André Mendonça, o ministro "terrivelmente evangélico" do Supremo Tribunal Federal (STF) indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, apelou à disseminação do pânico e fake news ao votar contra a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal nesta quarta-feira (6).
A Corte retomou o julgamento, iniciado em 2015 e adiado inúmeras vezes por pedidos de vistas, a partir da análise da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), baseado em um fato concreto de prisão por porte de 3g de maconha. A votação visa definir se é crime ou não portar drogas para uso pessoal e ainda estabelecer regras que diferenciem um usuário de um traficante.
Até o momento, votaram a favor da descriminalização do porte de maconha para uso pessoal os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e a ministra recém-aposentada Rosa Weber. Já os ministros Cristiano Zanin, Kassio Nunes Marques e André Mendonça votaram contra. O placar está, portanto, 5 a 3 pela descriminalização, mas o julgamento só será retomado em 90 dias, já que o ministro Dias Toffolli pediu vistas.
Mendonça, em seu voto contrário à descriminalização do porte de maconha, citou supostas pesquisas, sem mencionar as fontes, para gerar pânico sobre o uso de cannabis, repetindo frases de efeito utilizadas há décadas pelos defensores da chamada guerra às drogas. Ele chegou a afirmar que a maconha causa mais danos que o cigarro - informação que é contestada por especialistas - e recorreu à máxima de que a erva seria uma "porta de entrada" para outras drogas.
"Fumar maconha é o primeiro passo para o precipício", disparou o ministro.
Em entrevista à Fórum, o especialista em gestão estratégica de políticas públicas Eduardo Ribeiro, cofundador e diretor executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, detonou o voto de André Mendonça.
Segundo Ribeiro, que já foi membro do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas do Estado da Bahia e que, atualmente, ocupa uma cadeira na representação da sociedade civil no Conselho Nacional de Segurança Pública do estado, o ministro protagonizou uma "cena constrangedora".
"O voto do ministro André Mendonça foi uma cena, acredito, constrangedora do ponto de vista científico de quem está envolvido na pesquisa sobre o tema de drogas. Ele citou alguns professores e depois saiu soltando várias referências sem conseguir apresentar as fontes, reforçando apenas estereótipos a partir de palavras-chave muito dramáticas, que eram suicídio, gravidez, vício, dependência", analisa o especialista.
Nas palavras de Ribeiro, o ministro, ao votar, utilizou determinados recursos para dar uma "tinta científica" ao tema quando, na verdade, "são dados pouquíssimo confiáveis" e que representam "muito mais estereótipos"
"Muitas fake news utilizadas no voto de um ministro do Supremo. É importante que a gente recupere o tema como vinha sendo abordado até o presente momento, sobretudo no voto do ministro Alexandre de Moraes, que sim, é importante ter dados para definir o que nós compreendemos no tema da política de drogas, mas também não deixar com que isso abra a possibilidade de que qualquer tipo de dado pode ser utilizado, que qualquer tipo de pesquisa é confiável, sobretudo quando não é apresentada as fontes", pontua.
Citado pelo especialista, o ministro Alexandre de Moraes, ao votar favoravelmente à descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, trouxe dados da Associação Brasileira de Jurimetria apontando que 25% dos presos no país respondem pelo crime de tráfico de drogas. O magistrado sustentou que a maior parte desses presos poderiam ser enquadrados como usuários, se houvesse um critério objetivo. Como não há, vão para cadeia em geral jovens e negros, disse.
“O STF tem o dever de exigir que a lei seja aplicada identicamente a todos, independentemente de etnia, classe social, renda ou idade”, declarou Moraes.
Descriminalizar o porte não é legalizar a maconha; entenda o julgamento
O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou, nesta quarta-feira (6), o julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio.
Apesar do julgamento tratar do porte de drogas como um todo, os ministros que votaram a favor da descriminalização o fizeram apenas com relação maconha, exceto Gilmar Mendes. A análise do tema foi iniciada pelo STF em 2015 a partir do julgamento da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), baseado em um fato concreto de prisão por porte de 3g de maconha.
O STF, porém, não vai "legalizar a maconha" ao final do julgamento, mesmo se houver mais um voto favorável à descriminalização. Isso porque descriminalizar o porte para consumo pessoal não significa a legalização total, visto que a produção, venda e distribuição de maconha ou de qualquer droga seguem proibidos no Brasil.
O efeito prático, caso o porte para consumo próprio seja, de fato, descriminalizado, seria apenas impedir que pessoas flagradas portando pequenas quantidades de maconha, desde que comprovado que é para uso pessoal, sejam penalizadas. Atualmente, a Lei de Drogas considera crime adquirir, guardar e transportar entorpecentes para consumo pessoal e prevê penas como prestação de serviços à comunidade.
A interpretação do que é quantidade para "consumo pessoal" e o que configura tráfico, entretanto, é feita, a princípio, pelas polícias, que recorrentemente consideram pretos e pobres como traficantes e pessoas brancas, de classe média ou alta como usuários. O julgamento do STF, portanto, atacaria este cenário e definiria, exatamente, qual a quantidade de droga que pode ser considerada para uso pessoal.
Em entrevista à Fórum, o advogado Berlinque Cantelmo, que é especialista em segurança pública, explicou que, caso o STF decida descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal, a Corte "terá de discutir os parâmetros de quantidade que irão diferenciar o usuário do traficante".
"É importante frisar que do ponto de vista criminal, as ações de contingenciamento do tráfico de droga, notadamente a maconha, vão permanecer com o mesmo tipo de metodologia e roupagem. É importante frisar também que não há discussão efetiva sobre o crime de tráfico de drogas, mas sim, e tão somente, há uma discussão que perpassa pela posse de determinada quantidade de maconha para consumo próprio, seja para fins medicinais ou não", pontua.
Já Eduardo Ribeiro, da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, sustenta que uma eventual descriminalização do porte de maconha "não desencadeará na redução do encarceramento de pessoas hoje usuárias e transformadas em traficantes, já que boa parte das decisões judiciais são baseadas quase que exclusivamente no relato policial".
"As pessoas não vão deixar de ser presas e a guerra de drogas não vai terminar. No entanto, a gente permite que o Estado brasileiro e a sociedade avancem na compreensão de que é necessário mudar a rota da política de drogas atual", analisa o especialista.
"A primeira grande contribuição [deste julgamento no STF] é sempre partir da ideia de que se amplia o debate na sociedade brasileira acerca da necessidade da superação de uma forma única de lidar com o tema do uso de substâncias, que é a criminalização, que é o encarceramento, a prisão e o abuso", diz ainda.