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Alexya Salvador é uma mulher transgênero, pastora da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), cuja sede em que atua fica no centro de São Paulo. Além disso, ela é também pré-candidata a deputada estadual pelo PSOL. É casada com Roberto, professor da rede pública estadual, e tem dois filhos adotivos, um deles o Gabriel, de 11 anos, que tem necessidades especiais e a outra é a Ana Maria, 11, transgênero como a mãe.
A sua vida, como ela mesma define, já é em si um ato político. A igreja onde é pastora é uma comunhão brasileira e internacional de comunidades cristãs da vertente protestante que aceita de forma irrestrita irmãos excluídos – todos os excluídos e não só LGBTs, como faz questão de deixar claro – entre eles lésbicas, gays, bisexuais, transsexuais e afins (LGBT), além, é claro, de seus familiares.
A sua candidatura, de acordo com ela, representa todas as travestis, transexuais e homens trans que já foram assassinados. Ela conversou com a Fórum sobre a sua trajetória de vida, a sua candidatura, as dificuldades que enfrentou – e enfrenta ainda – e, sobretudo, como consegue conciliar coisas aparentemente incompatíveis, como a devoção a Deus, a militância LGBT e, agora também, a política partidária.
[caption id="attachment_136888" align="alignnone" width="284"] Alexya e o marido Roberto. Foto: Facebook[/caption]
Fórum – O que representa a sua pré-candidatura, neste momento em que o Brasil e o mundo dão essa guinada conservadora?
Alexya Salvador – A minha pré-candidatura representa todas as travestis, transexuais e homens trans que já foram assassinados. Eu represento todas essas pessoas. A minha candidatura é por eles, porque se hoje tem alguém ligando para mim de uma revista querendo saber um pouco da minha vida, é porque essas pessoas deram a vida delas. E eu não posso esquecer dessas almas, dessas pessoas que nos precederam, como a Dandára. Homens trans que são violentados todos os dias no Brasil, e isso quase não é falado. Então, a minha candidatura é a representação dessas pessoas. O meu desejo é poder representar, porque se não tiver representantes transgêneros na política, nunca as nossas demandas serão atendidas de maneira completa e de maneira eficaz.
Fórum – E como você espera atuar neste sentido?
Alexya Salvador – Num esforço pela empregabilidade e saúde trans, com um olhar mais humano no processo de adoção. A revisão do cadastro nacional de adoção e também criar projetos para os jovens que não são adotados e que aos 18 anos são obrigados a deixar o abrigo. Além disso, é preciso melhorar esses abrigos, que não recebem a atenção devida do Estado.
Fórum – Mas e em outras áreas?
Alexya Salvador – Meu esposo é professor contratado. Entra ano e sai ano e ele fica de duzentena, que significa duzentos dias sem poder pegar aulas. É humilhante. O governo de São Paulo maltrata os professores, em todos os sentidos, principalmente os contratados. Eu quero atuar nisso, em melhorias para uma educação com qualidade, com professores bem remunerados, fim da divisão de classe entre os professores, pois os professores contratados recebem tratamento diferenciado, como por exemplo, não ter direito ao convênio de saúde, o IAMSPE. Além disso, a rede pública, assim como nos municípios, não oferece tratamento adequado para crianças especiais. Eu sou mãe do Gabriel, um menino com necessidades especiais. Sofri muito na rede municipal para encontrar tratamento de qualidade. Sou professora efetiva há dois anos e hoje tenho o convênio do Estado. Mas antes era professora contratada e não tinha acesso a esses serviços para o meu filho.
[caption id="attachment_136889" align="alignnone" width="317"] Alexya. Foto: Facebook[/caption]
Fórum – E como foi que você resolveu entrar para a política?
