A determinação, por parte do Presidente Lula, da recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, foi celebrada por parte do setor religioso. Um exemplo disto é o Coletivo Memória e Utopia, que, desde, 2019, tem como principal objetivo refletir sobre diversos temas e situações históricas que afligem atualmente a sociedade, e, com isso, possibilitar espaços de articulação e de animação entre pessoas e grupos interessados no fortalecimento da democracia. A medida que tanto causou alegria e esperança foi determinada por despacho do presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicado na edição desta quinta-feira (4) do Diário Oficial da União.
O Coletivo Memória & Utopia comemorou a determinação presidencial, entendendo ser um momento muito especial e propício para o resgate dessa memória. A Fórum entrevistou o pastor metodista Claudio Ribeiro, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora e um dos fundadores do Coletivo. Cláudio afirmou que “ficamos muito entusiasmados porque temos feito nos últimos anos um trabalho bastante efetivo de recriação dessa memória, especialmente com a interface com as igrejas, tanto a Igreja Católica como as Igrejas Evangélicas, no que diz respeito a história do Brasil, sobretudo o período do golpe militar dos anos 60, mas também procurando ver as consequências desse golpe nas décadas que se seguiram e até os dias de hoje.”
A comissão foi criada há quase 30 anos, pela Lei n. 9.140 de 1995. E foi responsável por reconhecer desaparecidos políticos, avançar em buscas em áreas como Araguaia, Rio de Janeiro e Foz do Iguaçu, dar continuidade aos trabalhos de identificação de Perus, além de retificar assentos de óbito em cumprimento ao Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, que atuou entre 2012 e 2014. Em um dos seus últimos perversos atos como presidente, Bolsonaro extinguiu a Comissão, em 2022, pouco antes de deixar o governo.
O coletivo tem um site, https://memoriaeutopia.com.br/ ,onde armazena diversos documentos, entrevistas e vídeos com várias pessoas que enfrentaram corajosamente o período da ditadura no Brasil e traz relatos emocionantes e inspiradores para que as novas gerações conheçam o que o país enfrentou nos 21 anos terríveis sob o comando dos militares. O pastor afirma que, “nesse sentido, a gente faz o resgate da memória de várias lideranças que foram muito importantes nesse processo de enfrentamento da ditadura militar. Então, no campo evangélico, lideranças como Anivaldo Padilha, metodista; Leonildo Silveira, presbiteriano; Eliane Rolemberg, da Cese, que é de tradição luterana; Ana Maria Ramos, que era uma liderança da juventude metodista e que foi presa com a presidenta Dilma lá na Torre chamada Torre das Donzelas. Essas entrevistas, elas são para nós um tesouro para o processo democrático brasileiro. Elas estão acessíveis no nosso site e também fazemos reuniões com grupos presenciais."
Uma das preocupações, segundo Ribeiro, é dialogar com a juventude que, praticamente, desconhece o que foi, na verdade, o período dos Anos de Chumbo. Claudio reconhece “que um dos grandes desafios para o nosso coletivo é o diálogo, a interação, a escuta e também a participação das juventudes, porque a primeira constatação, assim que formamos o coletivo, na virada do 2019 para 2020, era que éramos pessoas brancas, de cabelos brancos também, e de lá para cá nós temos feito um esforço grande de motivar a juventude e ouvir, sobretudo ouvir a juventude, porque essa é uma autocrítica que nós fazemos, quer dizer, nós não sabemos dialogar com a juventude adequadamente, e recentemente fizemos uma roda de conversa com várias lideranças jovens de movimentos católicos e evangélicos de juventudes com o Frei Betto.”
Para o pastor metodista e um dos fundadores do coletivo, é também uma chance de resgate histórico da atuação heroica de alguns evangélicos e católicos no período da ditadura. “Nós, do coletivo Memória e Utopia, aqui no Rio de Janeiro, demos uma contribuição que eu considero significativa, especialmente nessa interface com as igrejas, tanto a memória do passado, porque as igrejas viveram contradições, ambiguidades, mas tem um legado muito significativo de combate ao autoritarismo e às ditaduras, e uma perspectiva de democracia, de cidadania, e isso também no presente, porque o presente é tão contraditório quanto antes, e precisa ser bem analisado, e a gente tem procurado fazer isso.”
