A decisão do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a anulação de todas as provas contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva obtidas através do acordo de leniência da Lava Jato com a Odebrecht, abre caminho para a responsabilização civil e criminal de membros da operação envolvidos na investigação que levou à condenação - anulada - do mandatário, entre eles o ex-juiz Sergio Moro, atualmente senador, e o ex-procurador Deltan Dallagnol, que se elegeu deputado federal e teve o mandato cassado em junho deste ano.
A avaliação é de juristas ouvidos pela Fórum, que chamam a atenção para o fato de que a decisão de Toffoli reforça as ilegalidades que permearam a prisão de Lula, definida pelo ministro do STF como "um dos maiores erros judiciários da história do país".
Em um despacho de 136 páginas, atendendo a uma reclamação protocolada pela defesa de Lula, Toffoli não só anulou as provas contra Lula, que segundo ele foram obtidas de maneira ilegal, como encaminhou o caso à Procuradoria-Geral da República (PGR), Advocacia-Geral da União (AGU), Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e outros órgãos para que membros da Lava Jato sejam investigados nas esferas civis, administrativa e criminal por eventuais desvios e abusos na condução da operação.
O ministro usou como base, em sua decisão, as descobertas da Operação Spoofing, da Polícia Federal, que revelou mensagens, antes divulgadas através de Walter Delgatti, o "Hacker de Araraquara", entre Moro, Dallagnol e outros integrantes do Ministério Público combinando procedimentos para condenar investigados no curso das investigações.
"Pela gravidade das situações estarrecedoras postas nestes autos, somadas a outras tantas decisões exaradas pelo STF e também tornadas públicas e notórias, já seria possível, simplesmente, concluir que a prisão do reclamante, Luiz Inácio Lula da Silva, até poder-se-ia chamar de um dos maiores erros judiciários da história do país. Mas, na verdade, foi muito pior. Tratou-se de uma armação fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado", pontuou Toffoli em um dos trechos de sua decisão.
"Diante desses fatos que corroboram as conclusões de que os referidos elementos de prova são imprestáveis, reputo, de imediato, necessário oficiar-se à Advocacia-Geral da União, ao Ministério das Relações Exteriores e ao Ministério da Justiça, bem como à Controladoria-Geral da União, ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do Ministério Público, bem como outras instituições que mencionarei ao final, para que seja possível a adoção de medidas necessárias para se apurar responsabilidades não apenas na seara funcional, como também na esfera cível e criminal, consideradas as gravíssimas consequências dos atos referidos acima para o Estado brasileiro e para centenas de réus", escreveu ainda o ministro.
Próxima etapa: responsabilização criminal
Em entrevista à Fórum, o advogado e professor de direito constitucional Pedro Serrano avaliou que a decisão de Toffoli "claramente expõe a inconstitucionalidade e profunda ilegalidade das provas colhidas na Lava Jato por meios abusivos e também das leniências e das delações realizadas". "Ou seja, o processo como um todo foi fraudulento", analisa.
Segundo Serrano, a próxima etapa do caso, neste momento, deve ser a responsabilização dos agentes envolvidos, entre eles Moro e Dallagnol, por conta dos desvios e abusos apontados pelo ministro do STF em seu despacho.
"Acho que agora o importante, como o próprio ministro aponta, é passar a responsabilização dos agentes pelos desvios e abusos. A União precisa agir para responsabilizar no campo civil os agentes que abusaram porque eles ocasionaram danos à União, e no campo criminal a Polícia Federal e o Ministério Público precisam apurar para verificar se houve crimes", pontua.
"Aparentemente há fortes indícios de que houve crime nos abusos cometidos. Então, é isso que precisa haver agora, partir para a etapa seguinte, que é apurar os crimes e promover a responsabilização pelos danos ocasionados ao erário público", prossegue Pedro Serrano.
O advogado Marco Aurélio Carvalho, especialista em direito público e coordenador do Grupo Prerrogativas, afirma, por sua vez, que "a decisão do ministro Toffoli foi muito corajosa, muito oportuna e verdadeiramente histórica".
"Ele merece o nosso reconhecimento e o nosso aplauso. Ele confirmou tudo aquilo que a gente vinha denunciando. A Lava Jato foi, de fato, uma operação com objetivos políticos e eleitorais. Alguns agentes do Estado se apoderaram das nossas instituições para promover perseguições contra determinados específicos alvos e agora podem ser responsabilizados civil e criminalmente por conta dessas ações criminosas que dirigiram, em especial, contra o presidente Lula", atesta o jurista.
Sobre possível punição de Moro e Dallagnol na seara criminal, Cavalho declara que "esse é, inclusive, o caminho natural". "Que essa responsabilização venha e que tenha efeitos pedagógicos para evitar que novas injustiças sejam perpetradas contra quem quer que seja", assinala.
Fórum também ouviu o advogado criminalista Adriano Alves, que analisa que a decisão de Toffoli "indica seriedade do poder judiciário na reanálise dos processos julgados em Curitiba".
"O processo judicial é meio de buscar o direito e a justiça, não pode ser usado de maneira parcial. Mesmo o fiscal da Lei, que em algumas regiões age como acusação, deve buscar a aplicação da Lei e não projetos de poder", argumenta.
Alves, que é membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP), afirma que, pelo fato do julgamento que levou Lula à prisão ter sido considerado improcedente, a anulação das provas determinada por Toffoli "talvez não tenha grande impacto jurídico" para o presidente. O advogado, porém, diz que os "os reflexos podem vir em face de figuras como Moro e Dallagnol".
"As investigações podem levar a punições, mesmo tendo renunciado para assumir seus mandatos. As investigações mostraram o caminho de eventuais processos punitivos", complementa.
AGU e Ministério da Justiça entram em campo
A Advocacia-Geral da União (AGU), logo após a decisão de Toffoli ser divulgada, anunciou a criação de uma força-tarefa para apurar desvios de agentes públicos no âmbito da operação Lava Jato.
De acordo com nota emitida pelo órgão, o objetivo é "apurar desvios de agentes públicos e promover a reparação de danos causados por decisões proferidas pelo Juízo da 13ª Vara Federal Criminal da Subseção Judiciária de Curitiba/PR, contra Luiz Inácio Lula da Silva, atual presidente da República, bem como por membros do Ministério Público Federal no âmbito da chamada 'Operação Lava Jato'".
A AGU também explica que a criação da força-tarefa para investigar desvios de conduta de Moro, Dallagnol e outros envolvidos na Lava Jato atende à determinação do ministro do STF.
Segundo o advogado-geral da União, Jorge Messias, será dado cumprimento à decisão e “uma vez reconhecidos os danos causados, os desvios funcionais serão apurados, tudo nos exatos termos do que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal”.
O grupo a ser criado pela AGU analisará a conduta de procuradores da República e membros do Poder Judiciário durante a instrução e julgamento de casos da Lava Jato. Após a devida apuração, poderá ser cobrado dos agentes públicos, em ação regressiva, o ressarcimento à União relativo às indenizações pagas, sem prejuízo da oportuna apuração de danos causados diretamente à União pelas condutas desses agentes.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, por sua vez, anunciou que acionará a Polícia Federal (PF) "para cumprimento da determinação de apuração de responsabilidade criminal de agentes públicos".
"A decisão do ministro Toffolli tem dois alcances: um de natureza jurídica, reafirmando a inocência do presidente Lula, indevidamente julgado sem o devido processo legal; o outro é de natureza política, na medida em que fica o registro dos absurdos perpetrados em uma página trevosa da nossa História", declarou Dino.