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Diante da crise institucional brasileira, que envolve todos os poderes constituídos, uma parte significativa da população repete exaustivamente que a solução para o problema da corrupção, que se alastrou pelo país, seria a intervenção militar, pois a medida acabaria com esse mal que flagela a sociedade. Há nessa narrativa uma ideia absolutamente equivocada de que, durante o período da ditadura militar, não havia corrupção.
“Não havia sensação de corrupção por um motivo muito simples: era um Estado autoritário, era uma ditadura, que não tinha o menor constrangimento de perseguir, torturar e matar seus adversários. Então, como o Ministério Público e a Polícia Federal podiam investigar a corrupção de um ditador? Como a imprensa divulgaria isso? Portanto, é de se esperar que em uma ditadura a percepção da corrupção seja menor, porque as instituições de controle não são autônomas para investigar e acusar e a imprensa não é independente para trazer a público esses escândalos”, explica o historiador Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e colunista da Fórum.
[caption id="attachment_140643" align="alignnone" width="380"] Rodrigo: “Não havia sensação de corrupção por um motivo muito simples: era um Estado autoritário, era uma ditadura" - Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
Para os mais jovens, talvez não soe familiar nomes como Luftala, Capemi, Dossiê Baumgarten, Coroa-Brastel e Paulipetro. Esses são apenas alguns dos muitos casos em que houve intensa prática de corrupção durante os chamados Anos de Chumbo. No entanto, a realidade da época impunha severa censura, o que dificultava as denúncias contra os militares e seus aliados, principalmente empresários bem-sucedidos. Isso mantinha a maioria dos brasileiros desinformada sobre distribuição de cargos entre amigos e parentes, desvio de verbas públicas, enriquecimento ilícito e pagamento de propinas.
“O fato de que não havia corrupção na época é mais um mito sobre o regime militar. Já no governo Costa e Silva (1967-69) houve denúncias contra ministros, como Mário Andreazza, dos Transportes, por parte de grupos de dentro das próprias Forças Armadas, no meio dos conflitos internos dos militares”, conta o cientista político João Roberto Martins Filho, estudioso da ditadura militar e professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Raiz do problema
O historiador acha importante buscar a origem dessa falsa percepção de que não havia corrupção na ditadura militar. “Corrupção se tornou o termo chave da crise. Toda crise brasileira contemporânea está muito pautada nesse conceito. Só que esse conceito é polissêmico, ou seja, tem vários sentidos. Ao longo dos debates políticos no mundo ocidental pode ser tratado em diversas perspectivas. O conceito de corrupção que pauta a crise brasileira é o liberal, que parte do princípio que corrupto é o político que rouba dinheiro público, quer dizer, é uma ideia de corrupção muito ligada ao roubo, à ofensa à propriedade”, reflete Rodrigo.
Ele cita exemplos de como é esse entendimento: “O mercado financeiro, que faz guerra cambial, terrorismo especulativo, não é corrupto, porque nosso conceito de corrupção está muito centrado na política e na esfera pública. Isso já é uma apropriação seletiva dessa ideia. Os bancos com seus lucros exorbitantes não são corruptos, mesmo cobrando 400% ao ano no juro rotativo do cartão de crédito, porque o conceito de corrupção seletivamente usado não abarca esse tipo de prática”.
Em sua avaliação, o Brasil vive um momento, no qual ganha espaço aquilo que os historiadores estão chamando de revisionismos, que são exatamente essas leituras positivadas da ditadura militar, uma coisa impensada pouco tempo atrás. “No final dos anos 90 e início dos anos 2000, era muito raro você encontrar alguém que fizesse alguma representação narrativa positiva do regime militar. Existia somente um saudosismo bem residual. A memória pública era pautada pela ideia de que aquilo tinha sido uma página ruim da história do Brasil e que estava superado.”
