O ano de 2021 com certeza será historicamente lembrado como o ano das vacinas contra a Covid e que, justamente por causa delas, a população no mundo começou a respirar um pouco mais aliviada. Porém, a pandemia não acabou e, muito menos, a influência danosa dos grupos de extrema direita que atuam contra a vacinação.
Em termos locais, o Brasil tem carregado a figura do presidente Jair Bolosnaro que, atualmente é a representação de tudo que há pior no que diz respeito ao negacionismo científico, militância anti-vacina e destruição completa do Estado brasileiro.
Ao mesmo tempo, 2021 também foi o ano em que o ex-presidente Lula viu todos os seus processos serem anulados por falta de prova e, como havia prometido, conseguiu provar a sua inocência. Dessa maneira, automaticamente o seu nome retornou ao tabuleiro eleitoral do Brasil.
Apontado como o pré-candidato do Partido dos Trabalhadores às eleições presidenciais de 2022 no Brasil, algumas pesquisas já lhe conferem vitória até mesmo no 1º turno. Porém, o fato é que o primeiro turno em outubro muita coisa está por acontecer. Neste momento, a principal questão se dá em torno de quem será o vice de Lula e numa reviravolta típica da política brasileira, o ex-tucano Geraldo Alckmin é o nome mais forte para ocupar tal posto.
Pandemia e política devem ocupar o centro dos debates da eleição deste ano e isso em variadas camadas: políticas de saúde, direitos humanos e fome. Além disso, o surgimento do coronavírus também trouxe para o debate a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) que, apesar do presidente, conseguiu seguir adiante na imunização da população brasileira contra a coronavírus.
Quando olhamos além fronteira também nos deparamos com o contexto de eleição de governos de esquerda na América Latina e, com isso, uma nova onda progressista passa a tomar conta das paragens ao Sul da América.
Diante de tal contexto políticos profundamente complexo e que promete ser ainda mais tenso neste ano que inicia é que versa esta entrevista com a socióloga Sabrina Fernandes, a produtora e apresentadora do canal Tese Onze que hoje conta com 400 mil inscritos no Youtube.
Além disso, Fernandes é autora dos livros “Sintomas Mórbidos: A encruzilhada da esquerda brasileira” (Autonomia Literária) e “Se quiser o mundo: Um guia político para quem se importa” (Planeta).
Na entrevista que você confere a seguir vários assuntos que devem dominar a pauta política deste ano que se inicia estão presentes, mas claro, o mais quente de todos também foi assuntado: Geraldo Alckmin como vice de Lula.
“Geraldo Alckmin, é uma figura que representa uma ameaça ao projeto de soberania nacional. É uma figura entreguista, é uma figura que pensa a partir do setor privado e vário outros defeitos que eu poderia nomear aqui”, critica Sabrina Fernandes.
Fórum - Como você avalia a movimentação palaciana e dos bolsonaristas ao longo de 2021?
Sabrina Fernandes - Fica muito evidente foi que ele conseguiu avançar bastante com o Congresso, mas Paulo Guedes está decepcionado, tem uma base econômica do governo Bolsonaro que gostaria que algumas coisas estivessem avançadas de uma maneira mais enfática nesses três anos de governo, mas isso não impede que eles venham com tudo em 2022.
O que parece é que o governo vai tentar um certo equilíbrio entre algumas medidas que possam angariar um pouco mais de apoio eleitoral, ao mesmo tempo em que continua desmontando boa parte das provisões do patrimônio brasileiro e implementando outras coisas, por exemplo o Código da Mineração. Então, tem várias coisas que estão em pauta e que será preciso pressionar [para barrar] e isso não partindo somente do Congresso, a gente tem que lembrar que neste ano continua a batalha contra o Marco Temporal.
Fórum - E como você avalia a atuação da oposição?
Sabrina Fernandes - A nossa oposição, infelizmente, está muito mais em uma posição de ter que enxugar o gelo e estar segurando do que ter ações mais propositivas.
Tem sido muito difícil, apesar de termos algumas pessoas aqui e ali que apresentaram propostas que avançaram, a gente pode destacar, por exemplo, a questão do despejo zero, que veio da oposição de esquerda e de parlamentares e de partidos engajados nesse sentido.
Então, é uma atuação na tentativa de impedir que algumas pautas sejam aprovadas a toque de caixa. Isso é um desafio muito grande, mas, ao mesmo tempo muitos desses parlamentares tem deixado uma boa impressão para o seu eleitorado e isso pode trazer uma força maior para as eleições de 2022.
