A pequena cidade de Caçador, no interior de Santa Catarina, volta ao noticiário nacional por um motivo nada nobre, depois de ficar conhecida no país por conta de uma reunião de empresários locais antes do segundo turno das eleições, na qual os patrões traçavam planos para coagir seus funcionários a votarem no agora derrotado presidente Jair Bolsonaro (PL). À época dos fatos, a Fórum noticiou com exclusividade os áudios do encontro realizado na ACIC (Associação Comercial Industrial de Caçador), o que fez com que o Ministério Público do Trabalho (MPT) abrisse uma ação na Justiça do Trabalho para responsabilizar os participantes da infame e criminosa iniciativa.
Agora, passada a eleição e com Luiz Inácio Lula da Silva (PT) eleito presidente da República, parte dos moradores do município promove uma verdadeira caça às bruxas insistentemente atacando quem supostamente não teria optado por Bolsonaro na urna. Circulam inúmeras publicações nas redes sociais promovendo terror psicológico contra empresas locais, pedindo para que os cidadãos boicotem seus produtos e serviços como forma de “vingar” a derrota do mandatário de extrema direita.
“Aqui na cidade, nós, cidadãos de bem, trabalhadores, já estamos com uma lista de locais comerciais que nunca mais serão frequentados por nós. Vocês terão o que escolheram, e nós temos o direito de não concordar com vocês e nem ajudar vocês. Caso o negócio de vocês comece a ir mal, peçam ajuda para o Lula”, escreve uma moradora no Facebook, em tom de ameaça e sarcasmo.
Na sequência, ela posta uma lista com pelo menos 29 empresas de Caçador que devem ser boicotadas pela população. A mesma lista, e outras com algumas mudanças, circulam também em grupos de WhatsApp, aos quais a Fórum teve acesso, e de outras redes sociais, sempre com um texto agressivo e intimidatório.
“Acho bem dura e triste essa situação, porque a cidade é pequena, e você se sente pior sendo alvo de hostilidade apenas por tentar viver democraticamente... O direito a pensar, a não ser do mesmo rebanho. Não temos voz, não podemos colar um adesivo, não pensam que ao hostilizar e boicotar uma empresa não atingem só quem pensa diferente deles, o que já é terrível, mas também os funcionários, as famílias dos funcionários. É triste, decepcionante”, disse à Fórum um empresário do município catarinense.
Um dos participantes de um grupo de Caçador no popular aplicativo de mensagens chega a propor uma “solução” inspirada numa prática nazista: a identificação do comércio que deve ficar sem clientes. Pouco antes do início da 2ª Guerra Mundial, os seguidores do genocida Adolf Hitler pintavam estrelas de Davi, o símbolo religioso do judaísmo, na frente dos comércios e estabelecimentos de serviços de judeus, para que os outros alemães os identificassem e os boicotassem.
“Atenção petistas, coloquem esse adesivo na porta do seu negócio. Mostre que você tem orgulho de quem elegeu”, diz a postagem, junto a uma estrela vermelha com a sigla do partido no centro.
A reportagem da Fórum ouviu Guilherme Cohen, do coletivo Judeus Pela Democracia (JPD), especificamente sobre essa alusão ao nazismo feita em postagens de grupos da cidade de Caçador. Para ele, Bolsonaro vencido não significa o bolsonarismo também derrotado, assim como suas ações que emulam Hitler.
“O governo Bolsonaro foi derrotado, mas as práticas bolsonaristas ainda não. O que vem acontecendo na cidade de Caçador, em Santa Catarina, é totalmente inaceitável. Comerciantes que supostamente votaram em Lula no segundo turno estão sendo ameaçados de boicote e algumas mensagens até pedem a identificação desses comércios com uma estrela, numa referência clara ao nazismo. O governo Bolsonaro vai acabar, mas precisamos fortemente denunciar essas práticas nazistas do bolsonarismo para que elas também acabem”, disse Cohen.
Já o historiador e advogado Marcelo Cardoso da Silva afirma que tudo, no passado e no presente, trata-se de uma covardia, já que as pessoas se escondem atrás de grupos, de ditas maiorias, para aterrorizar os perseguidos.
“Esse tipo de manifestação é importante para notarmos algumas coisas em relação a outras perseguições, ou melhor, a outras perseguições históricas. Há aí, claramente, uma covardia, já que esses indivíduos se escondem atrás de uma suposta maioria, mas uma maioria sem rosto e violenta, e ao propor o uso da estrela, por exemplo, você individualiza aquele que você quer perseguir, e isso por si só constitui uma grande covardia, porque afinal qualquer maluco pode atacar sem medo de ser responsabilizado. O que nós vimos em relação aos judeus na Alemanha nazista e o que vemos em atitudes assim, como lá em Caçador, é exatamente essa covardia. Essa ideia de usar a estrela, especificamente, que é o símbolo do judaísmo e que também é o símbolo do PT, não é sem querer. É, mais uma vez, uma covardia travestida de revisionismo histórico e que nós temos visto, principalmente, no Sul. Tinha quem achasse bobagem, há alguns anos, quando se dizia que muita gente por lá negava o que havia acontecido em Auschwitz, mas, com esse tipo de comportamento, nós notamos que a coisa escalou. Eu deixo uma pergunta: quanto tempo falta pra gente começar a falar que estão formando guetos? Sinceramente, não sei... Mas isso precisa parar imediatamente”, disse o historiador e advogado.
Cardoso Silva explanou ainda em relação a questões legais por parte daqueles que se sentirem ameaçados e prejudicados pelos bolsonarista extremistas que propagam o nome de seus comércios e empresas. Ele orienta a identificar essas pessoas para que ações judiciais sejam ajuizadas e os prejuízos sejam pagos às vítimas da covarde perseguição.
“No campo do Direito, é importante que as pessoas façam a denúncia no Ministério Público, para que o órgão denuncie, forme forças-tarefas ou seja lá o que for para reagir a essas ações, porque afinal de contas, não é uma pessoa só que está fazendo isso. Uma ação popular contra esses indivíduos que tentam se esconder nesses grupos também pode ser uma saída, mas sem esquecer de entrar na Justiça de uma forma individualizada, cível e penalmente, pois essas pessoas evidentemente estão tendo prejuízos econômicos, sem falar nos morais e até físicos”, concluiu.
Por fim, a Fórum deixa claro que optou por não divulgar as listas nesta reportagem para não impulsionar a medida autoritária dos bolsonaristas. Vale salientar que vários destes comércios, inclusive, não são de propriedade sequer de eleitores de Lula, ainda que o fato não tenha qualquer relevância em face da prática, já que os brasileiros são livres para escolherem seus candidatos aos cargos públicos.