CASSAÇÃO

Deltan Dallagnol: de paladino da moral e pretenso “Jesus” a deputado cassado por fraude à lei

O “herói” anticorrupção da Lava Jato, que usa a Bíblia como escudo, tentou fugir da aplicação da lei que ele sempre jurou defender

Deltan Dallagnol.Créditos: Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Escrito en POLÍTICA el

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Enquanto coordenador da Operação Lava Jato em Curitiba, o então procurador do Ministério Público Federal (MPF) Deltan Dallagnol nunca escondeu seu ímpeto de poder e de fazer política. Tido como “xerife” em sua atuação na força-tarefa, já foi considerado um “herói” anticorrupção.

Evangélico fervoroso, autodeclarado “seguidor de Jesus”, com quem já chegou a se comparar em mais de uma ocasião, Dallagnol sempre adotou o tom messiânico em seus discursos e se tornou um procurador midiático. Foi personagem central, ao lado do ex-juiz Sergio Moro, na trama com apresentações bizarras de PowerPoint que levou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva à prisão injusta, entre abril de 2018 e novembro de 2019; e ao longo deste período foi construindo seu capital político para, finalmente, pedir exoneração do MPF em novembro de 2021 e, assim, se candidatar a deputado federal em 2022.

A princípio, deu certo. Apesar de, em 2019, ter sido exposto na série jornalística “Vaza Jato”, que evidenciou um conluio ilegal do qual fazia parte com Moro e outros procuradores para prejudicar investigados (o que inclusive levou à anulação da sentença contra Lula), Dallagnol fez campanha com o apelo de que levaria “a Lava Jato para dentro do Congresso Nacional”. Tanto ele quanto Moro se elegeram – o primeiro para a Câmara e o segundo para o Senado.

O que o ex-procurador não esperava é que, em menos de seis meses, se tornaria também ex-deputado. Na noite do dia 16 de maio de 2023, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou por unanimidade seu mandato e evidenciou que o tal paladino da moral, na verdade, é um fraudador da lei que ele sempre jurou defender.

A cassação

O processo de cassação de Deltan Dallagnol teve início ainda antes das eleições de 2022, quando a federação Brasil da Esperança no Paraná, composta por PT, PCdoB e PV, e o Partido da Mobilização Nacional (PMN) acionaram a Justiça Eleitoral para impedir que o ex-procurador registrasse sua candidatura a deputado.

Nas ações apresentadas ao Tribunal Regional Eleitoral Paranaense (TRE-PR), os partidos argumentaram que Dallagnol estaria impedido de concorrer no pleito pois existiam contra ele procedimentos disciplinares pendentes no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) à época do seu pedido de exoneração do cargo, em novembro de 2021.

O regramento eleitoral, amparado pela Lei de Inelegibilidade e pela Lei da Ficha Limpa, prevê que magistrados, promotores e procuradores não podem ter procedimentos pendentes na esfera administrativa se almejam disputar eleições. A "quarentena" é de oito anos a partir do pedido de exoneração.

Assim versa a legislação:

“Art. 1o São inelegíveis:

I – para qualquer cargo: […]

q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos; […].”

O TRE-PR, no entanto, rejeitou as ações, sob o argumento de que Dallagnol, quando se exonerou, não tinha nenhum processo administrativo disciplinar (PAD) pendente, e o ex-xerife da Lava Jato conseguiu registrar sua candidatura, concorrer e se eleger. Os partidos autores das ações, porém, recorreram pelo fato de que os procedimentos disciplinares que pesavam contra Dallagnol no CNMP estavam na iminência de se tornarem processos administrativos, e de que o ex-procurador pediu exoneração justamente para evitar a penalização com que esses processos culminariam: a inelegibilidade.

Dallagnol já foi alvo de mais de 50 reclamações disciplinares e, quando se exonerou do MPF, tramitavam contra ele no CNMP nove dessas reclamações, uma sindicância, um pedido de providências, três recursos internos em reclamações disciplinares e uma revisão de decisão monocrática de arquivamento em reclamação disciplinar.

A partir dos recursos protocolados pelos autores das ações contra Dallagnol, o caso chegou ao TSE e todos os ministros consideraram que a exoneração do ex-procurador foi irregular, pois visava impedir o avanço dos 15 procedimentos disciplinares dos quais era alvo e que, em outro momento, poderiam acarretar sua demissão compulsória e consequente declaração de inelegibilidade.

O relator das ações no TSE, ministro Benedito Gonçalves, inclusive citou, na leitura de seu voto, que Dallagnol se exonerou apenas 16 dias após outro procurador da Lava Jato ter sido punido com demissão a partir de um processo administrativo oriundo de uma reclamação disciplinar por instalar um outdoor em homenagem à operação, com foto do agora ex-deputado. Naturalmente, Dallagnol seria punido pelo mesmo motivo se não tivesse deixado o cargo.

"Se efetivamente a intenção do Recorrido fosse a exoneração para fins eleitorais, não o faria em novembro de 2021 – logo após a demissão de seu colega Sr. Diogo Mattos Castor –, mas sim às vésperas do marco dos seis meses que antecedem as eleições. Há de se cogitar a factível tese de que o Recorrido teria se exonerado ainda em novembro de 2021 porque tinha plena ciência do risco da punição disciplinar que poderia levá-lo à pena de demissão do Ministério Público Federal – sobretudo quando já aplicadas as penas de censura e advertência”, declarou o magistrado

Segundo o ministro, “embora não se cuidassem de processos administrativos disciplinares (PAD) em sua acepção técnica, tem-se que, a partir das apurações nesses procedimentos, a posterior conversão ou instauração de PADs era a medida seguinte”, e nesse sentido Dallagnol incorreu em tentativa de fraudar o caminho que o levaria às sanções.

