MUDANÇA DE DOUTRINA?

General critica agenda de defesa voltada para questões internas e defende integração regional

General Richard Nunes sinaliza para possível mudança doutrinária do Exército ao questionar foco em "assuntos internos" e buscar integração regional

O general Richard Fernandez Nunes.O general Richard Fernandez Nunes de uniforme camuflado do Exército, falando ao microfoneCréditos: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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Em discurso no dia 28 de outubro, durante o I Seminário de Integração dos Exércitos Sul-Americanos, o chefe do Estado-Maior do Exército brasileiro, general Richard Fernandez Nunes, questionou a atual estratégia de defesa do país, que segundo ele estaria “segmentada e voltada para assuntos de natureza interna”. Com essa crítica, Nunes trouxe à tona o debate sobre a tradicional Doutrina de Segurança Nacional do Exército, marcada pelo conceito do “inimigo interno” – uma visão que há décadas molda a postura da instituição ao focar prioritariamente em "ameaças interna"s, como movimentos sociais, ativistas e opositores políticos.

“O seminário pode clarear uma série de aspectos relacionados à agenda de Segurança e Defesa, que ficou muito segmentada e voltada para assuntos de natureza interna dos países; temos que pensar grande e entender que a defesa de um país demanda muito mais conhecimentos, e que a integração de visões distintas entre países tão próximos é fundamental”, afirmou o general.

A Doutrina do “Inimigo Interno” e sua influência no Exército

A fala de Nunes se insere em um contexto onde a Doutrina de Segurança Nacional – formalizada no período da ditadura militar (1964-1985) – consolidou a visão de que o principal perigo ao Estado viria de dentro. Essa doutrina foi construída com influências da Guerra Fria e adotou uma postura anticomunista, legitimando a repressão a movimentos e ideologias considerados subversivos. Essa visão ainda prevalece em setores das Forças Armadas, orientando uma estratégia de segurança que privilegia a vigilância e o controle sobre a população, considerada uma fonte de potenciais ameaças ao regime estabelecido.

O conceito do “inimigo interno” continua sendo uma mentalidade enraizada nas Forças Armadas brasileiras. Ela identifica possíveis ameaças na própria sociedade, desde grupos organizados até intelectuais e ativistas, todos vistos como riscos para a estabilidade do Estado. Esse princípio histórico influenciou a formação e o comportamento militar por décadas, promovendo a ideia de que o Exército não apenas defende as fronteiras, mas também “protege” a ordem interna contra qualquer desafio ao status quo.

Seminário internacional e a proposta de Nunes para uma defesa regional

A fala de Nunes, portanto, representa uma tentativa de romper com essa visão histórica, propondo uma abordagem mais ampla e colaborativa. Realizado no Quartel-General do Exército em Brasília, o seminário reuniu representantes de nove países da América do Sul para discutir temas de defesa e segurança em um cenário de ameaças globais emergentes, como cibersegurança, terrorismo e desastres naturais. Nunes e outros líderes militares presentes ressaltaram a importância da interoperabilidade – a capacidade das forças armadas dos países trabalharem em conjunto – como um passo importante para uma defesa integrada e preventiva.

Ao sugerir que o foco exclusivo em “assuntos de natureza interna” limita a estratégia de defesa, Nunes indicou que o Brasil poderia se beneficiar de uma agenda menos restrita, alinhada às necessidades de segurança regional. Essa perspectiva reflete um distanciamento da postura de controle doméstico imposta pela Doutrina de Segurança Nacional e uma possível reorientação do Exército para uma atuação mais aberta à cooperação regional.

Nota oficial do Exército

A crítica de Nunes sobre a segmentação da agenda de defesa e o foco em questões internas levou a questionamentos sobre o que ele entendia por “assuntos de natureza interna”. Em resposta a uma solicitação da coluna, o Centro de Comunicação Social do Exército afirmou que “o trecho do discurso citado deve ser considerado exatamente como relatado, no contexto do 1° Seminário de Integração dos Exércitos Sul-Americanos”. A nota sugere que a declaração de Nunes deve ser entendida no âmbito da cooperação entre as nações sul-americanas e da diplomacia militar, mas deixa espaço para interpretações sobre as implicações desse posicionamento para a doutrina do Exército.

Desafios para superar a doutrina do inimigo interno

Embora a fala do general Nunes sinalize uma possível mudança de foco, essa transição não será simples. A lógica do “inimigo interno” está profundamente arraigada na estrutura das Forças Armadas e reflete uma tradição histórica que ultrapassa o período da ditadura, remontando ao próprio surgimento do Exército brasileiro. Essa mentalidade tornou-se uma base sólida na doutrina militar, promovendo uma vigilância permanente sobre a sociedade civil em nome da segurança nacional. Com isso, a doutrina orienta as ações do Exército a priorizar o controle social, o que dificulta uma transição para uma agenda mais colaborativa e regional.

Para muitos especialistas, transformar essa visão requer tempo e uma mudança cultural profunda, especialmente em setores que ainda consideram o “inimigo interno” uma ameaça constante. Essa resistência interna é um desafio, especialmente em tempos de globalização, onde a segurança nacional depende cada vez mais de abordagens cooperativas e transnacionais.

Se houver uma abertura para “pensar grande” e adotar uma estratégia de defesa que contemple a integração regional, como sugerido por Nunes, o Brasil poderá estar diante de uma oportunidade para consolidar um papel de liderança em uma defesa moderna e diplomática na América do Sul. Contudo, essa transição ainda enfrenta o conservadorismo doutrinário que mantém viva a lógica do “inimigo interno”. A declaração de Nunes representa, assim, uma tentativa de diálogo com uma nova realidade, mas que dificilmente superará uma visão arraigada que posiciona o Exército como vigilante da ordem interna.

O debate promovido no seminário e a declaração do general abrem um questionamento fundamental: até que ponto o Exército brasileiro está disposto a redefinir sua missão em direção a uma defesa mais colaborativa e menos voltada ao controle sobre a população? A resposta a essa questão pode determinar o rumo da segurança nacional nos próximos anos e o papel do Brasil no contexto de segurança regional.