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O editor da Fórum, Renato Rovai, entrevistou a jornalista Hildegard Angel, nesta terça-feira (15), para o programa Fórum Onze e Meia. Hilde é filha da estilista Zuzu Angel e irmã de Stuart Angel, ambos mortos pela ditadura na década de 70.
Nesta conversa ela fala sobre o recente documento da CIA, divulgado na semana passada, revelando que o então ditador Ernesto Geisel não só sabia como autorizou execuções durante o seu governo.
Em tom emocionado, Hilde afirma também que tanto o impeachment da Dilma, quanto a prisão do Lula, bem como todo o golpe que transcorre desde 2016 no Brasil, tem conexão direta com a ditadura militar. “Quando houve o mensalão, que eu chamo de mentirão, eu vi naquilo o propósito, o primeiro gesto de desqualificar aqueles homens que tinham vínculo com 68 com a militância contra os governos militares”, disse.
Leia e assista abaixo a entrevista na íntegra.
Renato Rovai – Eu tenho defendido a tese de que essas novas revelações sobre os assassinatos da ditadura não foram surpreendentes, que a imagem que eu tinha do Geisel já era essa que foi revelada, mas eu queria ouvir de você, que teve um envolvimento mais direto com tudo isso, o que você achou dessa desclassificação dos documentos e da história que foi revelada?
Hildegard Angel – Eu achei que demorou muito para o Brasil e a mídia saberem deste fato. Havia uma negação da mídia, muito induzida pelo Elio Gaspari, de reconhecer o Geisel como um ditador. Vamos dizer a verdade, se houve uma abertura, um ritual de passagem, foi no governo de outro tirano, que foi o Figueiredo, porque no Geisel, o ritual das mortes se manteve igual, não houve diferença. Eu tive a experiência familiar. O (Vladimir) Herzog foi morto também e tantos outros. A gente continuou sabendo de mortes, prisões e de torturas durante o governo Geisel. A diferença é que o Geisel, com aquele patriotismo dele, a política da soberania, ele dava uma impressão de maior competência, tudo isso blindava o Geisel. Mas ele foi tão tirano quanto os outros. Eles eram um colegiado de homens maus.
Renato Rovai – Você acha então que a Zuzu foi assassinada a mando do Geisel?
Hildegard Angel – É. Foi essa a declaração desse delegado, Cláudio Guerra, e que não me surpreendeu porque a gente sempre intuiu que fosse uma coisa desse porte. Fazer uma emboscada pra matar a Zuzu Angel era muito atrevimento, muita ousadia, porque ela estava mobilizando forças muito importantes, então teria que vir, realmente, lá do alto. Agora, é engraçado que depois do Costa e Silva, que era um militar mais bonachão, que gostava de jogar, recebia o Ibrahim Sued na casa dele, tinha um perfil carioca e, quando ele morreu, a esposa era uma mulher mais desfrutável, frequentava a noite, arrumou um namorado, fez plástica, gostava de mostrar que ela estava sem soutien, umas coisas que os militares não apreciavam. E ai, em contraponto, vieram o Médici e o Geisel pra impor essa sobriedade, essa moral que eles achavam que projetaria o respeito, a dignidade que o povo apreciava. Dona Scila Médici era considerada a primeira dama ideal porque ela não emitiu ruído. Nisso tudo a Dona Iolanda era bem mais simpática, porque era uma boemia e transgredia, se é que se possa chamar isso de simpatia. E o Geisel veio dentro dessa proposta de militares austeros e que, por trás daquela capa de austeridade, religião, bons pais de família, bons brasileiros, grandes patriotas, estava uma alma de homens perversos. Que queriam, de certa forma, se manter no poder e, pra justificar isso, precisavam ter antagonistas, mesmo que fossem antagonistas frágeis, jovens, que não tinham nenhuma estrutura grande de poder. Eles sabiam disso. Porque eles tinham uma estrutura também de terror, de torturas, de mortes, montada, cara e que eles precisavam utilizar.