Alexya Salvador – A minha vida em si já é um ato político, desde muito sempre mas nessa configuração que a gente entende assim por política foi há quase dois anos, quando eu fui a um congresso em Brasília. Era um congresso LGBT que aconteceu na Câmara. O deputado Jean Wyllys falava que outros LGBTs deveriam estar ocupando aquelas cadeiras também para o enfrentamento das demandas da nossa comunidade. Naquele momento, assumidamente, ele era o único deputado gay LGBT da história. Eu voltei para casa e aquilo ficou na minha cabeça, porque me envolver de maneira metafórica mesmo, ou até de maneira mais abrangente nesse aspecto, eu nunca havia pensado, mas aquilo ficou martelando, martelando e eu falei: “ah, porque não, né?”, porque se nós não formos pra dentro desses lugares a gente sempre vai ficar por baixo, sem poder exigir os nossos direitos.
Fórum – O Jean Wyllys foi uma inspiração para você por ser o primeiro parlamentar homossexual assumido, mas eu acredito que há uma grande diferença, até na forma de proceder na política, entre ser homossexual e ser transgênero. Você deve sofrer um tantinho de preconceito a mais do que um homossexual, não?
Alexya Salvador – Um tantinho não, um tantão, né? (risos). A vivência de um homem gay ou de uma mulher lésbica hoje no Brasil ainda é muito doída, são lutas diárias, isso é fato. A vivências das pessoas trans, e quando eu digo pessoas trans eu estou dizendo travestis, transexuais e pessoas transgêneras, - eu me defino com uma mulher transgênera. Essas lutas são assim de um grau muito maior, porque a sociedade meio que aceitou o gay, mas as pessoas trans a sociedade ainda vê como o desnecessário. Elas acham que, ou você é doente mental ou, como eu ouvi de muitas pessoas que me cercavam quando eu fiz a minha transição que falavam assim: “mas você precisa se vestir de mulher? Precisa colocar silicone? Precisa alterar RG?”. Quando na verdade ele não entende que são coisas completamente diferentes.
Fórum – Inclusive, seu pai foi, num primeiro momento, uma das pessoas a dizer que você pode ser gay, mas não queria te ver vestido de mulher, né?
Alexya Salvador – Quando eu fui me assumir, aos 22 anos, eu já ia me assumir como uma pessoa transgênero, mas quando eu comecei a contar, eu vi que ele ficou muito nervoso e deu uma porrada na porta do quarto, ele se exaltou muito. E eu tive que pensar muito rápido naquele momento: “eu me assumir gay já é um começo”. Aos poucos, fui mostrando pra ele esse universo, que até então pra minha família, como pra grande maioria, é difícil, – eu nasci na década de 80 e o meu pai é da década de 50 – ia ser muito difícil pra ele lidar com essa realidade e naquele momento eu só me assumi gay: “vou comendo pelas beiradas e com o tempo eu vou mostrando para ele esse universo”. E eu penso que fiz bem. Os anos se passaram e até chegar aos 28 anos, quando eu fiz a transição, o meu pai já tinha um conteúdo melhor, já estava mais inserido dentro do universo LGBT. Não é que foi fácil.
Fórum – Ele foi inserido por você?
Alexya Salvador – Sim, por mim. O linguajar, as palavras, conviveu com LGBTs que iam na minha casa, isso ajudou. A minha mãe sempre me apoiou, desde o começo ela sabia que eu era uma mulher e ela falou “Olha eu tô com você e não abro mão disso”. Mas pro meu pai foi mais complicado, tanto que no dia que eu fui conversar, eu sai de casa e falei: “é hoje, vou enterrar o Alexander de vez na minha vida, não dá mais”. Meu pai tava na área de casa chupando uma laranja e quando me viu ele engasgou, porque eu tava de cabelão, de salto e ele quase teve um treco (risos). Daí ele ficou uma semana sem falar comigo e me procurou. Eu lembro que eu estava na minha casa pintando as unhas de vermelho quando ele entrou. Então ele falou para mim chorando: “Eu não sei lidar com isso, não sei como que é isso, mas eu te amo e não posso te virar as costas, é só você me dar um tempo”. Já se passaram quase oito anos da minha transição e só recentemente que o meu pai começou a me tratar completamente no feminino. Ele foi no tempo dele e eu soube esperar, mas de outras pessoas eu não abri mão, não esperei. E foi muito lindo porque o meu pai dá a vida dele por mim.
