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Por Leandro Gaspar Scalabrin*
O padrão vigente de implantação de barragens, que tem propiciado de maneira recorrente graves violações de direitos humanos, foi forjado durante a ditadura militar brasileira e persiste.
A ditadura reestruturou o Ministério de Minas e Energia (Decreto 63.951/68) em plena vigência do AI-5, e criou o DNAEE (Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica). A Eletrobrás, Eletrosul e Eletronorte foram criadas durante a ditadura e construíram mais de 30 grandes usinas hidrelétricas, obras faraônicas, ufanistas e superfaturadas, nas quais as denúncias de corrupção não existiam em razão da repressão militar e da censura, são elas: Tucuruí, Ilha Solteira, Jupiá, Itaipu, Passo Fundo, Sobradinho e Balbina. Estas obras foram financiadas por empréstimos internacionais que aumentaram a dívida externa brasileira e beneficiaram grandes empresas internacionais. As empresas ganhavam com a compra de equipamentos e na venda de energia a preços subsidiados pelas estatais (como exemplo, empresas japonesas no Pará que exportavam alumínio) e as empreiteiras (que colaboravam com a ditadura) na construção das obras. Os atingidos pelas obras e o povo brasileiro pagavam a conta social e ambiental enquanto grandes empresas multinacionais lucravam com a energia subsidiada instituída pelos militares.
[caption id="attachment_170302" align="alignnone" width="392"] Foto: Douglas Mansur[/caption]
A ditadura consolidou a visão tecnocrata do setor elétrico que persiste, em parte, até os dias de hoje. Dentro desta visão, as barragens representam o progresso e o homem e a natureza são meros obstáculos, que não possuem direitos e devem ser removidos. Como afirma uma importante figura do setor nos dias de hoje: “não dá pra discutir o Natal com o peru”. A visão patrimonialista do conceito de atingido, como sendo apenas o proprietário, causa de inúmeras violações e surge nesse período.
Em Itaipu, 40.000 pessoas do lado brasileiro, e 20.000 do lado paraguaio, foram vítimas de violações de direitos sem receber indenizações e sem serem reassentadas. Inúmeros camponeses foram “desaparecidos” e sequer constam das listas oficiais. Na Barragem de Ilha Solteira (SP), a resistência dos atingidos foi tratada como “guerrilha” pela ditadura. O filme “O profeta das águas” narra a história de Aparecido Galdino Jacintho, um líder religioso que se opôs a construção da Barragem de Ilha Solteira (a maior do Brasil na época) a partir de 1966. Galdino foi julgado por vários tribunais civis e militares, incriminado na Lei de Segurança Nacional e por nove anos ficou detido com outros presos políticos e presos comuns, nos presídios de Barro Branco, Tiradentes, Carandiru, além das cadeias do DOPS e DOI-CODI. Em 1972, ao ser condenado pelos Tribunais foi considerado como “louco” (por não aceitar o progresso?) e transferido para o Manicômio Judiciário de Franco da Rocha onde cumpriu pena até 1979. Os camponeses que o seguiam foram presos por três meses na cadeia de Estrela D ?Oeste.
Dentro das Estatais do Setor Elétrico foram criadas as AESIs (Assessorias Especiais de Segurança e Informações), vinculadas à Divisão de Segurança e Informações (DSI) e subordinadas ao Serviço Nacional de Informações (SNI). As AESIS eram responsáveis pela espionagem, repressão, delação, prisões, sequestros e assassinatos de trabalhadores e sindicalistas do setor elétrico, lideranças e atingidos por barragens brasileiros e de outros países, como no caso da AESI de Itaipu.
O DSI do Ministério de Minas e Energia produzia relatórios secretos ainda em 1984 sobre as mobilizações dos atingidos pelas barragens da bacia do Rio Uruguai, espionando a Comissão Regional de Atingidos por Barragens (CRAB), uma das comissões que criaria o MAB em 1991) e a CPT.
A ASI Eltrosul também realizava espionagens, as quais estão disponíveis atualmente no Arquivo Nacional. A de número G0098322 de 18-9-84 analisa um caderno de estudos da CRAB que apresentava as consequências do projeto de construção de 22 barragens na Bacia do Rio Uruguai. Outro dossiê revela a espionagem de uma assembleia realizada após a democratização, em 05 de maio de 1988, no qual os arapongas do setor elétrico se mostram preocupados com a organização dos atingidos que estavam discutindo a mobilização nacional para realizar o I Encontro Nacional de Atingidos por Barragens e “discutir e definir uma filosofia igual para os movimentos de famílias atingidas em todo o Brasil”.
Todas as conquistas de direitos decorrentes das lutas de resistência das populações atingidas por barragens ocorreram ao longo dos anos 1980, principalmente a partir da redemocratização do país e do final da ditadura (1985). Os atingidos passam a ter maior liberdade e garantia do direito de organização e manifestação. Como resultado das lutas dos atingidos e do movimento ambientalista, o setor elétrico foi pressionado a incorporar questões sociais e ambientais à agenda desenvolvimentista dos militares. Em 1986, foi conquistada a Resolução 01/86 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) que regulamentou a obrigatoriedade de realização de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e Relatórios de Impacto Ambiental (Rima) para fins de licenciamento ambiental. Em 1986 e 1987, a Comissão Regional de Atingidos por Barragens assina o Termo de Acordo de Itá e Machadinho, com o Ministro Aureliano Chaves, instituindo o direito à assessoria técnica das populações ameaçadas e o direito ao reassentamento das famílias atingidas pelas duas hidrelétricas.
