Diante do avanço das investigações da Polícia Federal (PF) sobre o caso das joias e artigos de luxo entregues por autoridades estrangeiras de que Jair Bolsonaro teria se apropriado ilegalmente e vendido nos Estados Unidos, somado às graves denúncias feitas por Walter Delgatti Neto, o “hacker de Araraquara”, sobre tentativa de fraude ao sistema eletrônico de votação, uma pergunta não quer calar entre a população brasileira: afinal, Bolsonaro vai ser preso?
Considerando o fato de que o ex-presidente é alvo de diferentes acusações, que as investigações ainda estão em andamento e que, até o momento, ele não se tornou réu no âmbito das denúncias mais graves, trata-se de uma questão complexa e difícil de ser respondida de maneira objetiva. Juristas ouvidos pela Fórum, entretanto, apontam que há, sim, possibilidade de o ex-presidente ser preso em breve, por meio de uma eventual ordem de prisão preventiva ou ainda, a longo prazo, após os casos pelos quais ele é investigado transitarem em julgado.
Entre as principais investigações e acusações que pesam contra Bolsonaro e que têm potencial de encarcerá-lo estão as sobre: os atos golpistas do dia 8 de janeiro; o caso das joias; as denúncias de Walter Delgatti; a interferência na PF para proteger familiares suspeitos de corrupção; as milícias digitais, com disseminação de fake news sobre as urnas eletrônicas, sobre a pandemia e sobre as vacinas; falsificação de carteira de vacinação; e vazamento de informações de inquérito sigiloso sobre suposto ataque hacker ao sistema da Justiça Eleitoral.
Linhas investigativas: está tudo interligado
A investigação da PF que apura apropriação e venda indevida de joias e artigos de luxo recebidos em viagens oficiais e que deveriam ser incorporados ao patrimônio do Estado brasileiro atinge diretamente Jair Bolsonaro e, segundo juristas, é uma das que mais tem potencial de ensejar uma ordem de prisão contra o ex-presidente.
O caso veio à tona a partir da operação “Lucas 12:2”, que teve como alvos: o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e que está preso desde maio por liderar um esquema de falsificação de cartões de vacinação; o general Mauro Cesar Lourena Cid, pai do tenente e amigo de longa data do ex-presidente; o tenente Osmar Crivelatti, que também trabalhava na Ajudância de Ordens da Presidência da República; e Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro.
Todos eles, segundo a PF, integrariam uma "organização criminosa" que se apropriou ilegalmente de bens dados como presente ao Estado brasileiro para vendê-los nos Estados Unidos.
As investigações mostram o envolvimento direto de Jair Bolsonaro: há registros de mensagens de Mauro Cid orientando seu pai a entregar o dinheiro de uma dessas vendas em espécie diretamente ao ex-mandatário; o advogado Frederick Wassef já assumiu que foi aos EUA para recomprar um relógio Rolex que havia vendido, após determinação do Tribunal de Contas da União (TCU) para que o objeto fosse devolvido; e o advogado de Cid, Cezar Bitencourt, disse que partiu de Bolsonaro a ordem para que o ex-ajudante de ordens vendesse as joias e que o ex-presidente teria recebido os valores dessas vendas.
O caso das joias, entretanto, não é isolado. Trata-se de uma das frentes de investigação da PF que se ramificou em diferentes apurações. Todas elas têm como base o mesmo inquérito: o das milícias digitais (INQ 4.874/DF).
Segundo o despacho do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que autorizou a operação de busca e apreensão sobre o caso das joias, a partir do avanço das investigações, a PF identificou "cinco eixos principais de atuação da referida organização criminosa", que são:
1 - Ataques virtuais a opositores;
2 - Ataques às instituições (STF, TSE), ao sistema eletrônico de votação e à higidez do processo eleitoral;
3 - Tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito;
4 - Ataques às vacinas contra a covid-19 e às medidas sanitárias na pandemia;
5 - Uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens.
Chances de prisão
Os mesmos personagens, incluindo Jair Bolsonaro, aparecem nas apurações dos cinco eixos investigados. É na frente sobre uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens que consta o esquema da venda das joias e artigos de luxo.