Fórum - No ano que vem a questão do garimpo ilegal, climática e preservação do meio ambiente deve aparecer com mais evidência nas eleições, porém, me parece que ainda há uma certa resistência de determinados grupos da esquerda ou do progressismo em geral com tal assunto. Como você analisa isso?
Sabrina Fernandes - A postura muito evidente e antiecológica do governo Bolsonaro fez com que a esquerda tivesse que se reorganizar nesse sentido e ter que se engajar um pouco mais nessas pautas. E quando eu falo de esquerda aqui, eu estou falando precisamente de partidos, de figuras mais institucionais, porque nós sabemos que os nossos movimentos sociais de esquerda estão envolvidos nisso há muito tempo, só que sempre sendo escanteado, silenciado.
Então, o que temos agora é um pouco de reorganização, por exemplo, por conta do Código de Mineração e a questão de aprovações automáticas (de garimpo), isso é algo muito perigoso, mas nós também temos um histórico de governos de esquerda que muitas vezes atropelaram o processo de impacto ambiental porque isso era muitas vezes visto como um obstáculo para o desenvolvimento do país. Precisamos fazer essa crítica interna em relação a isso e nos pautar, a esquerda como um todo (movimentos e partidos), que a questão ecológica seja base de entendimento de que isso é absolutamente central.
Fórum - E você acredita que os programas de governo devem trazer propostas densas sobre questões ecológicas?
Sabrina Fernandes - Eu acredito que existe um giro. Por exemplo, a força do Movimento dos Trabalhadores Rurais e Sem Terra (MST) falando de agroecologia, de reforma agrária popular combinando essas pautas com as suas ações de solidariedade durante a pandemia mostrou que é um movimento que tem altíssima relevância e que não pode ser ignorado na hora de se criar um programa.
Falamos de programa eleitoral, mas que também é um programa de governo. OS movimentos sociais não devem ser integrados simplesmente trazendo uma liderança que estará ali apenas para consultar, mas como esses movimentos estão construindo as suas posições. E aí a gente tem outro movimento que são os petroleiros, que estão falando sobre questões climáticas e sobre transição. Então, tem muita coisa aí que ainda parece estar um pouco à margem porque não está tão focalizado na pré-campanha.
O nosso papel como sociedade e como militância que está envolvida, é cobrar para que isso faça parte do programa de forma central. Até porque, o que a gente está vivendo agora com as populações afetadas na Bahia, Minas Gerais e com a piora das chuvas em outras partes do país, porque a gente sabe que essa é a tendência: o povo vai sofrer com situações que nós identificamos com uma crise ecológica profunda.
Qualquer campanha que se pretenda estar conectada às demandas da sociedade precisa trazer a pauta ambiental como central. Parece que essa sensibilidade está sendo desenvolvida, mas não dá pra gente prever completamente ainda como isso vai ser.
Fórum - Como você avalia uma chapa com Lula e Alckmin?
Sabrina Fernandes - A chapa do Lula nós sabemos que ela vai envolver certas negociações com a burguesia brasileira, com o mercado, isso faz parte do jeito lulista de governar.
Mas, uma chapa do Lula também tem que ser uma chapa que represente um projeto de soberania nacional, porque isso é algo que foi apontado durante muito tempo pelo PT, pelos sindicatos e movimentos atrelados a essa base. E a presença de uma figura como a de Geraldo Alckmin, é uma ameaça ao projeto de soberania nacional.
É uma figura entreguista, que pensa a partir do setor privado e vário outros defeitos que eu poderia nomear aqui.
Essa é uma questão que, pra gente que está de fora analisando essa situação é importante manter um certo nível de voz e de localizar os perigos que nós identificamos em uma chapa e esperar que essa pressão possa trazer um resultado diferenciado.
Mas entendendo que uma chapa do Lula não vai ser comunista, mas uma chapa do Lula precisa trazer essa questão da soberania nacional. Até porque quando a gente fala especificamente do petróleo, isso não é algo que afeta somente o Brasil, mas também sobre a integração latino-americana, as ameaças imperialistas em nossa região e se nós temos algo para aprender com os nossos vizinhos que estão saindo de um período neoliberal, de uma extrema direita golpista e vindo para uma nova era progressista, que não vai ser como a Onda Rosa, antigamente havia estrutura, agora nesse momento de uma nova onda progressista é um momento de reconstruir, e se a gente tem que reconstruir nós temos que estar muito alertas que esas ameaças que atentam contra a soberania latino-americana, ela se faz presente.
