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Um clichê é sempre repetido quando se fala em Dona Ivone Lara. Ela é a primeira mulher a ser da ala de compositores de uma grande escola de samba do Rio de Janeiro, a Império Serrano. O fato aconteceu em 1965, com o lindo samba “Os cinco bailes da história do Rio”. De lá pra cá, no entanto, pouco ou quase nada mudou.
O ambiente das escolas de samba, particularmente das suas alas de compositores, continua a ser amplamente dominado mesmo pelos varões. Dona Ivone Lara precisou ter sido genial para furar este cerco. Ela é uma compositora maravilhosa em qualquer contexto e entre qualquer gênero. Os seus sambas são lindos, do primeiro time, comparáveis aos maiores e nunca houve a menor indulgência com relação a ela pelo fato de ser mulher.
Muito ao contrário, Dona Ivone só chegou lá porque seus sambas estão no mesmo nível de Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Cartola e qualquer um desses grandes sambistas. Quem duvidar que ouça com atenção seus discos, as regravações de suas canções, enfim, tudo o que produziu.
E, o que é pior, produziu livremente já bem tarde. Era enfermeira e se aposentou com 56 anos, quando, finamente, passou a fazer o que mais amava, ou seja, alguns dos sambas mais lindos da nossa história.
Foi gravada por uma infinidade de intérpretes, muitos deles que saltavam para fora da bolha do samba: Clara Nunes, Roberto Ribeiro, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paula Toller, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Mariene de Castro, Roberta Sá, Marisa Monte e Dorina.
Teve alguns sucessos inesquecíveis que marcaram definitivamente as últimas décadas, como “Sonho Meu”, “Alguém me Avisou”, o emblemático “Sorriso Negro” entre tantos outros. A versão de “Sonho Meu” no disco “Álibi”, de Maria Bethânia, de 1978, com a participação de Gal Costa, foi um sucesso enorme que iluminou o Brasil.
Havia naquele samba lindo e naquela versão a magia inesperada do encontro de gerações e de localidades. A carioca autora e as duas baianas intérpretes se percebiam e se reencontravam na sua origem, na mesma matiz afrodescendente espalhada ao longo do litoral brasileiro.
Além disso, talvez involuntariamente, o samba serviu de hino para a campanha da anistia, que viria a explodir no ano seguinte, com o objetivo de trazer de volta ou tirar do cárcere inúmeros presos políticos da ditadura militar:
Sonho meu, sonho meu
Vai buscar quem mora longe, sonho meu
Sonho meu, sonho meu
Vai buscar quem mora longe, sonho meu
Vai mostrar esta saudade, sonho meu
Com a sua liberdade, sonho meu
No meu céu a estrela guia se perdeu
E a madrugada fria só me traz melancolia
Sonho meu
Mas Dona Ivone, como todo grande artista, foi mais longe. Mestre em sinuosas melodias e letras certeiras, compôs sambas que, apesar de não terem tido a mesma explosão de sucesso, são exemplos de maestria na forma e conteúdo, perfeição de criação, enfim, genialidade sem fim.
Um deles é o lindo samba “Minha Verdade”, uma especie de epitáfio antecipado de alguém que, mesmo tardiamente, se entregou de corpo e alma a sua paixão e nos deixou uma das maiores obras da nossa canção popular. E a nós, so resta agradecer.
Eu tenho a minha verdade
Fruto de tanta maldade que já conheci
Me deixa caminhar a minha vida
Livremente
O que desejo é pouco
Pois não duro eternamente
Nada poderá me afastar do que eu sou
Amor, é o meu ambiente
Nada poderá me afastar do que eu sou
Me deixa, por favor
Do bom samba sou escravo
Seu fascínio me apertou
Traçou-me este destino
Meu sonho menino se concretizou
Deixe-me agora sonhar
E seguir sem pensar numa desilusão
Que o amor simplesmente
Se faça presente no meu coração