A escritora e crítica literária Noemi Jaffe é a terceira entrevistada da série Judeus e Bolsonaro, realizada pela Revista Fórum, que foi ouvir o que ela pensa sobre a proximidade de segmentos da comunidade judaica com o governo extremista do atual presidente da República.
Noemi é filha de uma sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, um dos maiores símbolos do horror e da crueldade do Nazismo. Profissional respeitada no universo editorial, ela carrega no currículo uma indicação ao Prêmio Jabuti, um dos mais importantes da língua portuguesa.
Numa pergunta direta, começo questionando como ela vê o apoio de judeus (influentes, inclusive) ao governo e à figura de Jair Bolsonaro, um político que construiu sua carreira, durante décadas, em cima do discurso de ódio contra minorias, com declarações racistas, machistas e homofóbicas.
"Na minha opinião, vejo só duas possibilidades para esse apoio: 1 – conveniência com interesses financeiros e políticos envolvidos... Ou 2 – ingenuidade inicial devido à pretensa defesa que o presidente faz do Estado de Israel. Passados dois anos e, portanto, descartada a segunda hipótese – pois já não se pode mais alegar inocência sobre nenhuma ação desse senhor – só resta a primeira", dispara.
Peço então para que a escritora detalhe essa percepção em relação aos grupos judeus que dão suporte político ao governo de extrema direita do ex-capitão desligado do Exército. E Noemi prossegue:
"Vejo ou como conveniência política e econômica, ou em função, como disse, da defesa que o presidente faz do Estado de Israel, contra os palestinos. Nesse sentido, como em todas as comunidades, há uma parte da comunidade judaica que é bem conservadora e que votou contra o PT e a esquerda. Mas tenho certeza, também, que grande parte desses eleitores se arrependeu. Quem não se arrependeu ou está fora da realidade, ou tem interesses escusos envolvidos."
Cito o fato dela ser filha de uma sobrevivente do Holocausto, de uma mulher que viveu o terror e a banalização da morte no inferno de Auschwitz, e então pergunto se esse apoio, de alguma maneira, a toca de uma forma especial.
"Sim, me toca em especial. E me manifestei quanto a isso desde o momento em que o atual presidente defendeu Ustra (Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel do Exército e notório torturador da Ditadura Militar) em seu apoio ao impeachment de Dilma Rousseff. É absolutamente impensável, para mim, que pessoas pertencentes a um povo que foi perseguido e torturado num dos eventos mais bárbaros e violentos da História da humanidade possam apoiar um homem que defende torturadores. Trata-se de uma espécie de repetição, embora não seja exatamente a mesma coisa, do comportamento de parte do povo alemão que apoiou o Nazismo durante a 2ª Guerra e também da parte que silenciou, ou se omitiu.", explica.
Voltando à conexão que fez anteriormente, sobre o ódio de alguns judeus ao PT ter relação com a posição do partido e de seus governos no conflito árabe-israelense, Noemi argumenta que isso não pode servir como desculpa para o absurdo que é dar sustentação a um governo radical e que persegue grupos sociais.
"A desconfiança a respeito da possibilidade de o PT apoiar os palestinos contra Israel não justifica o ódio que parte da comunidade judaica dedica ao PT. Sou judia, eleitora de partidos da esquerda e, assim como eu, há milhares de judeus que assim se identificam. Sou favorável à existência de dois estados, Israel e Palestina, e tenho certeza de que essa também é a posição defendida por grande parte da esquerda", revela.
Por suas respostas, é possível deduzir que há várias incoerências entre ser judeu e apoiar uma gestão e uma ideologia edificadas sobre a morte. Pergunto qual é a maior de todas essas incoerências, ao que Noemi responde:
“Vejo incoerência entre ser humano e ser bolsonarista. Mas, para ser mais precisa, o judaísmo é, além de uma religião, uma cultura toda baseada em um pensamento humanista, de aceitação do outro, de liberdade e de igualdade. Entre seus principais pensadores estão nomes como Martin Buber, Gershom Scholem e Emanuel Lévinas, além de Spinoza, para citar apenas alguns, todos articuladores de uma filosofia de abertura e recepção. Ser bolsonarista, por outro lado, é apoiar todo tipo de discriminação, é defender a violência armada, o sectarismo étnico e religioso e a hostilidade ao outro.”
Para encerrar a entrevista, entramos no mundo da linguagem e das palavras, terreno com o qual Noemi Jaffe está acostumada. Recordo a ela que há uma celeuma linguística quanto ao uso das expressões “genocídio” e “genocida” para se referir ao que vem ocorrendo no Brasil durante a pandemia e ao presidente da República, respectivamente. Alguns especialistas condenam o uso do termo, que teria um sentido muito restrito, enquanto outros afirmam que é possível considerar o que vem ocorrendo no país, especialmente na condução do caos sanitário, como genocídio. Seriam os acontecimentos presentes um genocídio, e Jair Bolsonaro um genocida?
“Sem dúvida. O próprio Hitler, provavelmente, não se envolveu pessoalmente no assassinato de ninguém, mas foi um genocida. O presidente nunca ordenou, como Hitler e outros, a morte de centenas de milhares de pessoas. Mas permitiu que elas acontecessem e, eu poderia dizer, estimulou. Sua insistência patológica na adoção de remédios comprovadamente ineficazes, seu negacionismo sobre a gravidade da doença e sobre a importância da ciência, sua recusa em comprar vacinas, a não utilização de máscara e suas demonstrações recorrentes de falta de empatia representam uma atitude que, sem dúvida, contribuiu para as mortes e o colapso sanitário que estamos enfrentando. Genocida.”, finaliza.
Acesse aqui a matéria de abertura da série especial Judeus e Bolsonaro.
Acesse aqui a 1ª entrevista, com Guilherme Cohen.
Acesse aqui a 2ª entrevista, com Liana Lewis.
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