Renato Rovai – E, com tudo isso sendo revelado, ficando bem claro que não teve “ditabranda” nenhuma. Que nós tivemos uma ditadura que, quando precisou foi sanguinária, como você assiste a defesa do retorno desses dias, a partir de um discurso articulado inclusive por um dos candidatos, que só não está em primeiro quando o Lula participa das pesquisas, mas quando o Lula entra ele aparece em primeiro, que é o Jair Bolsonaro?
Hildegard Angel – Eu acho que isto acontece, primeiro porque não houve uma revisão histórica correta desses momentos brasileiros. Segundo que isso não foi absorvido pela história do Brasil, não foi ministrado nas salas de aula. Quando é que esses episódios da história brasileira vão estar contados pela história brasileira? Que não seja a história da academia de graduação. Quando é que vai estar contado nos livros de sala de aula dos colégios, ensino fundamental? Quando é que as nossas crianças vão poder aprender a verdadeira história do Brasil? Elas ainda estão no Tiradentes, que é uma história que levou quase 200 anos para ser contada. Essa história tem que ser contada já pra nossa população ser formada e crescer consciente do que é uma ditadura. Enquanto ela não for contada, vai se contar a história que se quiser. Eu posso estar contando uma história da carochinha. É o meu sentimento, é a minha versão individual. Ela tem que ser educação, uma história oficial que não seja só de documentos, de comissões. Tem que se transformar numa história oficial do Ministério da Educação.
Renato Rovai – A partir dessas revelações você pretende tomar alguma atitude? Já conversou com os seus advogados? Ou pretende tomar uma atitude que não seja jurídica, mas do ponto de vista de tentar provocar alguma universidade pra fazer uma pesquisa em relação a isso, pra que essa história seja revelada de forma mais ampla?
Hildegard Angel – A minha mãe sempre foi muito criticada pelos grupos por agir individualmente. Ela não era admirada na época por pessoas que militavam, que sofreram os mesmos sofrimentos, porque achavam que ela agia individualmente. E ela agia individualmente e fez muito assim, porque ela achava que tinha que fazer. Então eu aprendi essa lição. Eu não vou agir individualmente, eu vou agir coletivamente. Eu estou esperando baixar um pouquinho essa água e vou procurar o movimento Tortura Nunca Mais, o advogados que me aconselharam em várias ocasiões. O Nilo Batista, que foi o advogado do Stuart, que defendeu o Stuart à revelia, como assistente do Dr. Fragoso, e ele ia aos tribunais com o Stuart ausente. O Nilmário Miranda eu vou procurar também, que foi o que defendeu o caso da mamãe na primeira comissão dos desaparecidos e o Pedro Dallari. Essas pessoas é que vão me orientar.
Renato Rovai – E nesse contexto todo de novas revelações a respeito do golpe militar, você consegue fazer algum tipo de paralelo daquela ditadura com o que está acontecendo hoje, que levou ao impeachment da Dilma e à prisão do Lula, ou você acha são dois momentos absolutamente distintos e que não tem nenhuma intersecção?
Hildegard Angel – Não, eu acho que as coisas têm vínculo e eu vejo isso com muita clareza. Quando houve o mensalão, que eu chamo de mentirão, eu vi naquilo o propósito, o primeiro gesto de desqualificar aqueles homens que tinham vínculo com 68, com a militância contra os governos militares. Desqualificar aquele sonho daquele grupo. Desqualificá-los como heróis, as suas torturas, seu movimento, seus anseios, seus propósitos e suas ideologias e sua presença na vida brasileira. E fizeram isso, conseguiram tirar deles a imagem de heróis e colocar a de corruptos. E ai poder desenvolver essa estratégia que culminou na Lava Jato, no impeachment de Dilma e agora nesse recrudescimento da direita e esse extremismo, porque o golpe, a ruptura democrática, constitucional, você não consegue controlar. Tolos e arrogantes os que pensam que podem controlar um processo desses. E hoje nós vemos ao que está levando. Ao fascismo, ao bolsonarismo, ao desconhecimento total dos fatos, a uma catástrofe do Brasil.
Renato Rovai – Você que vivenciou e teve que lutar contra aquela ditadura, e enfrentou na carne da sua família a perversidade, como você acha que o país, que essa juventude pode construir a saída pra esse novo golpe que a gente está vivendo hoje?
