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O professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC Giorgio Romano Schutte não acredita que o Brasil tenha uma retomada da indústria, do emprego e consequentemente, da economia sem uma discussão ampla de todos os setores da sociedade.
Mais ainda, está convencido que esta retomada não se dará sem a participação efetiva do Estado, com acesso ao crédito, aumento da massa salarial e o controle efetivo dos juros e do câmbio: “É preciso estabelecer pontes com setores que não são de esquerda, mas que querem apostar na indústria”, disse.
Nesta entrevista exclusiva à Fórum ele fala sobre a financeirização da economia brasileira a partir da crise de 2008, os impactos disso no processo de desindustrialização do país e na queda do nível de empregos.
Relembra também as – de acordo com ele – poucas mas eficientes medidas que resultaram na retomada do crescimento e na contenção da “marolinha” durante o governo Lula, a chegada da crise e a total estagnação de incentivo e desenvolvimento de Temer.
Fórum – O Brasil passa ou não por um processo de desindustrialização?
Giorgio Romano Schutte – O debate hoje se divide entre os que acreditam que não há problema em não ter uma indústria forte e há aqueles, mais ligados ao neo-desenvolvimentismo, que dizem que sem indústria não há uma base de desenvolvimento no país. Para uns tanto faz e para outros há diferença sim, pela dinâmica tecnológica, qualidade de trabalho. Outra discussão é quando isso começou. Eu acho que desindustrialização no Brasil começou, na verdade, a partir de 2010, com os desdobramentos da crise de 2008. Num primeiro momento tivemos a “marolinha” do Lula, mas em 2011, o Guido Mantega já falava do tsunami financeiro. Então a “marolinha” virou tsunami.
Fórum – Mas já havia algum indício do fenômeno antes disso?
Giorgio Romano Schutte – Algumas pessoas, como o Bresser Pereira, já falavam em desindustrialização durante o segundo governo Lula. Naquele momento, de um lado, houve crescimento da indústria. A indústria, nominalmente cresceu. A produção, emprego, exportação, isso aumentou. Criou emprego formal.
Fórum – Isso aconteceu em função das medidas do governo?
Giorgio Romano Schutte – Sim, isso foi basicamente aumento da massa salarial, o dinamismo do mercado interno e disponibilidade de crédito. Principalmente o aumento da massa salarial na base, a questão do salário mínimo. Mais ainda a partir de 2004, com aumentos reais acima da inflação, com geração de empregos. Tudo isto foi turbinado por acesso a crédito. As pessoas compravam com crédito. Então sim, tem a ver com políticas governamentais. Acontece que outros setores da economia, em particular a agroexportação, mineração e o setor de serviços cresceram mais que a indústria. Não é que a indústria ficou parada. Ela cresceu, só que os outros setores cresceram mais. Isto fez com que algumas pessoas dissessem: “Opa, temos ai a desindustrialização”. Mas não se pode falar em desindustrialização porque houve aumento de empregos, aumento de produção, aumento das exportações. Então, no máximo que se pode falar é que houve uma desindustrialização relativa. O peso da indústria diminuiu.
Fórum – Mas esse processo vem de antes ainda, não?
Giorgio Romano Schutte – É, o peso da indústria vem diminuindo desde 1980. Acontece que tivemos um crescimento da economia, nada espetacular, mas houve, durante o governo Lula, e teve também o aumento da indústria. Não com relação aos demais setores, mas o seu peso na economia continuou diminuindo.
Fórum – Em que medida esse peso da indústria diminuindo impacta no desemprego?
Giorgio Romano Schutte – Até aquele momento não, em 2010, não porque teve aumento. Diminuiu relativamente, mas aumentou. A indústria gerou empregos. Até 2010, não se pode falar em desindustrialização, porque houve aumento de emprego e até da manufatura. E tivemos saldos positivos no comércio das manufaturas em 2006 e 2007.
Fórum – E daí em diante o que mudou?
Giorgio Romano Schutte – A crise de 2008 fez com que se acentuasse a valorização do câmbio, com uma entrada massiva de capitais. Em 2010 e 2011, no começo do governo Dilma, ocorreu a entrada do capital financeiro, o que o Guido chamou de tsunami financeiro. Tínhamos juros altos e então as finanças do mundo entram no Brasil e provocam uma valorização da moeda, a procura pela moeda. Isso num contexto em que os chineses procuravam manter as suas exportações diante do mercado estagnado na Europa e nos EUA. Tivemos um momento de competitividade, com o Real valorizado e um rápido aumento no déficit da manufatura. A partir de 2010, isso começa a aumentar muito. O Brasil estava importando muita manufatura, o que desestimula os próprios investimentos. Já há um ritmo desfavorável no Brasil, porque a estrutura tributária conspira contra a indústria. Outros setores pagam muito menos, como o agronegócio, e você tem o problema do câmbio.
Fórum – E por que a indústria foi quem mais sofreu?