O ex-presidente também é investigado como “autor intelectual” do movimento golpista que culminou na invasão às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro. Segundo juristas ouvidos pela Fórum, essa investigação e a que envolve as joias são as que podem levar Bolsonaro à cadeia no curto prazo, já que, a depender da conduta do ex-presidente, há potencial para que seja decretada uma ordem de prisão preventiva.
“As investigações envolvendo os atos antidemocráticos do 8 de janeiro e as questões das joias trazem um panorama mais sensível em relação à possibilidade, ainda que prospectiva, de imposição de medidas cautelares mais incisivas contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. Notadamente, quanto aos eventos de 8 de janeiro, não se pode ignorar a possibilidade de que o contexto político opere força no ambiente jurídico da discussão. Ademais, as imputações criminais cogitadas, neste particular cenário, são mais gravosas e o contexto processual pode favorecer eventual hipótese de decretação de uma prisão preventiva contra o ex-presidente”, analisa o advogado criminalista Berlinque Cantelmo, sócio do Cantelmo Advogados.
Segundo Cantelmo, os fatores que podem ensejar uma prisão preventiva de Bolsonaro são a ameaça à ordem pública, à ordem econômica, à instrução criminal e à aplicação da lei penal. Isto é, se o ex-mandatário tentar, por exemplo, eliminar provas da investigação ou deixar o país.
“Em suma, o ex-presidente tem plenas possibilidades, inclusive econômicas, de deixar o país a qualquer momento. Paralelamente, tem força política para exercer influência ou pressão sobre eventuais testemunhas. Hipoteticamente, essas circunstâncias seriam capazes de justificar um decreto prisional preventivo baseado na proteção da instrução criminal e na aplicação da lei penal. Em tese, seria possível”, pontua o advogado.
O advogado criminalista Fernando Augusto Fernandes, doutor em ciência política pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em criminologia e direito penal pela Universidade Cândido Mendes, vai na mesma linha.
“A minha avaliação é que a prisão preventiva precisa ser apreciada se houver constatação de que Bolsonaro esteja atrapalhando as investigações. Isso deve ser apreciado pelo STF”, diz.
Também ouvido pela Fórum, o advogado Diogo Fernandes Gradim, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e especialista em direito e processo penal, concorda que os casos dos atos antidemocráticos e das joias são os que oferecem mais risco a Bolsonaro e diz que, sim, há possibilidade de o ex-presidente ser alvo de uma ordem de prisão preventiva.
“Até o presente momento, pelo que foi divulgado, as investigações que parecem mais avançadas são as dos atos antidemocráticos e do caso das joias, em que já se aponta para o círculo mais próximo do ex-presidente. Pela necessidade de individualizar uma conduta, o caso das joias mostra elementos que se aproximam mais de uma conduta do presidente, com diálogos afirmando sua participação nas vendas”, declara Gradim.
“Sobre prisão preventiva, ela ocorre em hipóteses excepcionais. A regra é que a prisão somente ocorra após a pessoa ser denunciada pela prática do crime e que tenha o direito de se defender em juízo. Caso se descubram indícios concretos de que estaria planejando uma fuga, isso pode levar à prisão por algum dos outros delitos, pois essa é uma hipótese independente de prisão preventiva. Além disso, pode ser descoberta alguma conduta de destruição de provas, intimidação ou influência em testemunhas em algum desses casos, o que também abriria uma nova possibilidade de prisão preventiva”, prossegue.
“Atualmente, pelo que sabemos até agora, acredito que o caso das joias teve uma interferência posterior que pode ser interpretada como uma interferência indevida na investigação, uma das hipóteses de decretação da prisão preventiva”, completa o especialista.
Condenação
Caso o STF e a PF avaliem que não há elementos para se decretar uma prisão preventiva de Bolsonaro, isto é, se não considerar que o ex-presidente esteja atrapalhando as investigações ou a ordem pública, ainda há possibilidade de prisão após os casos se tornarem ações penais e o ex-mandatário ser julgado e condenado.
