Luciano Coutinho: É constrangedor ver o governo confiando na utopia de que o mercado “tudo resolverá”

Em entrevista exclusiva à Fórum, Coutinho afirma que a auditoria sobre a "caixa-preta" do BNDES, uma das fake news disseminadas por Bolsonaro durante a campanha eleitoral, "é esclarecedora porque resgata a verdade dos fatos"

Luciano Coutinho (Foto: Agência Brasil)
Escrito en POLÍTICA el
Economista, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) entre entre maio de 2007 e maio de 2016, Luciano Coutinho observa com constrangimento e preocupação a política econômica subserviente aos interesses do sistema financeiro internacional conduzida pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, à frente do governo Jair Bolsonaro. Em entrevista exclusiva à Fórum, Coutinho afirma que a auditoria em torno da propagada "caixa-preta" do BNDES, um dos discursos mentirosos de Bolsonaro durante a campanha eleitoral, "é esclarecedora porque resgata a verdade dos fatos", e que a política de Guedes em relação ao banco vai de encontro ao que se pratica no mundo. "Não faz sentido discriminar empresas por origem do capital, mas sim pelos benefícios que trazem à nossa economia", disse Coutinho, após ressaltar a inteira desarticulação da cadeia produtiva exportadora no Brasil, que começou com o avanço do lavajatismo e resultou no golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff. Para o economista, Guedes e Bolsonaro mostram incapacidade de organizar um projeto nacional de desenvolvimento consistente. "Nesse quadro é constrangedor ver as autoridades do país adulando os investidores de modo subserviente, sem estratégia e sem planos credíveis, confiando na utopia de que o mercado “tudo resolverá”. Fórum: Sobre a Caixa-Preta do BNDES - uma das principais bandeiras de Bolsonaro - uma auditoria ao custo de R$ 48 milhões concluiu que não há evidências "de que as operações tenham sido motivadas por influência indevida sobre o banco, nem por corrupção". Como você recebeu essa informação? Luciano Coutinho: A pesquisa da auditoria efetuada pela renomada empresa internacional Cleary Gottlieb Steen and Hamilton, juntamente com o escritório de advocacia brasileiro Levy Salomão, utilizou tecnologia avançada de cruzamento de informações para analisar cerca de 3 milhões de mensagens de email e whatsapp de dezenas de funcionários e executivos, assim como verificou 400 mil documentos do BNDES e de outras fontes e não encontrou qualquer evidência de comportamentos ilícitos ou suspeitos nem, tampouco, evidências de influência indevida interna ou externa sobre os processos decisórios da instituição relativos às operações com o grupo J&F. Dezenas de funcionários e executivos foram detalhadamente entrevistados para sanar dúvidas e prover explicações. Na sua conclusão a auditoria isentou os funcionários, executivos e a minha pessoa de qualquer irregularidade, deixando clara a integridade, impessoalidade e lisura dos processos. Nesse sentido ela é esclarecedora porque resgata a verdade dos fatos e nos oferece uma oportunidade fundamentada de responder às aleivosias e ataques à honra das pessoas e do Banco enquanto instituição. Fórum: Ainda em relação ao BNDES, a lava jato e todo o processo político ocasionou uma forte falta de competitividade das grandes empresas nacionais no cenário mundial - como é o caso das empreiteiras. Essas empresas alavancaram a atuação internacional em grande parte com recursos do BNDES. Hoje, o BNDES parece mais disposto a financiar empresas estadunidenses como a Boeing, que comprou a Embraer. Como vê a gestão do BNDES sob o governo Bolsonaro? Luciano Coutinho: A grave crise das empresas brasileiras de engenharia e construção e a completa interrupção de suas atividades no exterior representa, sem dúvida, um dano à economia brasileira. A cadeia produtiva exportadora de serviços de engenharia e construção, insumos e produtos associados, que mobilizava cerca de 4 mil pequenas e médias empresas, gerando empregos, impostos e divisas para o Brasil, foi inteiramente desarticulada. Mais grave ainda, com a crise das construtoras a capacidade de preparar e empreender projetos de infraestrutura no país foi seriamente afetada e isso se traduz na dificuldade governamental de articular um urgente e necessário ciclo de novos investimentos para recuperar o desenvolvimento sustentado da economia brasileira. A raiz da questão vem da inexistência de um processo legal tempestivo, organizado e conclusivo de leniência para as empresas corruptoras que colaboraram com a justiça e vêm pagando as devidas multas. Essa falta de ordem propiciou uma disputa entre órgãos de controle de forma que, na prática, os processos se prolongaram indefinidamente e tornaram inviável ou muito difícil a recuperação de suas receitas e reputação. Nos países desenvolvidos, processos de