Giorgio Romano Schutte – Nunca houve aqui no Brasil um projeto coordenado, onde, não só se apoie a indústria com subsídios do BNDES, como também o aumento da massa salarial, concomitante ao dinamismo no mercado interno, ou seja, ajustar também os juros e o câmbio. Isso não foi feito e quando chega o impacto da crise, o Brasil está com uma indústria pouco preparada para esse desafio.
Fórum – E a indústria desaba.
Giorgio Romano Schutte – Isso. Com a propria crise econômica, que começa a aparecer, a indústria cai ainda mais. E o mundo, que está passando agora para a indústria 4.0, com fortes investimentos em novas tecnologias, robótica mais avançada, o que exige investimentos na indústria, o que fizeram muito pouco no Brasil.
Fórum – E o governo atual, reagiu de alguma forma a isso?
Giorgio Romano Schutte – O novo governo não vê isso, aparentemente, como um problema. Tanto é que desistiu dos apoios à indústria, como os créditos do BNDES, uma série de apoios que eram questionados, como os subsídios, mas que bem ou mal mantiveram certo investimento na indústria.
Fórum – A que você atribui esse comportamento do governo Temer? Estão apostando na desindustrialização mesmo, jogando com a financeirização da economia, qual é o objetivo?
Giorgio Romano Schutte – Bem, essa é uma boa pergunta. Primeiro, eles estão apostando numa maior internacionalização da economia, voltando à ideia da década de 90. Abre-se para as empresas multinacionais, facilita a entrada. No momento em que eles chegaram, o Trump ganhou as eleições nos EUA. Não há exatamente um ambiente favorável. Mas, de qualquer forma, as vendas de ativos criam um ambiente favorável para investimentos de empresas multinacionais. Estão apostando que eles vão vir, ai também com as novas tecnologias, que não serão desenvolvidas aqui. Esta é uma visão de curto prazo. Eles acham que o problema foi falta de confiança e a falta de confiança seria por causa do governo anterior, por conta da dívida, dos juros. E então, eles não conseguem atacar essas questões, porque a dívida pública continua aumentando, porque não tem crescimento. E aí, a nota de rating, o investment grade, continua baixa, porque a dívida pública continua alta. Com o Lula o Brasil aumentou a nota, com a Dilma diminuiu, mas com o Temer acabou caindo.
Fórum – Uma aposta errada...
Giorgio Romano Schutte – Sim. Os governos Lula e Dilma apostaram na necessidade de se investir na indústria local, pois um país como o Brasil precisa de estímulo por parte do governo. Através de conteúdo local obriga-se os setores, como o automobilístico, mas principalmente os setores de petróleo e gás, a comprarem a manufatura brasileira. Quando se abre mão disso, a aposta é que o próprio mercado vai, com a abertura e tudo, se resolver. E não tem mais prioridade. É um projeto de médio prazo muito difícil para o Brasil, ainda mais agora que teve um atraso muito grande, nestes anos em que o mundo está investindo em novas tecnologias e o Brasil não está participando. E o governo aposta nisso. Que as empresas multinacionais ganhem confiança no país e comecem a investir. Agora, eles estão parados em setores primários.
Fórum – Você acha isso factível, de alguma maneira?
Giorgio Romano Schutte – Não, teremos investimentos, mas que virão atrás de projetos lucrativos. Não há projeto de desenvolvimento no país neste momento. É muito a curto prazo. E a questão da indústria de fato, se não há um investimento do governo, um projeto que envolva o governo, a academia, os centros de pesquisa, compras governamentais, o conteúdo local, uma série de políticas que estavam sendo adotadas, não há desenvolvimento. Poderia ter sido melhor, mas isto estava sendo adotado e estava funcionando. O próprio BNDES, toda essa série de políticas está sendo desmontada, e sem isso é muito difícil que você tenha um projeto industrial tecnológico com uma base nacional.
Fórum – Voltamos a apostar, então, no fornecimento de commodities.
Giorgio Romano Schutte – É. Temos riquezas no Brasil que evidentemente o mundo está interessado, mas é um modelo excludente, muito em função, em parte das commodities, em parte de algumas coisas produzidas aqui, mas mais da montagem. As coisas de alto valor agregado se concentram nos países centrais. O Brasil, bem ou mal, tem uma classe média alta e tem um mercado de consumo que se pode atender com cadeias produtivas em outros países e alguma montagem aqui. O Brasil é um país grande, tem riquezas, tem toda uma base e tem esse mercado que interessa às multinacionais, é óbvio.
Fórum – E a consequências disso?
Giorgio Romano Schutte – A médio e longo prazo, este investimento em tecnologia que está sendo desmontado é desastroso. Os governos Lula e Dilma poderiam ter feito muito mais, mas isso é leite derramado. A resposta agora é que o que está acontecendo com o petróleo e gás, com a baixa do conteúdo local, com o fim de todos os incentivos para estimular os investimentos no Brasil.
