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Por Thessa Guimarães*
Bolsonaro sancionou, em 5 de junho, a lei 13.840/2019, que legaliza uma indústria de internações involuntárias no Brasil. A lei atende ao lobby de donos de comunidades terapêuticas, clínicas de internação psiquiátrica, hospitais e laboratórios farmacêuticos.
Pesquisa da Fiocruz aponta que não existe uma epidemia do uso de drogas no país. O ministro Osmar Terra, do Ministério da Cidadania, censurou a divulgação do documento, fruto de pesquisa orçada em sete milhões de reais. A justificativa do ministro para a censura é que a pesquisa teria “viés ideológico”.
A Fundação Oswaldo Cruz é patrimônio da ciência brasileira. A censura dessa pesquisa é mais um momento em que o fundamentalismo irracional do governo Bolsonaro despreza a objetividade dos dados, a concretude da realidade e a opinião dos setores concernidos. O 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira ouviu 16 mil pessoas, em 100 dos mais populosos municípios do país.
Logo na sequência, constatou-se a retirada do ar do site do Observatório Brasileiro de Informações Sobre Drogas (Obid). Trata-se do maior repositório de estudos com dados coletados desde 2002, até então mantido pelo Ministério da Justiça, mas convenientemente repassado para responsabilidade do Ministério de Osmar Terra.
Experiências e estudos realizados em vários países revelam a eficácia da política de redução de danos, uma perspectiva que discute a exclusividade da droga como problema e considera as variáveis multideterminadas da dependência química - um fenômeno social. Tal perspectiva, um avanço técnico e ético da política brasileira de saúde mental, foi rechaçada pelo governo através do Projeto de Lei da Câmara 37/2013, em nome de uma política de abstinência, cujo real fundamento é o moralismo que patrocina os interesses dos donos das “comunidades terapêuticas”. Irônica obviedade, o PL foi apresentado pelo ministro Osmar Terra quando era deputado.
A inspeção por órgãos reguladores dessas Barbacenas repaginadas revela diversos ataques a direitos. Isolamento social dos internos, crises de abstinência em plena reclusão, restrição à comunicação com familiares e aos dispositivos da rede pública de saúde, submissão a regimes disciplinares de assédio religioso e trabalho forçado, internações compulsórias duradouras.
O Relatório da Inspeção Nacional das Comunidades Terapêuticas realizado em parceria entre o Mecanismo Macional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), o Ministério Público Federal (MPF) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP) acompanhou 28 estabelecimentos de 11 estados e o Distrito Federal. Em 16 dos locais inspecionados foram constatados castigos e punição severa aos internos. Proibição de alimentação, privação de sono, retenção de cartões bancários e benefícios sociais. Quase nenhuma das instituições previa a inclusão da família e o fortalecimento de vínculos no projeto terapêutico. Tampouco previa qualquer forma de capacitação para o trabalho e para a vida autônoma. Na novilíngua do governo, “comunidade terapêutica” é o nome de seu reverso: verdadeiros campos de concentração contemporâneos.
Essa é apenas mais uma face da perversidade da atual gestão. No Brasil de Bolsonaro, as políticas públicas e decretos de governo tem o objetivo de elevar à última potência o sofrimento humano - e então, transformá-lo em commodity. Sofrimento de corpos em sua maioria negros, cujo valor de troca somente os donos de penitenciárias e de “comunidades” “terapêuticas” conhecem com precisão.
Os Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS), dispositivos de saúde substitutivos ao manicômio, que prezam pelo cuidado de base comunitária, receberão um orçamento anual quase equivalente ao das comunidades terapêuticas a partir da implementação do PL 37/13. Os 154 milhões de reais anuais do Estado destinados a tais instituições privadas são efeito da rápida substituição de uma política histórica de cuidado, construída pela luta antimanicomial, para uma política nacional de exploração capitalista do sofrimento.
Ao aprovar o PL 37/2013, relatado por senador policial, sem formação em ciências de saúde, o governo está assumindo a objetificação do sofrimento como política de Estado. Esta política vem se aliar ao encarceramento em massa, ao genocídio da juventude negra, à cassação de direitos trabalhistas e previdenciários e à carta branca da polícia para fuzilar.
A necropolítica selvagem do bolsonarismo não tem coração que esqueça, não tem jeito mesmo.
Contra a distopia de um governo psicopata, sete cabeças precisam tombar.
Thessa Guimarães, psicóloga, psicanalista e integrante do coletivo Psicanálise na Rua