No entanto, prossegue ele, “o que é muito impressionante na crise é como que essa memória foi reaberta, como a memória do regime militar passou a ser positivada, inclusive, até com a defesa da tortura e da violência desse regime político de forma muito natural, sem constrangimento. São coisas que a gente tem de pensar. Isso levanta o questionamento: Por que a crise reabriu a disputa por essa memória, uma memória que parecia pacificada?”.
Utopia autoritária
Rodrigo tem uma hipótese para explicar o fato: “O colapso da Nova República, o regime político que sucedeu à ditadura militar, fez com que se difundisse a ideia de que a democracia falhou na função de promover bem-estar, o que os números não comprovam. A Nova República trouxe muitos avanços, até mesmo nos governos tucanos, como o controle inflacionário. Nos governos petistas, na ampliação dos direitos sociais. No entanto, a mídia hegemônica difundiu a percepção de que a democracia falhou, foi um projeto fracassado. Isso alimenta todo o tipo de utopia autoritária, e Jair Bolsonaro é a personificação disso, de que diante da falência da democracia e de seus corolários, como direitos humanos, direito amplo de defesa, presunção da inocência, ganhou força a ideia de que o Estado autoritário é necessário para a garantia do bem-estar, especialmente ao que se refere ao debate sobre segurança pública”, acrescenta.
“Justamente em meio a esse movimento geral de positivação da memória do regime militar, de reabertura das disputas sobre os significados dessa experiência, que nós temos a alegoria e a narrativa de que não havia corrupção no regime militar. A grande questão é essa: Como se averígua corrupção? É necessário que nós façamos uma distinção entre a prática de corrupção e a corrupção nesse sentido liberal, que quer dizer o agente público roubando, superfaturando obra. É a sensação de corrupção, que tem a ver com a publicização de denúncias. Nós temos uma série de pesquisas nas quais os autores investigaram indícios de corrupção nas chamadas obras faraônicas na época, como a Ponte Rio-Niterói, por exemplo, que mostraram que é claro que havia prática de corrupção”, destaca o historiador.
[caption id="attachment_140649" align="alignnone" width="450"] Os generais Médici e Geisel - Foto: Fundação Getúlio Vargas/Arquivo[/caption]
João Roberto Martins não acredita que houvesse mais corrupção na época da ditadura militar do que hoje, mas ressalta: “O país é incomparavelmente mais rico, embora nos anos 70 choveram petrodólares por aqui e foram abertas inúmeras possibilidades de corrupção. O caso mais famoso foi o chamado ‘Relatório Saraiva’, sobre corrupção nas embaixadas de Londres e Paris, à época de Roberto Campos e Delfim Netto (ministros do regime militar), por exemplo. Um coronel acusou a existência de propinas para conseguir contratos de obras no Brasil. Delfim nega, mas na época teve grande repercussão”, relembra.
O cientista político considera que a principal consequência que a prática da corrupção naquele período trouxe para a política dos dias atuais é “ter impedido, ao interromper a democracia no Brasil, que se criasse aqui uma verdadeira cultura política republicana. Hoje, estamos pagando caro por isso”, avalia.
[caption id="attachment_140644" align="alignnone" width="350"] Para João Roberto, a corrupção na ditadura impediu, "que se criasse aqui uma cultura política republicana" - Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
Memória
É sempre bom reativar a memória da população para que, nas eleições de outubro, ela não permita que nenhum resquício da época mais tenebrosa da história do Brasil volte. Por isso, cabe lembrar alguns, somente alguns, dos muitos casos de intensa corrupção que ocorreram durante os anos em que o país foi comandado por uma ditadura militar violenta, que permitia, promovia e executava, sem qualquer constrangimento ou pudor, a prática de tortura e assassinatos.
O professor João Roberto foi responsável por encontrar documentos confidenciais do governo do Reino Unido, que mostram que a ditadura militar escondeu uma investigação de corrupção na aquisição de fragatas construídas pelos ingleses nos anos 1970. Os fatos aconteceram durante os governos dos generais Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979). O cientista político pesquisou arquivos da diplomacia britânica no “King’s College” de Londres.
