Comissão da Verdade foi um dos motivos para o golpe de 2016 e a ascensão de Bolsonaro, aponta historiador

"Villas Bôas deixa muito claro que a CNV foi um ponto de inflexão na relação das Forças Armadas com o PT e com Dilma", disse o pesquisador Lucas Pedretti à Fórum

Ex-presidenta Dilma Rousseff recebe relatório da Comissão Nacional da Verdade, em 2014 | Foto: Lucio Bernardo Jr. / Câmara dos Deputados
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Enquanto a Comissão Especial para Verdade e Justiça (CEVJ) do Equador responsabiliza o governo de Lenín Moreno pelos crimes de lesa-humanidade ocorridos durante a repressão à greve geral de 2019 e a Bolívia começa a punir figuras que atuaram no golpe que derrubou Evo Morales no mesmo período, surge uma reflexão sobre o legado da Comissão Nacional da Verdade (CNV) realizada no Brasil para apurar os fatos ocorridos durante o período da ditadura militar.

Em entrevista à Fórum o historiador Lucas Pedretti, pesquisador do Núcleo de Memória e Direitos Humanos do Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE/UFRJ) e ex-pesquisador da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-RIO), comentou sobre a importância destes mecanismos e falou sobre o legado da CNV. Para ele, apesar das limitações - por conta da vigência da Lei da Anistia -, esta comissão conseguiu abalar certas estruturas e é fundamental para entender os processos que se desencadearam desde o golpe parlamentar de 2016 contra a ex-presidenta Dilma Rousseff.

"A CNV representa um momento em que a gente mais discutiu e debateu sobre o nosso passado ditatorial durante a nossa democracia. A CNV sempre foi encarada, pelos movimentos de mortos e desaparecidos, como extremamente limitada, tento em vista que ela atuava no momento em que a Lei de Anistia ainda estava vigente. Não havia nenhuma expectativa de que fosse capaz de levar os perpetradores das violações dos Direitos Humanos à Justiça e também avançou pouco em aspectos importantes, como a localização dos desaparecidos, mas ela fomentou esse debate na sociedade", avaliou Pedretti.

"A Comissão avançou pouco em aspectos importantes, como a localização dos desaparecidos, mas fomentou esse debate na sociedade. Muitas narrativas, muitas histórias sobre a ditadura, vieram à tona. A CNV criou e ampliou um movimento de reflexão e revisão sobre aquele período histórico e, por isso, embora a comissão tenha sua limitação, ela foi capaz de irritar de forma muito profunda os militares brasileiros", completou.

Nessa avaliação, Pedretti destaca as revelações trazidas no livro recém-lançado "General Villas Bôas: conversa com o comandante", produzido pelo diretor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas, após mais de 13h de entrevistas com o General Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército.

"Villas Bôas deixa muito claro que ali foi um ponto de inflexão na relação das Forças Armadas com o Partido dos Trabalhadores e com a presidenta Dilma Rousseff. Ou seja, mesmo aquele órgão tão limitado foi capaz de gerar tamanha insatisfação no exército que levou os militares brasileiros a tomarem a decisão de retomar a sua histórica tradição de intervir no mundo político", afirmou.

"É claro que não é só a CNV que explica o retorno dos militares à cena política e o golpe de 2016, mas a gente precisa levar isso em conta para entender os movimentos recentes das Forças Armadas, que hoje são totalmente vinculados à chegada desse genocida de extrema-direita ao poder, totalmente amparado pelo Partido Militar", destacou.

Pós-pandemia

Questionado sobre a possibilidade da tragédia da pandemia no Brasil, com milhares de mortes que poderiam ser evitadas, fazer retornar a demanda por memória, verdade de justiça no país, Pedretti acredita que isso só poderá ser respondido em um momento de "pós-pandemia", mas que há espaço para uma discussão sobre o tema.

"Quando a gente chegar em um momento de pós-pandemia, a gente se defrontar com milhares de mortos e de mortes que poderiam ter sido evitados. Se uma morte é evitável, ela tem alguém responsável por ela, então no Brasil a gente vai ter que encarar de novo essa questão: o que fazer com o legado desse período que passou, um período marcado por um verdadeiro genocídio?", apontou.

Para o historiador, o Brasil tem "uma tradição nossa produzir esquecimento, silenciamento, garantia de não-responsabilização dos responsáveis pelas violências e, com isso, de abrir caminho para um eterno retorno". Pedretti afirma que o país terá de definir se pretende seguir com esse legado, simbolizado não apenas com a ditadura de 1964, mas também com a forma em que o país lidou com o legado da escravidão, com a queima dos arquivos do período por Rui Barbosa.

"Nós vamos ter dois caminhos: a gente vai poder assumir o caminho que o Brasil historicamente adota, do esquecimento - como fizemos com a ditadura de 1964 e com o legado da escravidão - ou enfrentar um processo sério de revisão desse passado, com identificação das responsabilidade, julgamento, reparações coletivas e individuais, reconhecimento da Verdade, e, principalmente, construção de memória e não repetição dessa barbárie", avalia.

"E isso também tem a ver com as Forças Armadas, que compõem o governo e são a principal base de sustentação do governo Bolsonaro e, portanto, são diretamente responsáveis pelo genocídio. Então a gente também vai precisar entrar no processo de revisão sobre o que são essas Forças Armadas, qual o papel das Forças Armadas no Brasil hoje", finalizou.