Desde a década passada, em qualquer manifestação de extrema direita no Brasil é possível ver cartazes pedindo pelo uso do artigo 142 da Constituição Federal para a realização de uma "intervenção militar" no país. Na prática, um golpe de Estado.
O artigo 142 da Constituição de 1988 é um tema de polêmica há décadas no Brasil e sempre foi utilizado por figuras da direita brasileira para validar, de alguma maneira, a tutela dos militares sobre os brasileiros.
60 anos depois do golpe militar de 1964 e a implementação da ditadura no país, o fantasma de um golpe das Forças Armadas ainda não se afastou do país. E no campo jurídico, é justamente o artigo 142 que assombra os democratas.
Antes, é necessário ler o dito cujo.
"Art. 142 - As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."
As origens do 142
Conversamos com o historiador Chico Teixeira, professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, da UFRJ e da UFJF, além de ex-funcionário do Gabinete de Segurança Institucional e do Ministério da Defesa, para entender um pouco mais dessa história.
"Tudo isso que está acontecendo é por causa da forma que se deu a transição entre a ditadura e a democracia brasileira. A transição brasileira não foi uma transição por colapso", afirma, relembrando a transição "lenta, gradual e segura" da ditadura militar até a Constituinte. "É a transição mais longa de toda a história. Além de ser uma transição pactuada, é uma transição extremamente longa. E somente cerca de 10% a 12% dos constituintes de esquerda, e que queriam, de fato, renovar a democracia do Brasil."
"O centrão surge aí. E ele impõe, ao lado dos militares, limites à transição brasileira. Um desses limites é a garantia de uma tutela militar sobre a república. Essa tutela está expressa no artigo 142. A doutrina da tutela militar no Brasil era muito ativa. Ela vem desde 1889, quando os militares derrubaram o império, tomaram o poder, implantaram a república, e, a partir daí, eles acharam que eles eram os tutores da república", explica.
As interpretações nefastas
Foi no seio do bolsonarismo que o artigo 142 ganhou interpretações mais 'fascistoides'. Juristas da extrema direita justificaram que as Forças Armadas tinham o poder de intervir nos poderes por meio de um molde de golpe militar como o de 1964, mas tutelados pela Constituição.
Em 2023, foi revelado que a cúpula militar do governo Bolsonaro chegou a consultar o jurista Ives Gandra para entender mais sobre as possibilidades de uso do artigo 142, para o qual ele respondeu: "pode ocorrer em situação de normalidade se no conflito entre poderes, um deles apelar para as Forças Armadas, em não havendo outra solução”.
"Eles têm o mesmo papel hoje que Francisco Campos, o grande jurista do golpe de Estado de 1937, que fundou o Estado Novo, tinha. Tinha o mesmo papel dos juristas como Francisco Medeiros, e, mais uma vez, Francisco Campos, que apoiaram o golpe de 1964 Então, há uma tradição jurídica brasileira que sempre apoia golpes de Estado. Não há nenhuma novidade em relação a isso. Mas, do ponto de vista da concretude do direito, o artigo 142 perdeu a sua validade como tal", explica Teixeira.
O artigo 142 foi regulamentado por uma lei editada no período FHC, a Lei Complementar 97, de 1999, que criou a Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Nas GLOs, as FFAA são convocadas por um poder - Executivo, Legislativo ou Judiciário - para agir na restauração da ordem pública. É o caso da greve dos policiais de 2017 no Espírito Santo ou da greve de caminhoneiros de 2018.
Ou seja: o artigo 142 da Constituição já foi utilizado em diversas ocasiões, inclusive por governos do PT em eventos como a Copa do Mundo 2014.
Interpretá-lo como anuência para golpe militar é pura e simplesmente errado. "Não há valor de face no artigo 142. Ele perdeu o seu valor, mas ele não foi suprimido. Ele foi reinterpretado de uma forma rigorosa e legalista. Os mal-intencionados, como é o caso do Miguel Reale Júnior e de alguns chefes militares, querem ler apenas o valor de face do caput do artigo, e não ler as leis complementares que reformaram a Constituição nesse sentido. Portanto, cometem uma grave ilegalidade", completa Teixeira.
Hora de acabar com o 142?
O desejo de mudar o 142 vem desde o seu surgimento. Deputados constituintes como José Genoino e Fernando Henrique Cardoso trabalharam para tentar tirar a tutela dos militares sobre a "lei e a ordem", mas foram pressionados pelo general Leônidas Gonçalves, ministro da Guerra do governo Sarney.
O deputado federal do PT de São Paulo Carlos Zarattini lidera o debate, desde o ano passado, por uma alteração do artigo 142 para retirar o poder dos militares na Constituição.
"Nós queremos tirar das atribuições das Forças Armadas a chamada Garantia da Lei e da Ordem. Nós queremos mudar o texto. Porque é uma redação que está muito 'patriotada' e com pouca definição", explica o deputado.
"Também queremos introduzir alguns outros parágrafos. Se o militar for candidato a alguma coisa, ele é automaticamente removido para fora das forças. Assim como é com juízes e promotores. Na hora que você opta pela política, você deixa de seguir carreira. Então, nós estamos querendo colocar que se o cara for para um cargo civil, de natureza civil, ele também deixa de seguir carreira", completa Zarattini. "A gente propõe que fique proibida qualquer atividade política dos militares. É um artigo que está na Constituição Portuguesa. Na medida em que o camarada se meter na política, de algum jeito, ele está automaticamente fora das Forças Armadas", destaca o parlamentar.
O governo e os militares
Alterar o artigo 142 da Constituição envolveria, em algum nível, como demonstrou o deputado Zarattini, algum conflito com setores das Forças Armadas.
Segundo o próprio parlamentar, esse é o principal entrave para que a Proposta de Emenda à Constituição ganhe força, por conta da política do governo Lula de não entrar em conflito com as armas.
"O governo tem uma linha de não ter nenhum tipo de aresta com os militares. E, evidentemente, esse é um projeto que um setor militar, que quer se envolver em política, vai reagir contra. Deputados, senadores, que têm origem militar, vão reagir contra. Mas nós temos certeza que a maioria dos militares não teria nenhum problema com isso", defende Zarattini.
O historiador Chico Teixeira avalia que não enfrentar os militares golpistas é um erro do governo Lula. "O Lula está querendo isolar Bolsonaro como inimigo e absolver os militares, não entendendo que o bolsonarismo é uma das formas do golpismo militar na história do Brasil", afirma. "A ideia de que o Lula teve um ótimo relacionamento com os militares, isso é fantasia. O Lula fantasia isso."
*Esta matéria faz parte da Revista Fórum digital semanal nº104, uma edição histórica sobre os 60 anos do golpe de 1964. Baixe grátis aqui e clique para apoiar e receber todas as sextas-feiras.