Além dos vários vídeos, entrevistas e relatos disponibilizados no site do coletivo, o Memória & Utopia disponibiliza o livro “Igrejas evangélicas na Ditadura militar – dos abusos do poder à resistência cristã” que pode ser baixado, GRATUITAMENTE, no site
https://drive.google.com/file/d/1SD1CrWhp2qTd1llqk4OdKejvH-t0kHID/view
LEIA A ÍNTEGRA DA ENTREVISTA:
Claudio, como o Coletivo Memória e Utopia recebeu a notícia da recriação da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos pelo presidente Lula?
Quando nós, do coletivo Memória e Utopia, recebemos a notícia da recriação da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a partir do Governo Federal com o presidente Lula, nós ficamos muito entusiasmados porque temos feito nos últimos anos um trabalho bastante efetivo de recriação dessa memória, especialmente com a interface com as igrejas, tanto a Igreja Católica como as Igrejas Evangélicas, no que diz respeito a história do Brasil, sobretudo o período do golpe militar dos anos 60, mas também procurando ver as consequências desse golpe nas décadas que se seguiram e até os dias de hoje. De forma que quando o nosso coletivo Memória e Utopia foi formado, nós estávamos em pleno um outro governo que praticamente colocou bases para um esquecimento dessa memória tão triste, tão violenta para o país que foi o período militar, inclusive desarticulando várias iniciativas dessa natureza que diz respeito à reparação de direitos, a parte também educativa e pedagógica para as novas gerações.
O Memória e Utopia começou nesse contexto, no ano de 2019, quando estávamos preocupadíssimos com a democracia, com o apagamento e esquecimento de situações muito importantes e porque não dizer um retorno do arbítrio, do autoritarismo, porque estava ali bastante indicado pelo menos no plano institucional de governo. Então, por esses anos que realizamos o trabalho, sempre tivemos que lidar com esse perigo constante da supressão das liberdades e a preocupação de que essa memória não fosse esquecida, pensando sobretudo nas novas gerações.
Portanto, o coletivo Memória e Utopia vê com muito bons olhos a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e consideramos que, ainda que de maneira modesta, temos uma contribuição a dar, porque fizemos esse trabalho nos últimos anos reunindo o material, socializando, especialmente com as pessoas interessadas, os grupos democráticos no país e, sobretudo, as novas gerações, essa é uma preocupação forte do coletivo Memória e Utopia, essa moçada, as juventudes que não viveram esse período e que precisam conhecer até para que essas experiências não sejam reproduzidas, repetidas em qualquer nível.
Fale um pouco sobre a história e a luta do Coletivo.
O coletivo Memória e Utopia nasceu dessa preocupação com um certo fechamento da sociedade brasileira, especialmente no nível de governo federal, mas também em outros Estados, no contexto do governo ex-presidente, Bolsonaro, onde nós percebemos, assim como outros setores da sociedade também perceberam, um risco muito grande para a continuidade do processo democrático, das ideologias crescentes de negacionismo e de apagamento de várias situações, especialmente a violência e toda a situação que o governo militar dos anos 60 e 70 causaram para o país. Então, nós começamos a nos organizar nessa direção.
O foco do trabalho do nosso coletivo é formado, em primeiro lugar, por pessoas que têm algum histórico com as igrejas cristãs, especialmente igrejas evangélicas, e boa parte do grupo pertence ou tem um histórico na igreja metodista, mas também há pessoas de outras igrejas entre os colaboradores, igreja católica, igreja presbiteriana, e também pessoas interessadas nesse foco da memória, então não é só o contexto dos anos 60 e 70 e com os desdobramentos até hoje do processo de arbítrio e da ditadura militar, mas também outras situações de natureza cultural, temos tratado de temas relativos ao racismo, por exemplo, ao silenciamento e ocultamento de lideranças do passado, sobretudo evangélicas, mas também católicas e outras, e essa ideia da memória e utopia, a utopia está ligada a um balanço da situação presente com os pés bem firmes no chão da realidade, procurando compreender essa realidade brasileira atual e com os olhos do futuro, pensando justamente no fortalecimento do processo democrático, nas novas perspectivas que possam ter na sociedade para o enfrentamento de situações similares, então nos interessa também outros momentos históricos, como os anos 80.