"A prática de um ato em tese legal assume caráter de fraude à lei quando se verifica que visou burlar procedimento previsto. Em outras palavras, quem pretensamente renuncia a um cargo para de forma dissimulada contornar vedação estabelecida em lei, incorre em fraude à lei", pontuou Benedito Gonçalves.

“O recorrido [Dallagnol] exonerou-se do cargo em 3 de novembro de 2021 com propósito de frustrar a incidência da inelegibilidade. Referida manobra [...] impediu que os 15 procedimentos em trâmite em seu desfavor viessem a gerar processos administrativos disciplinares que poderiam ensejar a pena de aposentadoria compulsória", emendou o relator.

A fundamentação do voto de Benedito Gonçalves, que citou inúmeras jurisprudências com relação ao caso, foi tamanha a ponto de ser seguido por todos os outros seis ministros da Corte Eleitoral.

“Proclamo o resultado: o tribunal por unanimidade deu provimento aos recursos ordinários para indeferir o registro de candidatura do recorrido Deltan Martinazzo Dallagnol ao cargo de deputado federal, comunicando-se de imediato ao Tribunal Regional Eleitoral do Paraná para imediata execução do acórdão independente de publicação, mantendo-se o cômputo dos votos em favor da legenda”, sentenciou o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes.

Recurso no STF: chances de reversão são mínimas

Deltan Dallagnol ainda pode recorrer da sentença que impôs a perda de seu mandato e consequente cassação ao Supremo Tribunal Federal (STF). Juristas, entretanto, avaliam que as chances do ex-procurador e agora ex-deputado de reverter a decisão são praticamente nulas.

Isso porque o STF não tem por hábito reverter votações do TSE, tendo em vista que três de seus ministros integram, ao mesmo tempo, as duas cortes.

Se apresentar recurso ao Supremo, portanto, já terá, automaticamente, três votos em seu desfavor, bastando apenas três outros para ser, novamente, derrotado.

Outro empecilho para o xerife da Lava Jato é que o placar no TSE foi de sete a zero, sem brechas para a discussão de novas teses jurídicas.

Uma razão ainda mais contundente é que as decisões da Corte Eleitoral não são baseadas apenas em livre interpretação da Constituição, mas em fatos e provas.

Deltan de Nazaré?

Conforme esperado, Deltan Dallagnol manteve seu discurso messiânico e de paladino da moral ao comentar sua cassação. Em coletiva de imprensa no dia seguinte ao da decisão do TSE, citou a Bíblia por mais de uma vez, e chegou até mesmo a se comparar com Jesus Cristo.

"O mesmo poder que eles têm de me cassar é o poder que Pilatos tinha ao mandar Jesus para a morte", disparou o ex-procurador da Lava Jato, que estava cercado de bolsonaristas durante sua fala.

Essa não foi a primeira vez que o ex-parlamentar se comparou ao líder dos cristãos. Em 2018, em mensagem enviada a si mesmo por meio do Telegram e vazada na série jornalística “Vaza Jato”, ele expôs o desejo de se candidatar ao Senado da seguinte maneira:

"Tenho apenas 37 anos. A terceira tentação de Jesus no deserto foi um atalho para o reinado. Apesar de, em 2022, ter renovação de só 1 vaga e de ser Álvaro Dias, se for para ser, será. Posso traçar plano focado em fazer mudanças e que pode acabar tendo como efeito manter essa porta aberta".

Em seu pronunciamento após a cassação, fazendo a clássica dicotomia rasa entre o “bem” e o “mal”, Dallagnol sugeriu que sua cassação é uma "vingança" por combater a corrupção, atacou o TSE, o ministro Gilmar Mendes, do STF, e ainda sugeriu que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estaria por trás de seu revés.

E por falar em Bíblia…

Ao votarem pela cassação de Dallagnol, os ministros do TSE tomaram como base a Lei da Ficha da Limpa, que também se aplica a magistrados e membros do Ministério Público Federal.

O que muita gente não sabia, porém, é que a emenda parlamentar que ampliou o escopo dessa legislação é de autoria de Flávio Dino, atualmente ministro da Justiça. No longínquo ano de 2010, quando sequer sabia da existência do agora ex-procurador, Dino exercia o cargo de deputado federal.

"Pois é. É da minha autoria, quando deputado federal, a emenda que em 2010 determinou a aplicação da Lei da Ficha Limpa a magistrados e membros do Ministério Público. Mas juro que não viajo no tempo, antes de que disso me acusem", escreveu o ministro em suas redes sociais.

De acordo com o texto da emenda apresentada por Dino, ficam "inelegíveis os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente, que tenham perdido seu cargo por sentença ou que venham a pedir exoneração ou aposentadoria enquanto houver julgamento do processo administrativo disciplinar pendente", situação em que o agora ex-deputado se enquadra.

Se Dallagnol é religioso, Dino também é. Ainda que o fato de o ministro da Justiça, há 13 anos, ter sido o responsável pela emenda que fundamentou a cassação de Dallagnol não configure, necessariamente, uma intervenção divina, a verdade é que ele igualmente usou a Bíblia (Mateus 5:6) para comentar a decisão – e dedicou o trecho do livro sagrado para os cristãos ao principal alvo do ex-procurador: Lula.

“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!”