A principal discussão em torno do PL 1904/24, o "PL do estupro", é a equiparação do aborto após a 22ª semana ao crime de homicídio com pena de 20 anos. No entanto, em entrevista à Fórum, o jurista Pedro Serrano atenta para o fato de que o texto da lei é vago quanto ao período anterior às 22 semanas e que isso pode gerar insegurança jurídica para os médicos e acabar com o aborto legal no Brasil.
De acordo com Serrano, o PL do estupro "é mais complexo do que o que a direita tem falado, de que vai punir com pena de homicídio, só acima de 22 semanas. O que a lei fala: pune qualquer aborto em que haja viabilidade fetal. Viabilidade fetal pode ter um conceito do tipo, eles podem estar querendo dizer sobre a capacidade do feto sobreviver fora do útero. Mas pode também estar querendo dizer a capacidade do feto de vir a nascer, com saúde, etc. Com capacidade de sobrevivência. Ou seja, praticamente toda gravidez. Qualquer gravidez saudável."
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Em seguida, Pedro Serrano diz que não há dúvida quanto à punibilidade prevista no PL 1904/24. “O que a lei fala é o seguinte, ela pune com pena de homicídio o aborto que ocorre onde houver viabilidade fetal. Presumida viabilidade fetal a partir das 22 semanas. Ou seja, a partir das 22 semanas, é pena de homicídio, não há dúvida”, explica.
O problema, aponta Serrano, está no período anterior a 22 semanas, que não está previsto no texto do PL. “Abaixo das 22 semanas o juiz vai ter que decidir. Só que o problema é que isso vai inibir, tudo quanto é médico, de fazer os abortos legais, os previstos em lei para salvar a vida da mulher. A partir desse texto genérico, o crime de homicídio pode ser em qualquer caso", destaca o professor da PUC-SP.
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"Em qualquer caso, vamos dizer, gera no mínimo uma grande dúvida interpretativa pela vaguidade de sentido da expressão. O esclarecimento do sentido da expressão, no mínimo, gera uma vaguidade de sentido. Isso vai, na prática, inibir qualquer médico. O médico pode, por razão de consciência, se negar a fazer qualquer aborto. Vai se negar. Mesmo quando houver risco de vida para a mãe. E se o juiz entende que não havia risco de vida para a mãe de fato, que o feto era viável, e viável significa capacidade de nascer, e o médico se ferra?", questiona Serrano.
Para Serrano, o projeto é muito pior do que parece. "Vai gerar um problema no país, eu não tenho dúvida disso. É muito pior o projeto do que o que está se debatendo. Há uma vaguidade de sentido na expressão que pode gerar que qualquer aborto seja sancionado com pena de homicídio. Essa vaguidade, vamos dizer, dúvida interpretativa vai acabar fazendo com que os médicos tenham receio de praticar o aborto, mesmo para salvar a vida da mãe, mesmo quando for caso de estupro.”
Inconstitucional
Além de apontar o texto vago do PL 1904/24, que pode fazer com que o aborto legal no Brasil deixe de existir, Pedro Serrano também afirma que o projeto é "inconstitucional porque atinge totalmente a dignidade da mulher e a obriga a ter um filho produto do estupro. Isso é um atentado contra a dignidade da mulher. A razão religiosa não pode superar a dignidade humana."
"Ninguém é obrigado pela Constituição a ser cristão. Ninguém. Ninguém é obrigado a ser evangélico, ninguém é obrigado a ser católico. As questões têm que ser debatidas no plano dos direitos, numa perspectiva laica. Então, a realidade é que você não pode obrigar a mulher a querer ter um filho do estupro. Isso é um atentado à dignidade humana dela. Esse projeto coloca em risco a própria vida da mulher. E o projeto, como tem esse conceito de viabilidade fetal que é vago, vai acabar [com o aborto legal], o médico vai acabar podendo ser punido, vai inibir médicos de salvar vidas de mulheres em situações de aborto”, conclui Pedro Serrano.