No nosso primeiro evento de 2020, nós reunimos aqui no Rio de Janeiro, numa associação judaica, mais de 100 pessoas para discutir os anos 80, porque a maioria dos integrantes do coletivo Memória e Utopia vivenciou sua juventude nos anos 80. Então, foi do nosso interesse trazer esse debate e vocês podem encontrar no site do coletivo todo esse acervo sobre os anos 80, que foram anos de mudanças políticas, de processos de redemocratização, de maior abertura cultural.
Então, a memória utopia não é específico sobre os anos 60, mas ele abrange variados momentos históricos e variadas questões também importantes para a sociedade, que trabalha o processo de recriação histórica e de revisão de processos na atualidade.
Quais as principais ações do Memória e Utopia e como dialogar com um público evangélico que parece migrar para a extrema-direita e apoiar ditaduras?
O coletivo Memória e Utopia, entre as suas ações, desenvolve algumas atividades procurando dialogar com o público não somente das igrejas, tanto evangélicas como católica, mas também o público em geral.
Nós não somos um coletivo evangélico, nós temos uma perspectiva mais ampla, mas obviamente o público evangélico tem se tornado nos últimos anos um foco de atenção porque contempla no seu interior vários setores que têm apoiado políticas de extrema direita e, portanto, apoiado também uma certa defesa de ditaduras, como especialmente o caso brasileiro, num ocultamento de toda a violência e de todo o arbítrio que foi feito, não só pelo governo militar da época, mas também os grupos paramilitares, etc. Então, nós temos procurado trazer para o debate e também socializar as informações, os dados, para que esse público evangélico, especialmente, mas também a comunidade católica e a comunidade mais ampla da sociedade brasileira, possa refletir, ter as informações históricas e refletir sobre o presente.
Nesse sentido, a gente faz o resgate da memória de várias lideranças que foram muito importantes nesse processo de enfrentamento da ditadura militar. Então, no campo evangélico, lideranças como Anivaldo Padilha, metodista; Leonildo Silveira, presbiteriano; Eliane Rolemberg, da Cese, que é de tradição luterana; Ana Maria Ramos, que era uma liderança da juventude metodista e que foi presa com a presidenta Dilma lá na Torre chamada Torre das Donzelas. Essas entrevistas, elas são para nós um tesouro para o processo democrático brasileiro. Elas estão acessíveis no nosso site e também fazemos reuniões com grupos. É claro que a pandemia prejudicou bastante a possibilidade dos encontros presenciais, mas de 2020 pra cá nós fizemos vários, procurando sempre fazer um debate intergeracional.
Recentemente o Memória e Utopia fez uma roda de conversa entre Frei Betto e lideranças jovens. assusta o fato de a extrema direita, como na Argentina e na Europa, encontrar espaço entre a juventude. Há possibilidades de reverter essa tendência na AL, e em especial no Brasil?
Agora, no mês de abril desse ano de 2024, nós fizemos várias atividades reunindo lideranças, pessoas e juventudes para marcar criticamente os 60 anos do golpe militar de 64 no Brasil. Então reunimos uma centena de pessoas lá no Centro Cultural da Justiça Federal que fica no Centro do Rio de Janeiro, na Cinelândia, cujo lugar tem uma marca simbólica fortíssima, que é a antiga sede do STF, do Supremo Tribunal Federal.
E ali fizemos todo um debate, um diálogo com a juventude sobre isso e também filmes, porque acho que isso é pedagógico, importante. Então nós fizemos juntamente com a NetRio a exibição de uma amostra de cinema, com vários filmes que tratam da temática da ditadura militar, e um deles que é o Batismo de Sangue, que trata dos dominicanos. Nós reunimos o Ivo Lebauspin, que era um dos Freis Dominicanos que sofreram bárbaras torturas, e é um dos protagonistas do filme e do livro, escrito por Frei Betto, e uma jovem evangélica, Luciana Petterson, do movimento Novas Narrativas Evangélicas, para conversarem sobre o filme.