Em 1978, o Reino Unido demonstrou interesse em apurar denúncia de superfaturamento na aquisição de equipamentos para a construção dos navios vendidos ao Brasil e ainda se dispôs a indenizar o país em, pelo menos, 500 mil libras (cerca de R$ 15 milhões hoje), de acordo com os registros. No entanto, ao invés de ajudar na investigação, que, de fato, seria do interesse nacional, o governo militar rejeitou a indenização e as solicitações britânicas para ajudar na investigação.
Empreiteiras
Nomes de empreiteiras, como Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Mendes Júnior e Odebrecht estão muito presentes no noticiário atual, acusadas de serem grandes focos de corrupção. No entanto, essas empresas já atuavam com muito “empenho” nos governos militares. Embora a maioria delas tenha crescido na gestão de Juscelino Kubitschek, foi durante a ditadura militar que elas foram contempladas com contratos milionários suspeitos e denúncias sobre envolvimento com propinas.
Delfim e Camargo Corrêa
Embora civil, Delfim Netto se transformou em um dos homens fortes do regime militar. Foi ministro da Fazenda nos governos Costa e Silva (1967-1969) e Médici, embaixador brasileiro na França no governo Geisel e ministro da Agricultura (depois Planejamento) no governo Figueiredo. Investigado algumas vezes por corrupção, em 1974 foi acusado de ter facilitado que a empreiteira Camargo Corrêa ganhasse a concorrência da construção da hidrelétrica de Água Vermelha, em Minas Gerais.
Anos depois, já como como embaixador, foi acusado pelo banqueiro francês Jacques de la Broissia de ter prejudicado sua instituição financeira, o Crédit Commercial de France, que teria se negado a fornecer US$ 60 milhões para a construção da usina hidrelétrica de Tucuruí, obra também executada pela Camargo Corrêa.
[caption id="attachment_140650" align="alignnone" width="450"] Delfim Netto - Foto: Reprodução/YouTube[/caption]
Ponte Rio-Niterói
Um dos empreendimentos mais emblemáticos do regime militar foi a Ponta Costa e Silva, conhecida como Rio-Niterói. Demorou cinco anos para ser concluída e passou pelas mãos de dois consórcios. Primeiro, Construtora Ferraz Cavalcanti, Construtora Brasileira de Estradas, Empresa de Melhoramentos e Construções S.A. e Servix Engenharia S.A., que entregariam a ponte no valor de 238 milhões de cruzeiros.
Como a obra atrasou muito e vários operários morreram durante a construção, o então ministro dos Transportes, Mário Andreazza, passou a missão para Camargo Corrêa, Mendes Júnior e Construtores Rabelo Sérgio Marques de Souza.
O valor exato da obra é impossível de se mensurar. Para ser uma ideia, o Globo noticiou que o custo foi de US$ 674 milhões na época (1971). Já a revista IstoÉ afirma que o empreendimento teria ficado em R$ 5 bilhões.
[caption id="attachment_140651" align="alignnone" width="450"] Ponte Rio-Niterói - Foto: Reprodução/YouTube[/caption]
Hidrelétrica de Itaipu
Comenta-se que a maior produtora de energia elétrica do mundo provavelmente também foi a que mais desviou verbas públicas no regime militar. A Hidrelétrica Binacional de Itaipu foi inaugurada em 1982. Um “detalhe”: foi feita pelas construtoras Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e Mendes Júnior.
Uma história nebulosa envolve a obra. Em 1979, o embaixador José Jobim foi encontrado morto, supostamente enforcado com uma corda. Á época, sua filha disse que, uma semana antes, ele esteve na posse do general João Figueiredo e anunciou que escreveria um livro relatando tudo sobre a corrupção na construção da usina. Jobim foi responsável por negociar as turbinas da usina com a empresa Siemens, no Paraguai. Junto a seu corpo foram encontrados sinais de sangue e seus pés estavam encostados no chão. Entretanto, a investigação concluiu que foi “suicídio” e não houve abertura de inquérito.
