tem poderes para requisitar informações de todo e qualquer órgão, inclusive eventuais quebras de sigilos e determinações de diligências. Não há nada de anormal ou ilegal nas determinações relatadas pela matéria. O título é que induz a acreditar que houve abuso: ‘usou TSE fora do rito’. Quando um ministro determina a quebra de sigilo bancário ou fiscal, se diria ‘usou banco ou a Receita fora do rito?’ Na verdade, as ordens do ministro foram dirigidas a outro setor público que tem o dever legal de cumprir as determinações do relator do inquérito. Portanto, não ‘usou’ o TSE, mas requisitou material e diligências, algo absolutamente normal”, explica.

Também em entrevista à Fórum, o advogado, professor e jurista Lenio Streck considera que o periódico paulistano fez “muito barulho por nada” e que o ministro Alexandre de Moraes simplesmente utilizou o poder de polícia que lhe é conferido como presidente do TSE.

"Nada houve de irregular. O presidente do TSE tem poder de polícia. Tem poder de investigação. Tudo isso é muito barulho por nada. O ministro do STF acumula funções. TSE e STF. Os jornalistas que estão lançando a 'bomba' estão fazendo muito barulho por nada. Estão prestando um serviço à extrema-direita", pontua Streck.

O advogado e professor Renato Ribeiro de Almeida, um dos maiores especialistas em Direito Eleitoral do país, explicou em conversa com a Fórum o que é o poder de polícia citado por Lenio Streck e reforçou que as ações de Moraes que a "Folha" trata como um suposto escândalo são totalmente lícitas.

"A questão básica é a seguinte: eu entendo que essa colocação, na verdade, é impertinente por parte de alguns veículos, porque o que o ministro Alexandre de Moraes fez foi utilizar o poder de polícia da Justiça Eleitoral. Para quem não está muito familiarizado com a Justiça Eleitoral, isso pode soar um pouco estranho, mas, diferentemente do que acontece na Justiça comum e também na seara criminal, na Justiça Eleitoral o Poder Judiciário eleitoral pode agir de ofício. Então, é o direito e inclusive o dever do ministro, do juiz eleitoral, seja lá na comarca, lá na zona eleitoral, seja em outro lugar, atuar e diligenciar em todas as situações que porventura apareçam", explica Almeida.

O advogado menciona, ainda, que a atuação de Moraes colocada em dúvida pelo periódico está amparada pela legislação eleitoral através da Lei 9.504, que confere ao TSE o poder de polícia para fazer tais requisições que embasam investigações.

"É por isso que o ministro fez essa manifestação [de solicitar relatórios sobre investigados ao TSE através de seus assessores]. Se ele não fizesse, aí sim ele estaria prevaricando. Então, o trabalho foi lícito, não há nenhuma irregularidade e é simplesmente a atividade do poder de polícia garantida pela lei eleitoral, Lei 9.504, que garante ao juízo essa possibilidade", ressalta o especialista.

Moraes do STF é o mesmo do TSE

O próprio Moraes, durante a abertura da sessão do STF desta quarta-feira (14), evocou o poder de polícia atribuído ao seu cargo no TSE ao comentar a matéria da "Folha". Segundo o ministro, a reportagem não o preocupa pois sabe que agiu dentro da legalidade. Ele desmente o jornal, inclusive, ao revelar que não foi procurado pelos repórteres antes da publicação do texto jornalístico. O ministro afirmou, ainda, que seria "esquizofrênico" se "auto-oficiar", uma vez que, além de ministro relator no STF do inquérito das fake news, era também o presidente do TSE.

"Seria esquizofrênico eu, como presidente do TSE, me auto-oficiar. Até porque, como presidente do TSE, no exercício do poder de polícia, eu tinha o poder, pela lei, de determinar a feitura dos relatórios. Hoje esse meio investigativo continua possível. Esse compartilhamento de provas, que é o meio admitido pelo STF, hoje, eu oficiaria a ministra Cármen [Lúcia], que é a presidente do TSE. Então eu, como presidente do TSE, determinava à assessoria que realizasse o relatório", declarou Moraes.

O advogado Renato Ribeiro de Almeida também chama atenção para o fato de que o Moraes do STF é o mesmo do TSE e destaca, ainda, que o ministro agiu dentro de suas competências, inclusive deixando a cargo da Justiça Eleitoral o que era de natureza eleitoral e com a Justiça Criminal o que era da esfera criminal.