Fórum - O "bolsonarismo" deve ganhar espaço na próxima legislatura do Congresso Nacional. O que você acha disso?
Sabrina Fernandes - Nós temos um certo nível de polarização nesse sentido. Ao mesmo tempo que esse tipo de voz ganhou espaço no Chile, os movimentos de base foram extremamente importantes na vitória do Boric. NA disputa da Constituinte isso já está muito presente com maior estrutura que o Boric possa dar para o processo da Constituinte, isso vai estar pra jogo e isso vai influenciar quando a população vir a aprovar ou não essa nova Constituição.
No caso brasileiro nós temos um cenário mais peculiar por conta da presença do fundamentalismo religioso. E como o fundamentalismo religioso ele está entranhado na imprensa, pois não é só a Rede Record, nós estamos falando de rádio comunitária, estamos falando de uma estrutura muito grande que se espalha pela internet, pelo WhatsApp e é preciso ficar atento quanto a isso. Ao mesmo tempo tem algumas coisas que não podem ser ignoradas, por exemplo o fato de que sim, boa parte dos evangélicos avaliam o governo Lula como um bom governo. Nós estamos falando do povo trabalhador que é convertido à religião evangélica e que pode ser influenciado pelo fundamentalismo religioso, mas é também um povo que sofre, que é explorado, que desenvolve a sua consciência de classe aqui e ali e precisamos entender melhor, nos conectar melhor essa parcela da classe trabalhadora sem preconceitos.
Então, combatendo esses representantes do fundamentalismo religioso que tentam se eleger ao Congresso, mas tendo esse diálogo pedagógico com o povo evangélico brasileiro trabalhador que pode sim ser apresentado para outras alternativas.
Fórum - Quero aproveitar esse gancho do fundamentalismo religioso: na eleição de 2020 nós tivemos a eleição de mandatos feministas, negr@S e LGBT em todo o Brasil, e não apenas em capitais, mas em cidades de médio e pequeno porte, e foram campanhas com discursos radicais. Acredita que esse movimento pode se repetir na eleição legislativa de 2022?
Sabrina Fernandes - Eu acredito que sim, até porque uma das tarefas de uma esquerda arejada e que é pautada pela emancipação e pela liberdade continua a enfrentar certos preconceitos que ocorrem até mesmo dentro da esquerda.
Desde a época da campanha EleNão, em que nós tivemos que ouvir que Bolsonaro ganhava força por culpa das feministas que não entendem que o povo brasileiro é um povo conservador. Se utiliza desse fatalismo em relação a consciência do povo brasileiro para normatizar certas coisas que não devem ser normalizadas: nós estamos falando de opressão aqui.
E nesse período a gente elegeu mandatos que são antirracistas, LGBT e feministas que tem feito um serviço fenomenal dentro dos seus espaços de atuação. Estão mostrando que estão ali realmente para fazer a diferença e isso tem deixado um legado e que está provando que as pautas são interseccionadas, que há uma interseccionalidade realmente.
A radicalidade tem força, essas figuras que chegam no Parlamento e chegam sem ser convidadas, elas chegam e precisam criar o seu próprio espaço e elas acabam tendo de ser mais radicais por causa disso também e isso demonstra uma força única.
Fórum - Como você avalia a ideia das federações partidárias?
Sabrina Fernandes - As federações são algo particular dessa conjuntura brasileira pluripartidária. Quando a gente tenta explicar a estrutura eleitoral do Brasil em outros lugares ondes eles têm cinco ou seis partidos e que nós temos mais de 30, é algo que soa estranho.
Nós temos uma estrutura muito fragmentária e também relacionada a pouca atuação ideológica nesses partidos, também sabemos que tem partidos que existem apenas para autopromoção e laços institucionais. Então as federações surgem criadas ela lei como forma de trazer outras atuações, elas vão atuar juntas com as coligações: vão ter coisas que serão mais temporárias, ligadas às coligações.