E foi emocionante, com um conteúdo fantástico dos dois, a mesa foi mediada por Regina Novaes, uma antropóloga do ISER, e muitas pessoas depois relataram, nós não tínhamos noção de todos esses aspectos, de todos esses detalhes, especialmente as implicações para os dias de hoje. Como a cultura de violência, de arbítrio e a cultura autoritária está presente hoje na sociedade brasileira, sobretudo em setores da juventude negra das áreas periféricas, que sofrem com isso, e então foi uma experiência muito marcante. Vocês têm isso tudo relatado e filmado no site do coletivo Memória e Utopia.
Considerando todos esses aspectos, é possível concluir que um dos grandes desafios para o nosso coletivo é o diálogo, a interação, a escuta e também a participação das juventudes, porque a primeira constatação, assim que formamos o coletivo, na virada do 2019 para 2020, era que éramos majoritariamente pessoas brancas, de cabelos brancos também, e de lá para cá nós temos feito um esforço grande de motivar a juventude e ouvir, sobretudo ouvir a juventude, porque essa é uma autocrítica que nós fazemos, quer dizer, nós não sabemos dialogar com a juventude adequadamente. Recentemente fizemos uma roda de conversa com várias lideranças jovens de movimentos católicos e evangélicos de juventudes com o Frei Betto, porque ele também explicitou essa preocupação no âmbito do trabalho dele, que é a pastoral popular católica e também a política brasileira dessa lacuna da juventude, e vocês encontram no site também esse relato, uma síntese desse encontro e o próprio encontro, e foi uma experiência muito positiva, exitosa, promissora, porque acho que a temática do arbítrio, do autoritarismo, dos processos que o Brasil viveu e ainda vive de formas muito variadas, sobretudo nos setores das polícias, precisa ser refletido e quem tem que levar isso a frente são as juventudes, porque o grupo que vivenciou essas décadas anteriores e as seguintes já estão numa fase adiantada da vida e certamente não terá as forças necessárias para levar adiante um projeto, uma participação mais efetiva, mas nós acreditamos na juventude, como diz a canção do Gonzaguinha: “eu ponho fé é na fé da moçada”.
Com essa decisão do presidente Lula, quais as ações previstas a partir de agora do M&U?
O coletivo Memória e Utopia certamente fará uma atenção, um acompanhamento muito minucioso dessa iniciativa do presidente Lula, em recriar a comissão dos mortos e desaparecidos políticos. Muita coisa que ocorre no nosso contexto, no nosso país, nós não temos condições de fazer um planejamento a médio e longo prazo, nós aprendemos, na prática, com a criação do coletivo Memória e Utopia.
Nós tínhamos a ideia de fazer algo mais pontual, de menor porte, mas as demandas têm nos mostrado que há muitas coisas conjunturais, que às vezes a gente precisa parar tudo e atender essas novas demandas. E esse caso é um exemplo disso, então nós temos que nos organizar para isso, de forma que assim também ocorreu com outras situações que surgiram nos últimos anos e que nós tivemos que nos organizar para acompanhar e dar uma contribuição, ainda que modesta.
Certamente, nesse ponto, tem vários outros grupos que estão também atentos, preocupados e vão dar uma contribuição efetiva. No nosso caso, nós entendemos que o carisma do coletivo é essa interface entre a memória, no sentido não só da política, mas também de movimentos culturais, de situações as mais diversas das igrejas, essa interface com as igrejas, porque há poucos grupos que têm trabalhado essa relação.
A gente acha que, como foi agora nos 60 anos do golpe militar, muitas iniciativas foram feitas. Lamentavelmente, do governo federal não houve, mas é bom registrar isso. Mas, ao contrário, eu acho que o fato de o governo não ter feito (nada) acabou tendo uma reação em vários setores da sociedade civil para que coisas fossem realizadas. E foram muitos seminários nas universidades e setores políticos, partidários. E nós, do coletivo Memória e Utopia, aqui no Rio de Janeiro, demos uma contribuição que eu considero significativa, especialmente nessa interface com as igrejas, tanto a memória do passado, porque as igrejas viveram contradições, ambiguidades, mas tem um legado muito significativo de combate ao autoritarismo e às ditaduras, e uma perspectiva de democracia, de cidadania, e isso também no presente, porque o presente é tão contraditório quanto antes, e precisa ser bem analisado, e a gente tem procurado fazer isso.