"Ressalto que o ministro, o que era eleitoral, ele compartilhava com a Justiça Eleitoral, e o que era de natureza criminal, isso era mandado para o gabinete no STF. O que acontece é que existe a mesma pessoa física do Alexandre de Moraes, ocupando duas cadeiras, uma no TSE naquele momento e outra no STF, mas isso é uma discussão a respeito de quem ocupa o cargo no TSE. E a nossa legislação diz que três ministros do STF compõem o TSE, inclusive na presidência e na vice-presidência. Não existe, portanto, uma irregularidade em relação a isso", assevera Almeida.

"O que existe, a meu ver, é uma tentativa e uma tentativa equivocada [da Folha de S. Paulo] de desacreditar a Justiça Eleitoral, desacreditar, seja por qualquer razão, a atuação do ministro, que eu entendo que foi irretocável, inclusive nessa situação", finaliza o especialista.

O que dizem o PGR e outros ministros do STF

Para além de juristas, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, bem como outros ministros do STF, fizeram defesas públicas de Alexandre de Moraes e criticaram o jornal "Folha de São Paulo" por tentar fabricar um escândalo contra o ministro, tomando como base mensagens de assessores que tratam de atos legais.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, afirmou que os pedidos de informações feitos por Moraes ao TSE visaram obter dados para instruir inquéritos que já estavam em andamento na Corte, diante da denúncia de reiteração de condutas de desinformação, de ataques à democracia e de discursos de ódio.

“Por acaso, o condutor do inquérito era também o presidente do TSE. Eram a mesma pessoa, e a alegada informalidade é porque geralmente ninguém oficia para si próprio”, disse.

“Como as informações eram do presidente do TSE para o condutor do inquérito, elas não eram formalizadas no momento da solicitação. Mas, quando chegavam, elas eram imediatamente formalizadas, inseridas no âmbito dos processos e dada vista ao Ministério Público”, prosseguiu Barroso.

“Nada é feito nas sombras, nada é feito na surdina, tudo é feito para cumprir a Constituição, as leis e para o bem do Brasil. E, por evidente, alguém pode pensar que o bem esteja em lugar diferente porque assim é próprio da democracia e das sociedades abertas”, finalizou o ministro.

Já o decano Gilmar Mendes afirmou que “não é de hoje que o ministro Alexandre tem sido alvo de críticas infundadas acerca da condução das investigações sob sua responsabilidade”.

“Sempre digo e repito: a atuação do Supremo Tribunal Federal e a de seus ministros não está imune a ponderações, e elas são bem-vindas quando buscam o aperfeiçoamento do nosso proceder jurisdicional e/ou o fortalecimento institucional. No entanto, é imperativo que, em tempos de crises e desafios à nossa democracia, possamos distinguir entre avaliações construtivas e ataques que visam a minar a independência e a integridade das instituições que sustentam o Estado Democrático de Direito”. 

O ministro enfatizou que as notícias falsas registradas nos relatórios do TSE eram públicas e circulavam livremente pelas redes sociais. Desta maneira, não houve quebra de sigilo, tampouco invasão de privacidade.

“Não há nada de irregular nessa atividade de fiscalização, que é feita sem qualquer espécie de provocação. É exatamente o que ocorreu nos eventos recentemente noticiados pela mídia”.

O ministro Flávio Dino, por sua vez, disse durante um evento sobre a regulamentação das redes sociais que Moraes cometeu o “crime gravíssimo” de “cumprir o seu dever”.

"Neste momento, ele [Moraes] é acusado de um crime gravíssimo. Ou seja, cumpriu o seu dever. Em certos parâmetros de organização do mundo, aquele que cumpre o seu dever é atacado e nós estamos, queridos, diante da inusitada situação em que se questiona o exercício de ofício do poder de polícia [do TSE]", destacou.

"Confesso que desde ontem [terça-feira] à noite até aqui não consegui encontrar em que capítulo mais positivo, prefeito, isto viola qualquer tipo de determinação da nossa ordem jurídica. Por isso, ministro Alexandre, sei que vossa excelência caminha absolutamente em paz com a sua consciência", completou o ministro.

O procurador-geral da República, Paulo Gonet, por fim, disse no plenário do STF que o Ministério Público atuou em todos os processos de relatoria de Moraes em que cabia a intervenção da PGR.

“Posso acrescentar que nessas e também em outras tantas oportunidades pude, pessoalmente, verificar as marcas de coragem, diligência, assertividade e retidão nas manifestações, nas decisões e no modo de conduzir o processo do ministro Alexandre de Moraes”.