Covaxin: Bolsonaro pode ter cometido improbidade sanitária, passível de impeachment; entenda

O fato de se dar prioridade a uma vacina mais cara em detrimento de outras, seguras e eficazes, "traz consequências não apenas ao erário, mas essencialmente à saúde coletiva", segundo o advogado sanitarista Thiago Campos; saiba mais

Foto: Alan Santos/PR
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As omissões, erros e decisões de Jair Bolsonaro na condução de políticas para o enfrentamento à pandemia do coronavírus no Brasil são fatores citados nos mais de 100 pedidos de impeachment protocolados contra o presidente na Câmara dos Deputados e o renderam a alcunha de "genocida". Não à toa. Especialistas apontam que, se não fossem as atitudes do ex-capitão, o Brasil teria bem menos que as mais de 500 mil mortes em decorrência da Covid-19.

Há inúmeros pontos da Constituição Federal que podem - e vêm sendo - usados para definir que tipo de crime Bolsonaro supostamente comete com suas atitudes relacionadas à pandemia. Um deles é o de improbidade sanitária que, no caso do chefe do Executivo, configura um crime de responsabilidade, passível de processo de impeachment.

Em entrevista à Fórum, o advogado especializado em direito sanitário Thiago Campos explicou o conceito de improbidade sanitária.

"Improbidade sanitária é o conceito da improbidade administrativa aplicado aos atos relacionados à segurança sanitária enquanto responsabilidade do gestor público ou agente do Estado. A Constituição Federal, em seu artigo 196, define a saúde como direito de todos e dever do estado. A segurança sanitária, quer dizer, todos os aspectos relacionados ao direito coletivo à saúde, são de responsabilidade do estado. Isso significa que, ao negligenciar qualquer ação comprovadamente necessária à garantia do direito coletivo à saúde, um agente público, seja um gestor, secretário, administrador, ministro ou chefe de executivo, está cometendo um ato de improbidade relacionada à questão sanitária, que é amparada na Constituição", define Campos.

"Mas a questão vai mais além quanto articulada nos termos da Lei 1.079/1950, que é onde estão definidos os crimes de responsabilidade, ou seja, aqueles que só podem ser cometidos por ministros de estado, presidente da República ou agente público com grau semelhante de poder decisório. Em nosso entendimento, quando cometidos por ministros de estado ou pelo presidente da República, por exemplo, a improbidade sanitária configura-se num crime de responsabilidade e está sujeita às penalidades associadas a esse tipo de crime", completa o advogado.

Neste sentido, Campos avalia que o governo, bem como o presidente Bolsonaro, cometeram, sim, crime de improbidade sanitária. Segundo ele, "o ordenamento legal é muito claro ao atribuir aos entes públicos responsabilidades compartilhadas na garantia da saúde coletiva".

"O presidente da República descumpriu, uma a uma, todas essas responsabilidades: não apresentou à nação um plano de crise, não esclareceu à sociedade quais riscos corríamos enquanto população, boicotou ações de entes subnacionais, desacreditou vacinas e não se empenhou no desenvolvimento e na compra das mesmas e, por fim, busca se eximir de suas responsabilidades dando uma interpretação absolutamente falaciosa de uma decisão do STF – que não o impedia de exercer nenhuma de suas atribuições, mas que embragava sua declarada intenção de impedir que estados e municípios tomassem medidas de contenção do contágio", atesta.

"O governo federal não planejou qualquer ação de enfrentamento à Covid-19 no ano de 2021, por exemplo, porque considerava que a epidemia acabaria naturalmente, pelo contágio da maioria da população, e que vacinas não seriam necessária. O programa de ações na pandemia não recebeu nenhum recurso para o Orçamento de 2021. Quando já se sabia da ineficácia dos remédios prescritos no tal “kit covid”, o Governo continuou empenhando neles recursos (técnicos, orçamentários e humanos) que deveriam ser empregados em outras áreas. Em resumo: todo o conjunto de ações e omissões do Governo Federal na pandemia configuram crimes de improbidade sanitária e, no caso do presidente, crime de responsabilidade", diz ainda.

Covaxin

Para além de todas as omissões e erros por parte de Bolsonaro na condução da pandemia, um exemplo mais recente e que é o novo foco da CPI do Genocídio no Senado - o contrato feito pelo governo para a compra da vacina indiana contra a Covid, Covaxin, com inúmeros indícios de corrupção -, pode ser interpretado como um ato de improbidade sanitária.

