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Por dever de ofício, preservo a fonte. Vamos chamá-lo de G. Levado por um colega, fui encontrá-lo em um restaurante da Vila Madalena, em São Paulo.
Eu era repórter da TV Globo, recém-chegado dos Estados Unidos. Era novato em coberturas políticas no Brasil.
O governo Lula, em primeiro mandato, estava no alvo de três investigações no Congresso: a CPI do Mensalão, a CPMI dos Correios e a CPI dos Bingos, que era a “do fim do mundo”, pois nela cabia qualquer coisa.
José Dirceu, o ministro-chefe da Casa Civil de Lula, já tinha sido alvejado pela oposição demo-tucana, que pretendia enfraquecer o presidente em sua futura campanha de reeleição.
As comissões forneciam farto material de divulgação para o GAFE, que atuava praticamente em uníssono: os grupos Globo, Abril, Folha e Estadão atendiam à agenda única de colocar de volta Fernando Henrique e seus aliados no Planalto.
G. se dizia funcionário de uma corretora de seguros. Até hoje guardo o cartão que ele me entregou naquele dia. Era originário de Salvador, Bahia.
Veio ao meu encontro e ao de meu chefe para cacifar denúncias de caixa dois que seriam feitas contra Adhemar Palocci – o Paloção, irmão do então ministro da Fazenda de Lula –, que tinha atuado como tesoureiro de campanha do PT em Goiás.
Fiquei estupefato com o andamento da nossa investigação, toda ela exposta no Jornal Nacional. De fato, comprovamos que o dono de uma seguradora tinha bancado material de campanha e carro de som para uma candidatura petista coordenada por Paloção. Caso clássico de caixa dois, de doação eleitoral não declarada.
O empresário tinha obtido contratos milionários de seguro com empresas públicas, sugerindo uma troca de favores.
O caso foi parar em uma das CPIs. Foi minha primeira visita a Brasília como repórter investigativo. Acompanhado de uma preposta da direção da Globo, fui visitar os gabinetes de lideranças de vários partidos.
Achei aquilo tudo muito estranho. Estivemos com Antônio Carlos Magalhães Neto, então deputado federal do DEM, ao qual a preposta da Globo se referiu como Grampinho.
Também nos encontramos com Aloizio Mercadante, então deputado federal do PT.
Achei o ritual exótico porque jamais tive delegado, promotor ou deputado de bolso. Daqueles que te passam informação em troca de “imunidade jornalística”.
Teria sido mera formalidade diplomática ou tentativa de deixar claro que o assunto que nos trazia ao Congresso interessava à Globo?
Nos bastidores da comissão que investigava o caso, o ministro Antonio Palocci atuou para evitar que o irmão dele fosse convocado. Adhemar ocupava então um cargo na Eletronorte e não nos quis dar entrevista.
O dono da seguradora foi levado à força para depor, pela Polícia Federal. Confessou que, sim, tinha ajudado não só a campanha do PT, mas a de vários outros partidos. Apresentou uma longa lista e disse que dispunha de todas as informações nos arquivos da seguradora, que tinha sofrido intervenção.
Minha surpresa foi que a TV Globo, tão empenhada até então nas denúncias, recuou imediatamente. Minha visita a Brasília foi interrompida de maneira brusca.
Durante a investigação, tive acesso a uma troca de e-mails que envolvia gente graúda na hierarquia da Globo, dos quais mantenho cópia. As mensagens sugeriam não apenas caixa dois por parte da seguradora, mas que a investigação era de interesse da emissora.
Afinal, o assunto não tinha surgido das apurações corriqueiras daqueles que chamamos de pauteiros, mas tinha a marca REC. No jargão do telejornalismo, REC é aquela reportagem “recomendada". Pode até ser um assunto relevante e merecedor de atenção, mas a origem da pauta sugere que pode haver interesse da empresa nela.
Eu já havia dito a meu superior hierárquico imediato que, sem confirmação independente do conteúdo dos e-mails, não colocaria meu nome na reportagem. Suspeitava que as mensagens tinham sido obtidas de forma ilícita. Fui atendido, e o produtor Robinson Cerântula, numa viagem a Goiânia, conseguiu copiosa confirmação da denúncia.
A maior de todas as surpresas, no entanto, foi que, ao rever os e-mails que deram origem às reportagens, descobri que G., aquele homem do almoço da Vila Madalena, vindo direto de Salvador, era fonte da troca de mensagens.
Com a vantagem do olhar em retrospectiva e a experiência que acumulei nos últimos 20 anos, concluo: alguém queria alguma coisa de Antonio Palocci, o então ministro da Fazenda de Lula, naquele momento. Não dei conta de descobrir ainda o que era.
Por outro lado, o deputado ACM Neto, o primeiro que visitamos no Congresso, estava tão interessado no assunto que chegou a pedir à preposta da Globo que formulasse perguntas que ele deveria fazer durante o depoimento do dono da seguradora.
Mas quem era exatamente o personagem G.?
Aqui é preciso relembrar que Antonio Carlos Magalhães, aliado íntimo da Globo, retransmissor das imagens da emissora na Bahia e o civil mais poderoso durante a ditadura militar, depois de Roberto Marinho, era conhecido por produzir dossiês de seus adversários políticos.
G. era de Salvador, Bahia, terra onde ACM reinou e deixou o neto como herdeiro político. Não por acaso, ao visitar a Bahia recentemente, o presidente Lula andou nos relembrando que o apelido de ACM Neto é Grampinho.
G. era de Grampinho? Aqui não precisamos recorrer ao Sherlock.