Uma fuga de Jair Bolsonaro (PL) para escapar das garras da Justiça, após quatro anos de um comportamento que se assemelhou muito ao de um ditador, embora tenha encontrado em poucos setores de outras instituições republicanas uma resistência empedernida em defesa do Estado Democrático de Direito, já era esperada. No entanto, o que pegou quase todos de surpresa foi o desespero e a pressa do ainda presidente brasileiro de extrema direita de dar no pé antes mesmo do encerramento oficial de seu mandato.
A notícia foi dada como oficial pelos séquitos palaciano e partidário de Bolsonaro e um dos dois aviões da frota presidencial, da FAB, decolou de Brasília para Boa Vista (RR), para depois seguir para Miami, nos EUA, ainda na terça-feira (27), com uma comitiva de guarda-costas e assessores que em todas as viagens oficiais chegam antes ao destino para preparar a chegada do chefe de Estado. Os nomes dos seguranças também foram publicados no Diário Oficial da União (DOU), confirmando o deslocamento para o território norte-americano a serviço da Presidência da República. Bolsonaro até tentou embaralhar as informações quando a fuga caiu como uma bomba na imprensa e na opinião pública, mas não conseguiu enganar ninguém.
Mas a fuga desesperada do homem que se vangloriava de ser chamado de “mito” e de “imbrochável” não é algo inédito, e para muita gente foi claramente inspirada e copiada de um líder estrangeiro que há mais de 20 anos fez algo muito semelhante, cuja biografia, não em tudo, mas em alguma medida, se assemelha muito à do mandatário brasileiro.
Alberto Fujimori governou o Peru de 1990 a 2000. Sua primeira vitória eleitoral vinha num contexto relativamente semelhante ao do Brasil de 2018, embora com suas especificidades. Uma sociedade profundamente indignada com o bate-bumbo da imprensa falando diariamente de corrupção e crise econômica. Eis que surge então o sujeito que acabaria com os “ladrões”, que tinha soluções liberais para a economia e que esparramava um populismo reacionário encantador. Fujimori triunfa nas urnas e, dois anos depois, em 1992, dá um autogolpe de Estado, com o amparo das Forças Armadas e das forças policiais do país, fechando o Congresso, os tribunais mais altos do Judiciário e o Ministério Público. Uma caçada a opositores começa, sempre sob o pretexto de combate ao comunismo, ainda que verdadeiramente ele tenha ido para cima de grupos de extrema esquerda que atuavam em território peruano, como Sendero Luminoso e o Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA).
Populismo de extrema direita, discurso de economia superliberal, supressão da democracia pouco tempo após chegar ao poder pelo voto, apoio massivo nas Forças Armadas e de agentes policiais e perseguição a opositores e críticos, encoberta pela cortina do “combate ao comunismo”. Tudo isso lembra muito Jair Bolsonaro, não é mesmo?
Só que há ainda muitas outras semelhanças. Tal como a acusação de crime contra a humanidade por conta de seu comportamento genocida na pandemia da Covid-19, Fujimori também sofreu com acusação parecida com essa de Bolsonaro. Durante seu período mais autoritário ele foi responsável por um programa governamental clandestino, disfarçado de política de controle de natalidade, que esterilizou milhares de mulheres pobres, especialmente de etnia indígena e de zonas menos desenvolvidas, como a Amazônia peruana e os Andes.
Fujimori também avançou contra a imprensa e passou a controlar e censurar jornais e emissoras de TV, mas usando um outro mecanismo que não era meramente repressivo: o suborno e a liberação de dinheiro público para esses veículos. Lembra alguém, certo? Ele foi apelidado de “Chinochet”, uma vez que já era chamado de “Chino” (chinês, embora fosse de origem japonesa), sendo o “chet” o sufixo de Pinochet, o ditador genocida do Chile. Fujimori gostava de ser chamado assim, uma nítida e dantesca comparação com um ditador que matou dezenas de milhares de opositores. Só a título de curiosidade, Bolsonaro por vários anos e em muitas oportunidades elogiou o assassino Augusto Pinochet.
Fujimori, mesmo como ditador, testou sua popularidade e permitiu eleições em 1995, já que grande parte da população aprovava seus desmandos, algo muito parecido com o que ocorreu recentemente no Brasil. Ele venceu com facilidade, mas já tinha promulgado uma nova Constituição dois anos antes, em 1993. Seguiu no cargo até 2000, com a popularidade ladeira abaixo, quando novas eleições foram convocadas.
Depois de um pleito conturbado e cercado de indícios de fraude, ele “venceu” Alejandro Toledo num segundo turno que quase não ocorreu. A “vitória” foi mínima e grande parte dos setores influentes e da opinião pública já não o apoiavam mais. Nos primeiros meses deste terceiro mandato, uma série de acusações de corrupção envolvendo pessoas de seu convívio íntimo no poder fez com que uma crise eclodisse.
Cercado e prevendo o que viria pela frente, um vigoroso acerto de contas com a Justiça, “el Chino” embarca para uma conferência internacional realizada no Sultanato de Brunei, no Sudeste Asiático, e de lá voa com o avião presidencial para Japão, uma vez que tinha cidadania japonesa por ser filho de imigrantes da Terra do Sol Nascente. De Tóquio, num hotel de luxo, passa um fax para Lima e diz que estava renunciando ao cargo de presidente, e que isso seria melhor “para não se tornar um empecilho e uma peça causadora de instabilidade no Peru”. A verdade é que ele não queria ir para o banco dos réus.
Após muitos pedidos de extradição das autoridades peruanas ao governo do Japão, todos ignorados, Fujimori resolveu ir para o Chile em 2005. Mal pisou em Santiago e acabou detido pela polícia. Sua extradição foi autorizada dois anos depois, em 2007, e o ditador covarde e fujão finalmente estava em solo peruano.
Julgado e condenado, Fujimori segue preso até hoje, embora esteja com seu estado de saúde bastante prejudicado, aos 84 anos.
Ao que parece, o populista reacionário que conseguiu instalar uma ditadura no país sul-americano andou inspirando um populista reacionário de uma outra nação da América do Sul, que não teve êxito na tentativa de se tornar ditador.
A solução, outra vez, foi fugir.