A questão das federações é algo que a gente tem que colocar também sob análise para entender que: se nós buscamos que os partidos tenham uma atuação mais ideológica e para além das questões eleitorais, a federação também não pode ser uma bagunça. É necessário compreender como isso vai as pautas que vão ser colocadas durante as campanhas e, principalmente, como essas pautas serão implementadas após os mandatos serem eleitos. Como os estatutos serão estabelecidos? Como eles serão aplicados? Tem muita coisa que precisa melhor compreendida, para que a federação não vire algo "qual partido vai com qual partido".
É importante que os partidos, principalmente os de esquerda, sejam abertos e transparentes sobre como essas federações vão funcionar, pois, quando a gente escolhe se filiar a um partido e agora esse partido está federado com outro partido, isso influencia como a gente se identifica no processo político.
Fórum - Ainda na questão da ideologia: acompanhamos nos últimos anos uma corrosão do mundo do trabalho, perda de direitos, e você tocou na questão da ideologia: nós últimos anos nós temos vividos disputas fortemente marcadas pela ideologia e luta de classes?
Sabrina Fernandes - A luta de classes nunca está apagada. A gente voltaria para Marx em O Manifesto Comunista lembrando que a luta de classes é um marco de desenvolvimento histórico da nossa sociedade.
O que acontece é que existem ferramentas que são utilizadas de cima para baixo para suprimir a luta de classes. Tentam passar a ideia de que o motorista de aplicativo, que o entregador de aplicativo que ele é um empreendedor por si só e não um trabalhador propriamente e que deveria ter os seus direitos protegidos. Isso faz parte de uma disputa ideológica: como que nós comunicamos para a sociedade o papel de cada um, como são as posições de classe ali e como que nós devemos agir em cima disso.
É importante nesse processo que uma esquerda fortalecida nunca abra mão de fazer esse trabalho da luta de classes e colocar os direitos desse trabalhador em sua prioridade.
Agora nos enfrentamos um período horroroso de desemprego, quando há emprego, são empregos informais que não trazem a estabilidade necessária para o povo brasileiro: isso é fruto desse processo de luta de classes que a classe dominante tem ganhado. Nós precisamos nos reorganizar nesse sentido e isso inclui pensar as várias formas de organizações diferentes: os sindicatos ganham novas caras, há associações, movimentos… têm várias formas de organizar e a disputa ideológica passa pelo cara a cara e a esquerda não pode abrir mão disso e deixar que isso ocorra só na internet, apesar da internet ser importante. Mas, nós sabemos que o contato cotidiano e solidário faz muita diferença, ele cria vínculos mais permanentes e bastantes politizados e nós precisamos desenvolver isso em outras formas de atuação.
Fórum - Sim, até porque há uma marca dos trabalhos digitais que é a solidão.
Sabrina Fernandes - Com certeza. A fragmentação ocorre de várias formas: pode ser uma fragmentação de consciência, mas ela também pode ser uma fragmentação espacial: como organizar trabalhadores que não conhecem os seus próprios colegas? Esses são desafios muito específicos e felizmente a gente tem excelentes pessoas trabalhado nesse desafio, mas precisamos colocar mais fôlego nisso.
Cada vez que a gente avança nesse sentido, essa economia de plataforma avança mais ainda no isolamento como uma forma de alienação. E não há apoio geral da sociedade de compreender que esse sistema, como ele está hoje, ele não pode continuar.
Fórum - A América Latina elegeu nos últimos anos e mais recentemente, no Chile, governos de esquerda. Em outras regiões do Ocidente a extrema direita também começar a perder. Como você tem analisado essa virada?
Sabrina Fernandes - A extrema direita promete coisa e não entrega. Ela é muito baseada em um grande estelionato eleitoral. Por quê? Ela se elege baseada em mentiras: mentiras sobre o que vai fazer, mas também mentiras sobre a interpretação da realidade. Questões como "a grande ameaça comunista", ou quando ela se elege baseada em uma política anti-imigrante, políticas homofóbicas, em cima do medo e do ódio, e não é em com o antagonismo, é o ódio pelo outro
E, quando eles fazem isso, eles fazem um grande alvoroço e conseguem mobilizar, mas na hora que assumem o governo não conseguem entregar justamente porque a constatação da realidade está errada e isso gera para a oposição uma grande responsabilidade de estar apontando esses problemas e mostrando que é uma alternativa real.
Boa parte dessa extrema direita se elegeu se apresentando como antissistema e se conseguiu se eleger dessa forma, isso demonstra que a esquerda deixou de ocupar um papel muito importante.