PETRÓPOLIS

Petrópolis: por que essas tragédias insistem em ocorrer e como evitá-las

Ermínia Maricato e Nabil Bonduki, que têm grande experiência em moradia social e tragédias urbanas, falam sobre saídas para o problema, que não são fáceis, mas existem

Tragédia em Petrólis.Créditos: Tânia Rego-Agência Brasil
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A arquiteta e urbanista Ermínia Maricato dá a dimensão para se compreender a tragédia ocorrida em Petrópolis, a partir das chuvas da semana passada, que deixaram até agora mais de 180 mortos: “mais de 70% da população brasileira vive fora da terra bem localizada, servida de estrutura, de iluminação pública, asfalto, transporte, água, esgoto, equipamentos de Saúde e de Educação”.

A isto, se junta a opinião do colega Nabil Bonduki e está configurada a desgraça: “os eventos extemos sempre aconteceram, não é um fenômeno recente, aconteceram ao logo da história em muitos lugares do mundo, isso não é uma novidade”, avisa o ex-vereador de São Paulo. “O que é uma novidade, que tem a ver com os eventos extremos vinculados ou relacionados com a chamada mudança climática é a frequência e intensidade desses eventos. É o que aconteceu, por exemplo, agora em Petrópolis”, completa.

Moradias informais

Ermínia lembra que a maior parte das moradias do Brasil são produzidas informalmente, ou seja, fora do mercado imobiliário e fora das políticas públicas. “São feitas pelos próprios moradores nos fins de semana sem a presença de arquiteto, engenheiro, sem aprovação de planta e especialmente a partir de um pedaço de terra que não tem registro em cartório”.

Este processo de exclusão, segundo a professora, é a regra e não a exceção. “As moradias feitas informalmente, além deste abismo social, de desigualdade, elas impactam profundamente o meio ambiente. Você tem grande parte dessas moradias ocupando áreas inadequadas ou proibidas de ocupação”, alerta.

De acordo com ela, “essa ocupação leva ao assoreamento das represas e à poluição da água. Este é um exemplo, mas eu poderia citar milhares. Eu estou acostumada a trabalhar todos os anos com essa realidade de acidentes por desmoronamentos de encostas”.

Preparar as cidades

Nabil afirma que é preciso, em primeiro lugar, “preparar as cidades para enfrentar essas situações de emergência, ou seja, criar aquilo que a gente chama uma cidade resiliente, uma cidade que consiga resistir a esses eventos sem mortes, sem muitos transtornos”.

De acordo com o arquiteto, “isso requer, antes de tudo, o monitoramento dessas áreas de risco, o que já existe com o Cemaden, que é o Centro de Monitoramento de Desastres Naturais”, ressalta. “O Brasil não é zero nesse tema”.  Ele também chama a atenção para as ocupações precárias em lugares inadequados. “Isso não vai ser alterado a curtíssimo prazo, então nós precisamos preparar as cidades pra que elas possam resistir a isso com sirenes e sistemas de alerta, por exemplo”.

O casarão de Ouro Preto

Como exemplo, os dois recordam do caso do casarão que desabou em janeiro, no Morro da Forca, em Ouro Preto. “Ele estava em uma local que estava mapeado e já diagnosticado como área de risco que mereceria intervenção por meio de obras” lembra Ermínia.

Nabil acrescenta que já haviam sido repassados recursos para o governo de Minas Gerais para que fosse feita uma intervenção no local. “Infelizmente, é por incapacidade gerencial que muitas vezes essas obras não são feitas. É importante que a gente tenha claro que a incapacidade dos municípios e dos estados em fazer as obras é uma coisa extremamente complicada”, completa.