[caption id="attachment_140652" align="alignnone" width="450"] Hidrelétrica de Itaipu - Foto: Reprodução/YouTube[/caption]
Transamazônica
A estrada Transamazônica foi uma obra bilionária que não foi concluída pelos militares, durante o governo Médici. O projeto inicial previa que o empreendimento ligaria Cabedelo, na Paraíba, a Benjamin Constant, no Amazonas. O objetivo era seguir até o pacífico pelo Peru e Equador. Além do crime ambiental, causado pelo desmatamento, expulsão de povos indígenas e seringueiros, a obra “comeu” US$ 1,5 bilhão à época. Ao final, a Transamazônica acabou 687 quilômetros antes do previsto e sem asfalto.
[caption id="attachment_140653" align="alignnone" width="450"] Transamazônica - Foto: Wikimedia Commons[/caption]
Usinas de Angra
As construções das usinas nucleares de Angra estão envoltas em denúncias de corrupção. Para citar um exemplo, Angra 3 é uma obra que começou em 1984 e não tem previsão de término. Crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas na execução do projeto são investigados em uma operação que é um desdobramento da Lava Jato, e que já resultou na prisão de um ex-presidente de Eletronuclear.
[caption id="attachment_140655" align="alignnone" width="450"] Usina de Angra 3 - Foto: Divulgação[/caption]
Caso Luftala
Entre as muitas denúncias de corrupção, Paulo Maluf se notabilizou pelo caso Luftala. Dois anos antes de se tornar governador de São Paulo, em 1979, ele foi acusado de praticar ato de corrupção para beneficiar a Lutfala, companhia têxtil de sua mulher, Sylvia, que recebeu empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDE) com o objetivo de salvar a empresa da falência. As denúncias citavam, ainda, o então ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, que negou as irregularidades. Não houve punições.
[caption id="attachment_140656" align="alignnone" width="450"] Paulo Maluf - Foto: Reprodução/YouTube[/caption]
Paulipetro
Paulo Maluf também esteve envolvido em mais um escândalo de corrupção na época da ditadura militar. Enquanto era governador, criou a Paulipetro, empresa que seria especializada na perfuração de petróleo. Após perfurar nada menos do que 69 poços, foi constatado que não havia petróleo algum. No entanto, foram gastos R$ 4 bilhões nessa aventura.
Newton Cruz, Capemi e Dossiê Baumgarten
Alexandre von Baumgarten, um jornalista colaborador do Serviço Nacional de Informações (SNI), foi assassinato em 1982, depois de divulgar um dossiê, no qual acusava o general Newton Cruz de planejar sua morte. A eliminação de Baumgarten teria ligação com seu conhecimento a respeito de denúncias envolvendo Cruz e outros agentes do SNI no escândalo da Agropecuária Capemi (Caixa de Pecúlio dos Militares) e a exploração da madeira no futuro lago Tucuruí. Ao menos US$ 10 milhões teriam sido desviados para beneficiar o SNI. Cláudio Guerra, ex-delegado do Dops, disse, em 2012, que a ordem para matar o jornalista veio do próprio SNI.
[caption id="attachment_140657" align="alignnone" width="450"] General Newton Cruz - Foto: Reprodução/YouTube[/caption]
Coroa-Brastel
Delfim Netto, à época ministro do Planejamento, também foi acusado de corrupção, ao lado do então ministro da Fazenda, Ernane Galvêas, durante o governo do general Figueiredo. De acordo com a acusação apresentada pelo procurador-geral da República, José Paulo Sepúlveda Pertence, em 1985, ambos teriam desviado recursos públicos, por meio de um empréstimo da Caixa Econômica Federal, ao empresário Assis Paim, dono do grupo Coroa-Brastel, em 1981. Galvêas foi absolvido em 1994, e a acusação contra Delfim Netto não foi, sequer, examinada.