*Matéria publicada originalmente na edição 106 da Revista Fórum Semanal
É de conhecimento público e notório que Jair Bolsonaro fez uma das piores gestões de crise sanitária do mundo durante a pandemia do coronavírus. O ex-presidente foi alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), em 2021, que atribuiu a ele os crimes de epidemia com resultado de morte; infração de medidas sanitárias preventivas; charlatanismo; incitação ao crime; falsificação de documento; emprego irregular de verba pública; prevaricação; e crimes contra a humanidade.
Juntas, as penas para esses crimes podem somar mais de 40 anos de prisão. Até o momento, entretanto, a Procuradoria-Geral da República (PGR) não deu seguimento a nenhum processo com base no relatório produzido pela CPI e o ex-mandatário segue impune.
Uma primeira sinalização de que Bolsonaro pode vir a pagar pelos crimes relacionados à pandemia que supostamente cometeu, contudo, veio na última terça-feira, 19 de março, quando a Polícia Federal (PF) finalizou uma investigação de dez meses e indiciou o ex-presidente, junto a outras 16 pessoas, entre elas o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência, por um esquema de fraude em certificados de vacinação contra a Covid-19.
Desde maio de 2023, quando o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a Operação Venire, ocasião em que Mauro Cid foi preso, a PF reuniu inúmeras provas e evidências que dão conta do esquema de falsificação de atestados de vacina - justamente aquela que Bolsonaro tentou sabotar.
Segundo as investigações, com a ajuda de Cid e outros integrantes daquilo que PF classifica como uma organização criminosa, Bolsonaro inseriu informações falsas de vacinação contra a Covid-19 no ConecteSUS, sistema de dados do Sistema Único de Saúde, para conseguir emitir certificados de vacinação e usá-los, por exemplo, para burlar restrições sanitárias em vigência no próprio Brasil e também nos Estados Unidos.
Uma dessas inserções, de acordo com os investigadores, teria ocorrido poucos dias antes de Bolsonaro viajar aos Estados Unidos, em dezembro de 2022 – último mês de mandato como presidente. Naquele momento, os EUA exigiam comprovante de vacinação para admitir a entrada de estrangeiros.
O relatório da PF aponta, ainda, que Cid usou o próprio login, a mando de Bolsonaro, para imprimir os certificados fraudados em um computador dentro do Palácio da Alvorada, em 27 de dezembro de 2022, para que o ex-presidente pudesse entrar nos EUA, para onde fugiu dois dias depois, antes da posse de Lula. Até mesmo a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e a filha mais nova do casal, Laura, teriam “ganhado” certificados de vacina fraudados no esquema.
Após a conclusão das investigações, a PF indiciou Bolsonaro por dois crimes: associação criminosa, cuja pena prevista é de um a três anos de prisão; e inserção de dados falsos em sistemas de informação, crime também conhecido como peculato digital, cuja pena varia entre 2 a 12 anos de reclusão, além de multa.
Com o indiciamento, o caso é enviado para o Ministério Público Federal (MPF), que decidirá se remete ou não o caso à Justiça, que pode transformá-lo em uma ação penal e ensejar o julgamento e eventual prisão do ex-presidente.
Não é um mero delito de falsificação
Apesar da falsificação de cartão de vacina soar como um crime de menor gravidade, deflagrado apenas para benefício próprio e que, em tese, “não prejudicaria ninguém”, trata-se, neste caso, exatamente do oposto. É o que sustenta Thiago Campos, professor e advogado especialista em Direito Sanitário e Gestão da Saúde Pública.
Em entrevista à Fórum, Campos fez questão de destacar que a gravidade da fraude em cartão de vacina vai para muito além da mera falsificação em si. “O indiciamento do ex-presidente é bastante grave. Tanto do ponto de vista jurídico, quanto do ponto de vista da simbologia que expressa para a sociedade o indiciamento de um ex-presidente da República por fraude no cartão de vacinação”, introduz o advogado.
Segundo o especialista, a situação apontada pela PF no relatório que indicia o ex-presidente configura um crime contra a coletividade que pode ter motivado inúmeras consequências desastrosas para a população.
“Não é um simples delito, mas um crime contra a coletividade, contra o dever de probidade das autoridades públicas. contra a verdade; e, pior, um crime contra a credibilidade da mais alta autoridade do país, praticada no mais grave momento vivenciado pela humanidade neste século: a pandemia da Covid-19”, assevera o especialista.