saneamento da corrupção punem dirigentes e acionistas julgados culpados mas dão uma chance real de sobrevivência às empresas. Os processos são rápidos, sigilosos e permitem às empresas voltar a contratar com o setor publico e a ter acesso aos financiamentos governamentais. No nosso caso, lamentavelmente, os processos foram caóticos e altamente destrutivos para as empresas e para a economia. Dezenas de países desenvolvidos e em desenvolvimento dispõem de seguradoras e bancos públicos para apoiar as exportações de serviços de engenharia e construção e de bens de capital de alto valor. Trata-se de um mercado valioso e muito disputado globalmente. O apoio proativo a esse tipo de exportação data de muitas décadas e é praticado por países como os Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Japão, Espanha, França, Itália, Suécia, entre os desenvolvidos, e por países emergentes como a China, Coréia do Sul, Índia, Rússia, África do Sul. No Brasil essa missão cabe precipuamente ao BNDES. A lógica é financiar a exportação de bens e serviços produzidos e originados no nosso país, que aqui gerem empregos, impostos e benefícios econômicos. Neste sentido, não faz sentido discriminar empresas por origem do capital mas sim pelos benefícios que trazem à nossa economia. Compartilho a preocupação com o futuro da Embraer por outras razões, tais como, sua autonomia tecnológica e sua capacidade de continuar desenvolvendo produtos novos com engenharia brasileira. Fórum: Em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, o BC registrou uma fuga recorde de US$ 44,768 bilhões - a maior da série histórica, desde 1982. A fuga vem acompanhada ainda da queima de pelo menos outros US$ 10 bilhões em reservas cambiais, acumuladas sobretudo durante os governos do ex-presidente Lula, quando o Brasil chegou a registrar o ingresso de mais de US$ 87 bilhões, em 2007. Como você analisa esse cenário econômico, em meio ao ufanismo de Bolsonaro, que diz estar trazendo capital estrangeiro para o país? Luciano Coutinho: Preocupa-me muito a atual política do Banco Central de vender reservas internacionais. No segundo semestre de 2019 as intervenções cambiais realizadas no mercado à vista liquidaram US$ 37 bilhões das nossas reservas cambiais, que caíram de US$ 391 bilhões para US$ 357 bilhões. Essa política se deu num contexto de forte saída de capitais do Brasil que totalizou quase US$ 45 bilhões ano passado. A suavização da instabilidade cambial poderia ter sido operada através de outras medidas, como as operações de swap. Alguns economistas que olham apenas o lado fiscal já propõem novas reduções das nossas reservas, para baixo de US$ 300 bilhões. Creio que a continuidade dessa política de erosão das reservas é altamente imprudente. Significa diminuir o colchão de segurança que blinda a economia brasileira das volatilidades do mercado internacional de capitais, especialmente num ano como 2020 em que incertezas quanto ao desempenho da economia mundial (EUA, China, Europa) e as turbulências eleitorais da eleição norte-americana certamente provocarão novas rodadas de instabilidade. Fórum: Paulo Guedes usou o Fórum Econômico Mundial para "vender" o Brasil. O mesmo foi feito por Bolsonaro agora na Índia, da mesma forma com que já havia feito na China. Como você vê esse avanço da política de privatização, dentro de uma imposição das medidas ultraliberais por Guedes e Bolsonaro? Luciano Coutinho: A incapacidade demonstrada pela atual equipe econômica ultraliberal de organizar um projeto nacional de desenvolvimento consistente, baseado em planos de longo prazo e projetos de infraestrutura bem elaborados e bancáveis está na raiz das expectativas diminuídas de crescimento. Sem um ciclo robusto de investimentos em infraestruturas, que suba a formação de capital fixo, hoje de apenas 15% para 22% do PIB, a economia continuará patinando em ritmo medíocre. A privatização de ativos existentes, per se, será atraente para grandes empresas estrangeiras, inclusive estatais de outros países, se os preços e condições forem convidativas – mas isso não garante investimentos substanciais em novos projetos. Sem uma articulação virtuosa entre o Estado e o setor privado, baseada em planos concretos e em uma estrutura de financiamento de longo prazo compatível, que conte com a capacidade de crédito do BNDES e a contribuição do mercado de capitais, serão vãs as tentativas de atrair investidores apenas com discurso ideológico. Além disso, a desastrosa política ambiental brasileira atua de forma crescentemente dissuasória para as empresas mais conscientes e engajadas na agenda da sustentabilidade climática. Nesse quadro é constrangedor ver as autoridades do país adulando os investidores de modo subserviente, sem estratégia e sem planos credíveis, confiando na utopia de que o mercado “tudo resolverá”.