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Para um indivíduo que estava em 1964 no exato dia em que o golpe militar aconteceu, a ideia de que tudo não passava de um movimento para salvar o país pode até fazer sentido, mas para um indivíduo de 2019 essa interpretação é inconcebível.
E mais. Um indivíduo que vivia naqueles tenebrosos dias poderia acreditar que os militares estavam ali para combater o socialismo. Mas em 2019, crer nisto, seria ignorância ou manipulação.
É como uma floresta que se sufoca em uma imensa queimada. A pessoa que está entre as chamas que devora a mata, não faz ideia de onde teve início o incêndio, mas para aquela que observa tudo de um avião, é fácil detectar a origem da fumaça.
O golpe nada tinha que ver com o combate ao socialismo, e sim com uma forma de manipular as contradições sociais da época e, principalmente, para impor um modelo econômico impopular.
Durante a crise econômica que se instalou no início dos anos 1960, dois modelos se apresentaram como solução viável. Um era a tese estruturalista defendida por Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares. O objetivo era “atender à demanda de bens e serviços interna não afetada pela crise do setor exportador”.
A baixa renda do trabalhador rural gerava uma concentração enorme. A economia entraria em estagnação se o modelo econômico auto-sustentável, no qual o trabalhador consome aquilo que produz, não fosse instalado. Mas para isso era necessário investimentos governamentais e “mecanismos para superar a deficiência da demanda interna, como, por exemplo, uma reforma agrária que contribuísse para a ampliação e a diversificação do consumo doméstico e para melhor distribuição da renda. No início dos anos 1960, este conjunto passou a ser chamado de reformas de base”.[1]
Existia um outro grupo de economistas: os liberais. Eugênio Gudin e Octávio Gouveia de Bulhões eram os seus representantes principais. O objetivo aqui é manter a estabilidade monetária e um modelo de tributação que incentivasse os investimentos.
O argumento era que seria necessário acabar com o populismo econômico. Acreditava-se que havia um populismo fiscal, um populismo na política de crédito e um populismo salarial. Quando Castelo Branco assumiu o poder colocou diversos liberais na pasta econômica.
Colocou-se fim à Lei da Usura que limitava a taxa de juros em 12% para que a inflação não ultrapassasse tal taxa. Assim as taxas de juros reais se tornavam atraentes para os investidores privados.
Criou-se o Banco Central para fiscalizar uma política financeira que pudesse aumentar os recursos disponíveis para investimento no setor privado, sem que fosse necessário recorrer a fontes inflacionárias de criação de crédito.
Por fim foi criado um mecanismo de reajuste salarial que “despolitizava” as negociações salariais. Pretendia-se substituir as indenizações pagas pelo empregador por um mecanismo do Fundo de Garantia, onde parte da remuneração é depositada em um fundo, o FGTS. Isso gerou uma maior flexibilidade da contratação e demissão da mão de obra além de livrar o empregador de encargos.
Essa política econômica liberal era extremamente impopular, contudo agradava as elites e o capital estrangeiro. Dificilmente ela seria implementada democraticamente já que houve resistência mesmo sob o governo ditatorial.
O golpe, apoiado por setores civis ligados ao mercado que se aliou aos setores tradicionais, apoiou-se na retórica moralista que descrevia o perigo vermelho como um fenômeno real que poderia dominar o país. Foi assim em 1937, em 1964 e, também, em 2016.
Todos esses movimentos que levaram a ascensão de grupos militares sempre tiveram como meta combater a democracia, promovendo forças contrárias à participação na política de camadas populares antes excluídas. 1964 em particular foi “um movimento contra as reformas políticas e sociais; uma ação repressiva contra a politização das organizações dos trabalhadores (no campo e nas cidades); um golpe contra o amplo e rico debate ideológico e cultural que estava em curso no país”.[2]
O mesmo acontece agora. 2013 foi o marco. As classes dominantes perceberam que a participação popular precisava ser contida. Mas os mecanismos de controle e manipulação do século XXI dispensam a necessidade de uma ditadura. Eles causam inveja a qualquer ditador do século XX. Foi suficiente deslocar o ódio em relação à concentração de renda, contra os ricos e milionários para o oprimido, o pobre etc..
O modelo econômico que mantém os problemas sociais deve ser mantido, por isso aponta-se como tese explicativa da crise elementos morais e políticos. Hoje essas ideias são muito mais fáceis de serem absorvidas devido às tecnologias da comunicação. As pessoas são bombardeadas em seu período ócio com inúmeros memes e fakenews. Por tanto, quando não estão trabalhando estão ouvindo e lendo mentiras, dissimulações.
Desta maneira, com apoio da grande mídia que cria um discurso mais sério em apoio às Reformas conservadoras, o modelo econômico tradicional e impopular vai se impondo. Uma ditadura hoje só seria possível caso esse modelo não tivesse chance de ser implantado democraticamente. Contudo, foi necessário um golpe em 2016 para facilitar essa trama. Além disso, todo um empenho midiático e internacional está para tal objetivo.
A retórica que diz que o golpe foi para conter o comunismo é usada para esconder os verdadeiros interesses econômicos por trás da ditadura, muito similares aos interesses atuais da classe dominante. É por isso que esse tema está sendo resgatado. Podemos ter um “milagre econômico” no futuro, mas os problemas sociais serão intensificados. Tudo “coincidentemente” como nos anos 1960 e 1970. Será que estamos presos em um eterno loop temporal que mantém os interesses do mercado?
[1] PRADO, L. e EARP, F. O “milagre” brasileiro: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda (1967-1973). Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida N.
Delgado (Org.) O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v.4, Pp. 211-212.
[2] TOLEDO, C. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. MOTTA, RODRIGO PATTO SÁ; REIS, DANIEL AARÃO; RIDENTI, MARCELO (ORG.). A DITADURA QUE MUDOU O BRASIL – 50 ANOS DO GOLPE DE 1964. RIO DE JANEIRO: ZAHAR, 2014. P. 68.