Fórum – Qual a diferença, a distância que tem entre perceber a homossexualidade e perceber que você é trans, uma mulher com corpo de homem?
Alexya Salvador – Olha, ainda criança na escola, eu apanhava praticamente toda semana. Isso pra não falar quase todos os dias.
Fórum – E você é uma mulher grande, né?
Alexya Salvador – Sou, eu sou uma mulherona, sempre fui a mais alta da turma, mas era a mais boba. Eu sou nascida e criada na área rural de Mairiporã da Periferia e não tinha referência de pessoas trans. Para você ter uma ideia, todas as cidades do entorno de Mairiporã têm pontos de prostituição com muitas trans e Mairiporã parece ser a única cidade que não tem isso, então eu cresci sem ver pessoas trans, sem ter referência. Uma situação bem diferente da minha filha, que eu busquei em Pernambuco, que é uma menina trans de 10 anos que agora tem 11. Na década de 80 não se falava nisso. Se falava de Roberta Close, mas eu nem imaginava quem era Roberta Close. Então, a figura mais próxima que eu tinha era a figura gay. Então eu cresci achando que era homossexual, mas eu tinha o desejo de brincar com as bonecas da minha irmã, eu tinha o desejo de ter o cabelo grande, de cuidar da casa, eu sempre fui afeminada, então na minha adolescência, no início da minha fase adulta, acreditava que eu era um gay.
Fórum – Você começou a sentir atração por homens desde quando?
Alexya Salvador – Sempre. Desde pequena. Eu sempre fui de igreja, eu com sete anos procurei a Igreja Católica e desde então eu cresço dentro da igreja, porque era o único lugar que não apanhava. Não apanhava fisicamente, porque depois, na minha adolescência, com a chegada da puberdade, os hormônios e aquela ebulição toda, eu vou sofrer um tipo de violência dentro da igreja que eu acho que foi a pior de todas, que foi a violência psicológica, a violência espiritual. Como eu tinha essa relação eu gostava muito de estar envolvida nas coisas da igreja, para mim Deus não me amava, Deus me abominava, Deus ia me mandar para o inferno.
[caption id="attachment_136890" align="alignnone" width="284"] Alexya. Foto: Facebook[/caption]
Fórum – Mas algum padre falou isso para você?
Alexya Salvador – Principalmente quando eu me confessava, quando vinham padres de fora, porque eu sempre procurava um padre novo para me confessar, para ver se ele tinha algo novo para me falar, porque os meus padres diziam: “Olha, você tem que sublimar isso, porque Deus não criou você assim. Então pensa, uma jovem do mato, uma caipirona que não tinha internet, não acessava as informações que temos hoje. Então o que eu vou fazer aos 19 anos? Virar seminarista. "Eu vou sublimar isso e vou virar padre". Então eu fui e fiquei por quase quatro anos no seminário. Eu terminei Filosofia na PUC Campinas, foi quando, já no primeiro ano de filosofia, voltando à noite de um evento na PUC, eu vi pela primeira vez um ponto de prostituição de travestis. Aí eu olhei e falei: “Eu sou isso”.
Fórum – E você teve relações com alguém dentro do seminário?
