LISBOA | Desde as primeiras horas da manhã, uma pequena concentração de radicais de extrema direita já ocupava uma das ruas que desembocam na Assembleia da República, o parlamento português, em Lisboa. Com o passar do tempo, o coro engrossou e os extremistas ocuparam a via de ponta a ponta das calçadas, embora estivessem presentes apenas numa curtíssima extensão da via. Essa gente, do partido ultrarreacionário e xenófobo ‘Chega’, liderada pelo deputado André Ventura, emula o bolsonarismo e, a seu modo, inferniza a sociedade portuguesa e tenta sequestrar e amedrontar as instituições democráticas do país, tal como sua inspiração brasileira.
No entanto, o rocambolesco “protesto”, eivado de gritos em tom castrense, não foi o suficiente para macular a sessão solene realizada em homenagem ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que entrou no plenário da Assembleia da República pontualmente às 10h, acompanhado do chefe de Estado português, Marcelo Rebelo de Sousa, do primeiro-ministro, António Costa, e do presidente do Legislativo, Augusto Santos, sob aplausos intensos da esmagadora maioria dos presentes nas galerias e nas bancadas onde ficam os parlamentares. A execução dos dois hinos nacionais deu ainda mais pompa ao acontecimento que raptou o noticiário de Portugal há meses.
Lula estava lá, no ponto mais alto da Assembleia da República, e num 25 de Abril. Nessa data, em 1974, os portugueses punham fim formalmente a uma desgastada, esgarçada e monstruosa ditadura que perdurou por 41 anos. O dia é o feriado nacional mais emblemático do país europeu e intensamente celebrado nas ruas e nas mais diversas instituições públicas da nação que um dia nos colonizou.
Por falar em colonização, a chegada de Lula sob aplausos e gritos após uma visita de Estado em que restabeleceu a conexão do Brasil com o resto do mundo, sobretudo com o Ocidente, assinando dezenas de acordos e recebendo calorosas boas-vindas dos principais atores políticos portugueses, em que pesem os deslizes no que diz respeito à guerra na Ucrânia, serviu mesmo foi como uma espécie de “redescobrimento”. A presença de Lula no Parlamento e toda sua intensa agenda mostraram que há vida após o bolsonarismo, e o mundo, ao que consta, já notou isso também.
O pequeno grupelho que forma a bancada do ‘Chega’, composta por 12 deputados, passou todo o período da solenidade de cara amarrada, no melhor estilo ‘bancada da bala’ de Jair Bolsonaro. A cara de quem estava ‘de mal com o mundo’ só mudou quando Lula discursou. Com boçalidade pueril, segurando cartazes com banalidades e chavões moralistas, mantinham-se de pé e cobriam os próprios rostos com esses papéis. Cada vez que o presidente brasileiro era aplaudido pelos parlamentares e pelo restante do público, como símios em apresentação num zoológico, os trogloditas socavam os balcões fazendo ressoar um irritante estrondo grave. Esse foi o ‘Chega’ na presença de Lula, a legenda que prometeu “o maior protesto da história de Portugal contra um chefe de Estado estrangeiro’.
Coube a Augusto Santos, o presidente da Casa, aplicar uma dura reprimenda nos arruaceiros de cariz bolsonarista. De dedo em riste, ele disse claramente para que a claque "parasse de sujar a imagem de Portugal". Lula não se fez de rogado e ainda em sua fala deu um tom de forte enfrentamento aos "fascistas", termo exato usado pelo líder brasileiro.
No discurso, Lula reforçou a guinada e moderação empregadas para desfazer o burburinho causado por sua declaração sobre a guerra da Ucrânia, dizendo que o país invadido tinha culpa na mesma medida que a Rússia, a invasora. Afagou a União Europeia e o fez via Portugal. Para além disso, reforçou o caráter humano de sua agenda e rogou aos anfitriões que por aqui fizessem o mesmo, justamente num momento em que o país ibérico enfrenta graves problemas em sua saúde pública e quando o discurso xenófobo não para de crescer.
Com cravos presos às roupas, um símbolo absoluto do 25 de Abril, célebre pelas imagens históricas em que soldados e populares circulavam carregando essa flor a tiracolo durante a derrubada da ditadura, um parlamento praticamente em uníssono entoou “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso, canção que serviu de senha para que os aderentes do Movimento das Forças Armadas (MFA) deixassem suas unidades militares naquele longínquo 1974 e colocassem em marcha o levante democrático que colocaria abaixo a mais duradoura ditadura do Ocidente no século 20. A emoção era nítida nos olhos de todos, até mesmo entre brasileiros que assistiam à sessão nas galerias do suntuoso edifício símbolo do poder do povo português.
Lula saiu como entrou, sob aplausos da imensa maioria. Despediu-se de Rebelo, Costa e Santos à frente de um tapete vermelho sobre o qual desceu as escadarias da Assembleia para chegar à rua. O ressoar dos bumbos dos extremistas seguia ao fundo, enquanto o comboio do chefe de Estado brasileiro ia embora, escoltado por batedores.
Nunca um ditado popular foi tão verdadeiro e tão adaptável a uma realidade. Diz o adágio que “os cães ladram, mas a caravana segue”. E foi bem assim. A extrema direita berrou, mas a caravana do prestígio de Lula seguiu seu rumo, sem quaisquer intercorrências relevantes. Como na poesia cantada “Tanto Mar”, de Chico Buarque, nosso finalmente galardoado artista, “foi bonita a festa, pá”. E ninguém conseguiu atrapalhar.