O aval para a compra da vacina foi dado por Jair Bolsonaro, no início do ano, que aprovou a compra do imunizante a um valor 1.000% maior que preço inicialmenteanunciado pelo fabricante. A Covaxin foi a única vacina que teve um intermediário – a Precisa Medicamentos – na negociação.

Um telegrama da embaixada brasileira em Nova Délhi mostra que, quando lançada, a vacina produzida pelo laboratório indiano Bharat Biotech custava 100 rúpias ou cerca de 1,34 dólares a dose. Em fevereiro desse ano, sob pressão de Bolsonaro, a Precisa Medicamentos fechou a compra para o Ministério da Saúde pelo valor de 15 dólares a unidade. Ao mesmo tempo, o governo federal rejeitou a compra da vacina da Pfizer a 10 dólares alegando preço muito alto.

Em depoimento ao Ministério Público, o servidor do Ministério da Saúde Luís Ricardo Miranda, que nesta sexta-feira (25) presta depoimento à CPI do Genocídio, diz ter sofrido pressão “atípica” para garantir a importação da vacina, sendo acionado por diversos superiores, inclusive aos finais de semana. A pressa no fechamento da negociação também impressionou o MP, que investiga o contrato suspeito. O período entre a negociação e a assinatura do contrato para aquisição da Covaxin levou 97 dias. O do imunizante da Pfizer demorou 330 dias, o prazo mais longo entre todas as vacinas.

Bolsonaro teria, inclusive, sido alertado pelo deputado federal e ex-aliado Luis Miranda (DEM-DF), irmão do servidor do Ministério da Saúde, sobre os indícios de corrupção na compra do imunizante, tendo apresentado documentos que reforçariam as suspeitas. O presidente, no entanto, nada fez para investigar o caso.

À Fórum, o advogado Thiago Campos chamou a atenção para o fato de que há o conceito de probidade administrativa, que prevê a aplicação de recursos públicos "da melhor maneira possível", e que há o caso de improbidade sanitária, que poderia se aplicar ao caso da Covaxin.

"O que chamamos de improbidade sanitária tem a ver com a adoção de ações propositais ou decorrentes de omissão deliberada do agente público, que atingem o bem jurídico tutelado pelo direito à saúde, em especial a saúde pública e, consequentemente, a vida humana", pontua.

Segundo Campos, "quando o governo dá prioridade à aquisição de uma vacina para o combate à pandemia com o objetivo escuso de que essa decisão administrativa se revista de ganhos econômicos e financeiros para a servidores ou particulares", como as suspeitas apontam que é o caso da Covaxin, "estamos diante de uma improbidade sanitária", declara o advogado. "Pois isso trará consequências não apenas ao erário, mas essencialmente à saúde coletiva, levando ao adoecimento das pessoas ou mesmo a mortes", continua, adicionando ainda que "o descumprimento do dever de evitar agravos à saúde da população, não adquirindo, nesse caso específico, vacinas eficazes e seguras que possam salvar vidas, afronta à probidade sanitária".

Responsabilização e CPI

Thiago Campos afirma que a responsabilização de Jair Bolsonaro por suas atitudes omissas ou permeadas de interesses escusos, em detrimento da saúde da população, pode se dar tanto através de um processo de impeachment no Congresso, como por meio de ações no Judiciário e também através de representações individuais de cidadãos que se sentiram lesados pelas ações do governo na pandemia.

"Temos hoje cerca de 500 mil famílias enlutadas no Brasil, marcadas tragicamente por decisões equivocadas que foram tomadas no âmbito do enfrentamento à pandemia no país. Essas decisões de governo foram orientadas, ao que tudo indica, por uma tese: a de que a melhor maneira de alcançar a imunidade coletiva era permitir, e até estimular, que a população se contaminasse. E aí cabe tanto a ação por crime de responsabilidade nas instâncias adequadas, que são o Congresso Nacional e o Judiciário, mas também há espaço para que o cidadão que foi atingido por essas políticas acione ele mesmo o Judiciário em busca de reparações justificadas", aponta.

Sobre a CPI do Genocídio, o advogado acredita que o colegiado já "tem clareza de que a responsabilização do governo e, por consequência, do presidente, se dá pela nítida e temerária escolha pela tese de imunização coletiva por contágio".

"Afora isso, ainda há a possibilidade de que se encontrem crimes de superfaturamento em aquisições dos ministérios no combate à pandemia. Não há como saber, por ora, quais evidências constarão do relatório final, mas, à parte tudo isso, estamos convictos de que improbidade sanitária é um crime grave e foi reiteradamente cometido por agentes públicos no contexto da pandemia", avalia.