Obras invisíveis

Ermínia, por sua vez, adverte que essas obras são invisíveis. “Depois que passa o perigo, os prefeitos vão lá fazer essas obras ou retirar a população e isso acaba tendo muito pouca visibilidade ou contribuição pro processo de reeleição e todo candidato a reeleição, com raras exceções, felizmente elas existem, eles preferem investir na cidade formal, na cidade visível, midiática, das rendas médias e altas, pois tem mais visibilidade”, destaca.

A professora corrobora com Nabil e lembra ainda que “existem leis, planos e conhecimento técnico no Brasil. Assim como Petrópolis tinha planos, feitos em 2018. Por lá ocorreram acidentes semelhantes em 1988, eu estive lá, e em 2011.  Isso é recorrente nas cidades brasileiras. Depois que acaba a emergência da visibilidade, do impacto, os políticos ignoram e acabam não executando os planos”, lamenta.

PAC

Bonduki reforça a inoperância ao lembrar um programa criado no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2012, durante o governo de Dilma Russeff, com mais de 100 bilhões de reais para que municípios e estados implantassem obras de controle de inundações, contenção de encostas e urbanização de favelas. “Infelizmente não foi levado adiante por conta da incapacidade dos governos seguintes e também dos governos municipais e estaduais de realizarem as obras que deveriam ter sido feitas”, completa.

Ausência do Estado

Ermínia Maricato reafirma que “o risco tem muito mais a ver com a ausência do Estado e do mercado. Do Estado através de políticas públicas e da regulação dessa produção informal”. Ela ressalta que “existe uma lei de 2008, que chama Lei da Assistência Técnica à Habitação de Interesse Social, que permite às prefeituras contratar assistência técnica, de arquitetos e engenheiros pra resolver nas periferias a ausência da urbanização de equipamentos, das infraestruturas e o risco de desmoronamento, o risco de deslizamento e a melhoria das condições de habitação”. No entanto, adverte ela, “essas leis avançadas, como o estatuto das cidades, por exemplo, são leis de baixa efetividade em nosso país. Mais da metade da nossa população não tem acesso à moradia formal, à terra regular. Não ganha pra isso”.

Terra e habitação

No final das contas, fica claro que, além do problema não ter solução fácil, ele passa por duas questões primordiais: a habitação social e a terra onde a habitação deverá ser construída.

“Nós não podemos ficar só na prevenção, nós precisamos evitar que surjam novas áreas de risco. Além disso, é necessário fazer a remoção das pessoas que já estão nessas áreas, mas de maneira criteriosa para que isso não se torne em mais um processo de exclusão”, adverte Bonduki. “Para isso é preciso produzir novas moradias.

Aqui, o professor volta à questão do início apresentada por Ermínia Maricato. “Uma boa parte desse contingente populacional não tem renda pra poder financiar a casa própria. Então nós precisamos ter alternativas que permitam que essa população passe a morar em condições adequadas. E então nós temos duas questões que são absolutamente fundamentais. Um deles é a questão da terra e o outro é a produção de moradia. Nós precisamos enfrentar o problema da terra, do acesso à terra pra população de baixa renda e também precisamos ter recursos pra produção habitacional. Na questão da terra, nós precisamos de uma decisão política, que enfrente também o problema da especulação imobiliária”.

Casa própria

Ermínia Maricato lembra que “recentemente teve uma pesquisa mostrando que a casa própria acaba sendo uma ambição maior do que o empego, casamento etc. As pessoas não têm recursos para pagar o aluguel, especialmente atualmente, em que a maior parte do salário mínimo vai pra alimentação e transporte. Não há dinheiro pra compra da moradia formal no mercado, da moradia regular e não há dinheiro pra compra de um terreno, ou aluguel, e não há acesso às políticas públicas. Neste governo então, muito menos”, encerra a professora.

Ermínia Maricato é doutora e professora titular aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Recentemente, exerceu o cargo de conselheira do Habitat, no programa das Nações Unidas para assentamentos humanos.

Nabil Bonduki é professor da USP, foi vereador da cidade de São Paulo pelo PT e relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.