A declaração do representante da Eletrobrás à imprensa, em 1988, resume o contexto vivido pelos atingidos durante a ditadura militar:
Realmente nossas hidrelétricas foram construídas sem qualquer preocupação com a qualidade de vida da população e com o meio ambiente, gerando dessa forma desastres calamitosos do ponto de vista social e ecológico. Mas tenham uma dose de paciência com o nosso setor: afinal, reconhecemos nossas culpas e estamos dispostos a revisar nossas políticas para tentar resgatar nossa dívida com a sociedade brasileira. (Jornal da Tarde, 11.5.1988)
Até hoje essa dívida não foi paga, como atesta o levantamento social realizado sobre o passivo existente em relação a Barragem de Sobradinho, construída durante a ditadura, na qual os atingidos e atingidas ainda não foram reparados por suas perdas causadas pela hidrelétrica.
Outro fato que merece destaque é que Itaipu foi moeda de troca para o apoio material e político da ditadura brasileira aos conspiradores chilenos que derrubaram o governo socialista de Salvador Allende. Em troca deste apoio, a ditadura brasileira exigiu que votasse a favor do Brasil ou se abstivesse da votação, na questão apresentada pela Argentina nas Nações Unidas, contra a construção da usina binacional.
Os resquícios da ditadura ainda entulham as lutas e a realidade dos atingidos por barragens. A Lei 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional), que considera sabotagem e crime contra a segurança nacional atos contra instalações de usinas e barragens, ainda em vigor, é um resquício dessa época, que foi utilizado contra militantes do MAB que participaram de protestos no Rio Grande do Sul nos anos 2000.
Recentemente (fevereiro de 2019), o governo federal anunciou a decisão do Conselho de Defesa Nacional de enquadrar a obra do linhão de Tucuruí entre Manaus e Boa Vista como “escopo da soberania e da integridade nacional” com graves consequências para os povos indígenas Waimir-Atroari que terão suas terras mais uma vez atingidas por grandes empreendimentos.
A maior parte da política energética nacional (lei 9.478/97), que considera a geração de energia por meio de hidrelétricas um “interesse nacional” de “todos/todas” é outro resquício da ditadura, principalmente pelo fato de instituir um Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) sem qualquer tipo de participação popular. O representante da sociedade civil neste conselho, não precisa representar nenhuma organização popular, mas precisa ser um “especialista em matéria de energia” (Decreto 5.793/2006). Aliás, a Política Energética Nacional nunca foi submetida a processo de participação popular com conferências municipais, estaduais e nacionais, como ocorrem em outras políticas públicas.
A legislação que trata dos direitos dos atingidos ainda é a mesma utilizada na ditadura militar, que reconhece o direito apenas o proprietário e como reparação apenas a indenização em dinheiro: o decreto 3.365 imposto em outra ditadura militar brasileira, a de Vargas em 1941.
Os atingidos e atingidas de todo Brasil estão organizando a resistência ao retorno do setor elétrico brasileiro aos quartéis, como assistimos, agora, em 2019. Depois de 34 anos, o Ministério de Minas e Energia volta a ser comandado pelos militares (na figura do Almirante de Esquadra da Marinha Bento Albuquerque). O último ministro militar havia sido Cesar Cals O. Filho (ministro entre 1979-1985). O governo anunciou que pretende acabar com o sistema de licenciamento ambiental instituído pela resolução 01/1986 do CONAMA, conquista das lutas dos atingidos e ambientalistas no processo de democratização do Brasil.
Os direitos dos atingidos que ainda não foram instituídos em lei sofrem um duro revés com a decisão do governo federal de não receber o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) para negociar as reivindicações das populações por não possuir CNPJ, conforme publicado através de instrução da Ouvidoria Agrária do INCRA.
Mesmo com toda a tragédia ocorrida em Brumadinho (2019), o governo federal decidiu não ingressar com ação judicial contra a Vale, para buscar a reparação dos direitos dos atingidos, como foi feito no caso de Mariana (2015), no qual a ação resultou no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) de 20 bilhões de reais. Mesmo com todas as críticas existentes ao TAC, ao valor do acordo e contra a Renova, não podemos deixar de reconhecer que a ação evidenciou uma postura de defesa dos atingidos pelo governo federal, o que não se viu agora. O governo também não garantiu a participação dos atingidos nas instâncias governamentais que criou para intervir na situação e estudar mudanças na legislação de segurança de barragens.
Contamos com a mobilização e apoio de todos/as parceiros e aliados dos atingidos por barragens para resistir a estes retrocessos e ataques aos direitos dos atingidos, que está materializado no retorno do controle das Minas e Energia brasileira às mãos dos militares.
*Conselheiro do CNDH