Fórum – De 2016 para 2017, o Brasil teve redução de empregos na indústria e a produtividade não diminuiu, na verdade estagnou. A indústria continua produzindo mais com menos mão de obra?
Giorgio Romano Schutte – Depende dos setores. O setor automobilístico teve uma recuperação. Ele passou por um processo de desvalorização, mas com essa recuperação, teve um aumento da produção, mas não isso não gerou empregos. Nós tivemos uma queda de empregos forte no Brasil. Em tese, isso deve ter aumentado a produtividade. Ao menos um pouco, porque os trabalhadores que ficam trabalham mais, não porque tem maior produtividade. É preciso ver o que vai acontecer nos próximos anos. Se as indústrias vão utilizar novas tecnologias – não vão desenvolver aqui, isso é líquido e certo. Só há dois casos em que se chegou a ter tecnologia de frente, que foi na Petrobras e na Embraer. Fora disso, nenhum dos outros setores têm produção endógena. Então, essa é sempre uma fragilidade muito grande. Agora, eles podem utilizar os meios de produção mais avançados, que poupam emprego. Podem aumentar a indústria e exportar para a Argentina, Chile etc. só que com menos emprego. Depende da estratégia das empresas com as empresas globais. Se não tem estratégias fiscais do governo, o país depende da estratégia das empresas globais.
Fórum – Todos os estudiosos que a gente tem conversado parecem um tanto pessimistas e você me pareceu assim também. Não parece ver uma solução tão próxima.
Giorgio Romano Schutte – Bem, depende para quem. Os bancos estão lucrando muito (risos).
Fórum – Você vê alguma saída política para esta crise?
Giorgio Romano Schutte – É difícil, pois há uma situação mundial muito diferente agora. Uma concorrência muito forte, mercados muito fechados ou que estão se fechando de novo, então a situação global não é favorável, apesar da vantagem para o Temer com os preços das commodities que aumentaram de novo. Isso foi uma grande questão que salvou minimamente alguma coisa no governo. Teve também o aumento do preço do petróleo, que atraiu de volta os investimentos e, com isso, justificaram todo o desmonte. Houve essa procura dos investimentos em agronegócios, empresas internacionais interessadas, são setores que estão vendendo e estão vendendo muito. Há um setor da economia brasileira que vai se sair bem.
Fórum – Mas e os empregos?
Giorgio Romano Schutte – A questão do emprego é mais complicada, porque você precisa, a médio e longo prazo, de apostar numa capacidade tecnológica endógena. Isso é um processo muito difícil, demorado. Não se resolve a curto prazo. Projeto para gerar empregos na construção etc., isto só se consegue com políticas de apoio de crédito governamental. Mas o Brasil é grande, tem muitas carências, tem muitas coisas pra fazer e gerar esse tipo de emprego. Agora, na questão da indústria, precisa de um projeto que junte todos os vários pontos, crédito, massa salarial, conteúdo local, compras governamentais, isso tudo foi feito, mas tem que combinar com juros, câmbio. Tudo tem que estar em função desta prioridade e isso significa aumentar o nível de controle sobre a economia, aumentar o controle sobre os fluxos financeiros.
Fórum – Mas com esse governo?
Giorgio Romano Schutte – Não. Mas se um candidato liberal, por exemplo, ganhar as eleições, é óbvio que vai ter uma série de reformas ainda mais drásticas, vai ter uma parcela do capital, o que pode gerar empregos, mas com um modelo muito concentrador de renda e pouco desenvolvimento tecnológico.
Fórum – E por outro lado, uma saída mais descentralizadora, com um governo mais à esquerda, qual a perspectiva de retomada que você vê?
Giorgio Romano Schutte – Tem que ter um projeto industrial e tecnológico. Tem que partir das riquezas que o Brasil tem. A partir das matérias-primas pode se criar as cadeias produtivas próprias. Mas, como eu falei, tem que ser um projeto integrado que exige um controle muito maior da economia. O problema será se o Brasil terá força, tanto nacional quanto internacional pra impor isso. Falta também uma discussão na sociedade sobre isso. Tudo bem, a solução na política, mas com muito mais discussão. Hoje, não há mais nenhuma relação, nenhuma comunicação, nenhum diálogo entre esquerda e setor produtivo. Nenhum empresário procura o Lula já faz muito tempo. Ou seja, também não vai criar do nada. O desmonte que eles estão fazendo, na Petrobras, no BNDES, vem numa velocidade muito rápida. É preciso retomar e ir muito além da questão política. É preciso estabelecer pontes com setores que não são de esquerda, mas que querem apostar na indústria. Esses setores existem, mas estão completamente do outro lado pela questão política. A política, neste caso, atrapalhou muito. Deveria ser criado um espaço de discussão, de elaboração, de propostas que não dependem desse acirramento da questão política. É preciso uma discussão de que tipo de caminho o Brasil quer.