Esse processo, entretanto, demoraria mais e Bolsonaro só poderia ser encarcerado após os processos transitarem em julgado. Os especialistas entrevistados pela Fórum, entretanto, acreditam que o ex-presidente deva, sim, sofrer condenação em alguma das inúmeras investigações das quais é alvo.
O advogado Fernando Augusto Fernandes cita, por exemplo, a apuração relacionada ao caso da apropriação indevida e venda das joias e artigos de luxo recebidos pelo ex-presidente em viagens oficiais ao exterior, que podem levá-lo a uma condenação pelos crimes de peculato e evasão de divisas.
“Em relação ao devido processo legal, os elementos colhidos pela Polícia Federal sobre o crime de peculato, que é o desvio de valores ou bens da União dos quais ele teve a posse quando era presidente, com a comprovação da venda, são evidentes. Portanto, além das investigações em relação aos crimes contra a democracia, que devem ter desdobramento, o crime de peculato e a comprovação que ele cometeu evasão de divisas levando esses valores para fora sem declarar são de uma evidência que levam à certeza de uma ação penal e à quase certeza de uma condenação e prisão com o devido processo legal. É muito difícil e improvável que, diante de elementos tão profundos e concretos, haja uma possibilidade de absolvição com relação a esses crimes”, atesta Fernandes.
O advogado cita, ainda, as graves acusações feitas por Walter Delgatti Neto à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos Golpistas e à PF, no sentido de que foi procurado por Bolsonaro com uma proposta para invadir o sistema eletrônico de votação para comprovar uma pretensa possibilidade de fraude nas urnas. Segundo Fernandes, caso essas acusações sejam provadas, elas podem ser unidas ao inquérito que apura os ataques ao sistema eleitoral, pelo qual Bolsonaro também é investigado.
“A conversa de Bolsonaro com Delgatti sobre a tentativa de se invadir a urna eletrônica, por si só, sozinha, me parece um crime impossível tendo em vista a impossibilidade técnica absoluta de invadir a urna. Portanto, examinada sozinha, não deveria gerar consequência nenhuma. No entanto, apreciada essa conversa, em conjunto e concatenada com outros elementos, que são os crimes contra a democracia e os ataques contra a democracia, esse elemento é um dos indícios a se somar com as fake news que agora surgem com ele [Bolsonaro] mandando remeter, os ataques ao TSE, ao STF. No conjunto, esses elementos podem levar à condenação de Bolsonaro em relação aos crimes contra a democracia, em especial a tentativa de golpe de Estado do dia 8 de janeiro”, analisa o jurista.
O advogado Berlinque Cantelmo também disse à Fórum acreditar que uma eventual condenação de Bolsonaro por um dos casos citados é plausível após o decorrer do processo.
“A condenação criminal depende de um processo com ampla possibilidade de defesa dos envolvidos. O desfecho de eventual condenação penal depende, fundamentalmente, do material probatório produzido ao longo do processo. Mas, sim, poderia ser um cenário crível”, pontua.
Já o advogado Diogo Fernandes Gradim chama atenção para o fato de que ainda é cedo para avaliar uma prisão para cumprimento de pena de Bolsonaro porque sequer há processo iniciado, mas apenas investigação da PF.
“Após finalizada a investigação, o relatório será enviado ao Ministério Público, que pode oferecer denúncia. Somente após a apresentação da denúncia e suas provas, bem como da defesa e suas provas, o cenário estará definido”, explica.
Gradim, entretanto, afirma ser “bem possível” que Bolsonaro seja condenado e preso após as investigações serem finalizadas, caso elas se tornem ações penais e sejam julgadas.
“É bem possível [a condenação e prisão de Bolsonaro]. Há um número considerável de investigações já em andamento, algumas com avanços significativos e com algumas alegações bastante graves. Há um componente de sensibilidade política que envolve o caso e que precisa ser levado em consideração já que o ônus de condenar alguém poderoso é grande”, afirma.
“Juridicamente, além da gravidade e da quantidade dos crimes imputados, ainda há muitos atos de investigação para serem feitos e muitas linhas a serem exploradas. Ao longo do tempo e das investigações ficará mais evidente se houve a participação direta do ex-presidente em alguns desses atos e em que medida”, finaliza o advogado.