Alexya Salvador – Não. Tive oportunidades, tive insinuações, mas se eu falar pra você que eu vi alguma coisa dentro do seminário, eu vou estar mentindo. Eu até poderia aproveitar as várias entrevistas que eu dei e descer o sarrafo e colocar lenha na fogueira, mas eu não vou fazer isso. Não vi. Tive sim desejos por seminaristas, tive situações em que eu sei que se eu tivesse permitido teria sim acontecido, mas eu tinha sempre aquele medo de Deus, eu tinha pavor de Deus. Então eu segurei o máximo e quando eu vi que não ia conseguir mais, que eu ia pecar – abre aspas, né? – eu cheguei no meu bispo, que depois foi arcebispo de Campinas, que já faleceu e disse: “Eu quero ir embora”, e ele falou: “Jovem, mas você é o melhor seminarista que eu tenho, é dedicado”, e eu falei: “Eu vou viver a minha vida, que eu não quero ser uma desonra para igreja”. Ele deve ter entendido. Foi neste momento que eu voltei pra casa e tive a conversa com os meus pais. Eu não tive força para enfrentar o meu pai naquele momento, eu tive medo e tentei agir com astúcia e foi bom, porque eu consegui construir a minha história.
Fórum – E aí você chega a essa Igreja protestante, que é muito mais liberal.
Alexya Salvador – Não é que nós somos liberais. O nosso entendimento é que a igreja não existe para legislar sobre a vida de ninguém, seja sua vida íntima, sua vida sexual. A igreja não existe para isso. Ela existe para ser uma comunidade, para gerar vida comunitária com pessoas que têm o desejo de construir uma sociedade justa e igualitária. Por isso que eu digo que nós não temos doutrina. Não temos um conjunto de regras estabelecidas na lei por um líder para que as pessoas sigam aquilo e quem não segue está fora. Nós não estamos preocupados com isso. Nós estamos preocupados se o meu irmão tem o que comer na casa dele, se conseguiu pagar o aluguel, se conseguiu marcar aquela consulta médica. Se ele tá preso, queremos saber se alguém foi visitá-lo. Se ele tá doente, se tem alguém cuidando dele.
Fórum – Você deve ter muitos fiéis, irmãos, que são também transgêneros.
Alexya Salvador – Sim. E heterossexuais cisgêneros também. Temos também homem que gosta de mulher e mulher que gosta de homem. Nós não somos uma igreja exclusivamente para a população LGBT, nós somos a igreja de todos os excluídos.
Fórum – As igrejas normalmente são distantes da política, sobretudo da política de esquerda, salvo raríssimas exceções. Você é pastora da igreja dos excluídos e por outro lado você é militante e vai ser candidata pelo PSOL, que também é um partido que luta pelos excluídos. Qual outras relações entre essas duas entidades?
Alexya Salvador – A gente entende que não há outro caminho. Segundo a prática de Jesus, não existe outra forma de ser. É claro que as outras igrejas se distanciam neste sentido, porque acabam tendo uma prática mais elitista, mais conservadora, preconceituosa, reacionária e a gente vem na contramão disso. Você veja, eu sou a primeira pastora trans do Brasil. Hoje, graças a Deus, nós somos em três pastoras transgêneras. Aliás, deixa eu falar bonitinho. Nós somos três pastoras “T”. Uma se apresenta como travesti, que é lá de Teresina, a Maria Laura. Nós temos a pastora de Maringá, no Paraná, que se apresenta como transexual e eu, Alexya Salvador, em São Paulo, que se apresenta como pastora transgênera. Então são palavrinhas diferentes, respeitando a história das travestis que nos precederam, a grande luta daquelas mulheres, as que se entendem como transexual ou como transgênera. Então, a ICM, quando se fala do PSOL, a sua prática, é que eu te falo que esses ideais de que haja uma sociedade justa, em que o pobre seja ouvido e seja promovido, porque não adianta eu ir lá e dar uma cesta básica para ele hoje e matar a fome dele hoje. Eu tenho que ser aquela que vai gerar emprego, que vai fazer com que ele se mantenha de maneira justa e nós, na ICM, lutamos radicalmente por isso.
Fórum – A igreja apoia sua pré-candidatura?
Alexya Salvador – Apoia, a minha denominação no mundo inteiro já está sabendo e a nossa moderadora – nós somos a única denominação no mundo cristão liderada por uma mulher, que já está no segundo mandato – ela apoia, tá feliz, orgulhosa. E agora eu vou ser ordenada a primeira reverenda transgênera da América Latina.