Hildegard Angel – Eu vejo com um certo pessimismo e muita tristeza, mas eu acredito em milagres, eu sou católica (risos). Eu tenho sempre a esperança, o brasileiro é um esperançoso. Eu quero que isso se reverta, mas é tão difícil. Quando eu era pequena diziam que o Brasil era o país do futuro e que a esperança é a última que morre e que tem luz no fim do túnel. Todos esses mitos se esvanecem agora com esse impeachment da Dilma e com esse golpe. É como se o mundo, como se o Brasil virasse pelo avesso. A entrega das nossas riquezas, quando nós descobrimos o petróleo, o Pré-Sal, uma riqueza incomensurável, ela é entregue ao estrangeiro. Agora que nós temos milhares de engenheiros desempregados, nós estamos importando engenheiros estrangeiros, dando licença pra milhares deles virem trabalhar no Brasil porque são as empresas estrangeiras que estão entrando aqui, porque seus países compraram as nossas riquezas. Nós, os brasileiros, vamos servir só pra subemprego deles. Foi isso que fizeram com o Brasil (emocionada) nesses dois anos. Acabaram com a nossa esperança.
Renato Rovai – É muito simbólico ouvir da sua voz esse tipo de reflexão. E ai, pra gente encerrar a conversa, que eu posso imaginar o quão dura é pra você, se é pra mim, que não tenho um milésimo das passagens de vida que você teve, como você percebe, com tudo isso acontecendo, com o país desmontando, a gente tendo uma sensação de que vai ser quase impossível sair desse atoleiro, o povo, resistindo a todas as análises políticas, a todos os estrategistas, a todos os intelectuais e dizendo: “Eu quero o Lula presidente”, concedendo 33% em pesquisas recentemente feitas depois de mais de 30 dias de prisão que o Lula teve que enfrentar.
Hildegard Angel – Mas esse povo é o povo que não tem voz. Não é o povo formador de opinião e está se manifestando de forma tão expressiva nas pesquisas. É o povo sem voz, o povo que está mudo, que receia falar porque se falar perde o emprego. É o povo que se omite, que não sai na rua, que sai só se for em multidão, mas não toma iniciativa. É a maioria silenciosa. E essa minoria, que não quer o Lula, faz muito barulho. E é essa minoria que tem o poder, os meios de comunicação, o mercado, as finanças, tem as artes, nós vemos os artistas populares se manifestando contra o Lula, não os mais refinados. E essa massa muda só se expressa no voto. E ela é uma massa intimidada, porque ela é historicamente reprimida. E historicamente derrotada, acostumada a levar no lombo, como disse aquela senadora, que tem que levar no lombo, né? Aquela senadora gaúcha. É uma massa domesticada. Ela só fala alto nas urnas.
Renato Rovai – Do ponto de vista do que aconteceu com as revelações do Geisel, há também uma clara percepção de que o Roberto Marinho sempre foi um cara muito influente nos processos de ditadura, principalmente nesta reta final de Geisel e Figueiredo, o protagonismo da Globo já era muito grande. Hoje, olhando isso em retrospectiva, você consegue dizer ou imaginar que o Roberto Marinho pudesse ter sabido do assassinato da Zuzu?
Hildegard Angel – Eu acho que não. Eu trabalhava no Globo. E eu me lembro que, quando eu trabalhava lá, o Rogério Marinho me chamou e falou: “Olha, Hilde, vou falar com o Armand Falcão. Ele vai descobrir onde está o seu irmão”. O Armando Falcão estava sempre pelos corredores.
Renato Rovai – Ele era ministro da Justiça na época, né?
Hildegard Angel – Mas antes de ser ministro da Justiça ele vivia pelos corredores, porque ele era funcionário do Roberto Marinho, advogado. Ele era móveis e utensílios lá na redação. Ai ele voltou e disse: “Olha, o Falcão disse que o seu irmão não foi preso, disse que não é nada disso”. Quer dizer, eles mesmos falavam qualquer coisa, entendeu? Eles mesmos também tinham núcleos, né? Núcleos de maldade. O Dr. Rogério me tratava como se eu fosse uma criança. Eu entrei muito jovem pro Globo: “Fique tranquila, seu irmão está muito bem. Deve estar escondido”.