De acordo com Thiago Campos, o ato de Bolsonaro em fraudar certificado de vacina contra a Covid deve ser “lido com a necessária indignação de estarmos diante do possível cometimento de um delito contra toda a sociedade”.
O advogado explica que, somadas às falas negacionistas proferidas pelo ex-presidente durante toda a pandemia, a atitude do ex–mandatário não só “expressa o desprezo para com o cuidado de seus semelhantes e com a saúde pública”, mas também teria colocado em risco a saúde individual das pessoas que podem ter sido expostas ao vírus e “comprometido os enormes esforços coletivos para conter a disseminação da doença e proteger a população em geral”.
“Em se tratando de conduta praticada por ex-presidente da República, tem, sem sombra de dúvida, uma relevância ainda maior, tendo grande potencial de influenciar a população e afetar a confiança nos programas de vacinação, extremamente necessários para o controle do avanço da doença, além de prejudicar a capacidade de lidar eficazmente com a pandemia”, explica.
O advogado vai além e elenca, em quatro pontos, as consequências para a sociedade, no âmbito do Direito Sanitário, de uma situação na qual o presidente da República, no exercício de seu mandato, incorre em falsificação de certificado de vacinação.
1 - Desconfiança nas autoridades de saúde: a manipulação de dados oficiais, como os registros de vacinação, diminui a confiança nas autoridades de saúde. As pessoas podem questionar a integridade dos sistemas e se perguntar se as informações fornecidas são confiáveis.
2 - Ceticismo em relação à vacinação: A falsificação de certificados de vacinação pode levar ao ceticismo em relação à eficácia das vacinas. Se as pessoas acreditam que os certificados podem ser forjados, isso pode prejudicar a adesão à vacinação e comprometer os esforços de controle da pandemia.
3 - Impacto na credibilidade do sistema de saúde: Quando os dados são manipulados, a credibilidade do sistema de saúde é prejudicada. Isso afeta não apenas a resposta à pandemia, mas também outras áreas da saúde pública.
4 - Descrença nas instituições governamentais: A operação da PF e as suspeitas de crimes envolvendo um ex-presidente podem levar as pessoas a questionar a integridade das instituições governamentais. Isso pode afetar a confiança no sistema de Justiça e na aplicação da lei.
Improbidade sanitária
A Polícia Federal indiciou Jair Bolsonaro por “apenas” dois crimes: o de associação criminosa e o de inserção de dados falsos em sistemas de informação.
O advogado sanitarista Thiago Campos sustenta, entretanto, que o ex-presidente pode ter incorrido em ainda mais crimes. Um deles é o de infração de medida sanitária, previsto no artigo 268 do Código Penal Brasileiro e que prevê pena de um mês a um ano de prisão, além de multa.
O especialista chama atenção, contudo, para outro possível delito associado a Bolsonaro: o de improbidade sanitária, que é um conceito de improbidade administrativa aplicado aos atos relacionados à segurança sanitária enquanto responsabilidade do gestor público ou agente do Estado
“Penso ainda estarmos diante de outros delitos, especialmente o de improbidade sanitária. O indiciamento do ex-presidente e as informações até então disponíveis indicam que o agir da autoridade foi livre e consciente, objetivando o alcance de resultado ilícito, qual seja, a falsificação do cartão de vacinação. A suposta conduta dolosa intenta, portanto, contra os princípios da administração pública e viola os deveres de honestidade e de legalidade, devendo incidir a sanção correspondente, pois caracteriza a improbidade”, explica.
De acordo com o advogado “isso significa que ex-presidente teria agido de maneira contrária aos princípios da administração pública ao violar normas e regras sanitárias estabelecidas para proteger a saúde pública durante a pandemia da Covid-19”.
O ato de improbidade sanitária pode ensejar, para além de sanções no âmbito civil, como multa, perda da função pública e suspensão dos direitos políticos, responsabilização criminal nos casos graves, como aparenta ser o de Bolsonaro, o colocando sob risco de penas privativas de liberdade - em outras palavras, prisão.
“Contudo, para que seja determinada a prisão do ex-mandatário será necessário ainda o transcurso de um longo processo criminal, que depende, inicialmente, da avaliação do relatório da autoridade policial pelo Ministério Público, titular da ação penal. Caso concorde com a conclusão, deverá ser apresentada denúncia contra o ex-presidente, iniciando-se assim o processo penal”, pondera Thiago Campos.