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“O Brasil não é para principiantes”, afirmou Tom Jobim com sua impiedosa poesia.
Entender este país exige uma imensa capacidade de imaginação sociológica. O Brasil de hoje conserva suas marcas históricas, a sociogênese de um passado revivido dia após dia na prepotência de suas elites, na persistência de suas estruturas escravocratas e em um sistemático desprezo pela democracia e pelos direitos de quase todos seus habitantes, transformados em estrangeiros dentro de uma nação sem pátria.
A história do Brasil foi moldada a golpes e ornamentada por narrativas indulgentes que pretenderam explicar o inexplicável. Em suma, embora tudo funcione mal, Deus e a alegria são brasileiros. O que mais se pode pedir?
Um país cuja independência foi proclamada por um príncipe, filho do rei do Portugal, que se consagrou imperador “constitucional” e defensor perpétuo do país. Uma nação independente que nasceu como império. Um império que permanece até hoje governado por seus donos.
Assim, a democracia foi uma excepcionalidade na história brasileira. Na falta de uma democracia política e social, o Brasil inventou a “democracia racial”, uma ficção doutrinária que poderia ter servido para construir o imaginário de uma sociedade igualitária, mas que se transformou no mito que esconde um racismo institucional que transforma milhões de seres humanos em sujeitos do desprezo e da exclusão. Na segunda nação com maior população negra do planeta, a história é escrita pelos brancos, o poder e a riqueza são acumulados pelos brancos, as oportunidades são confiscadas sempre pelos brancos. Os brancos, esses que vivem indiferentes diante da violência e da segregação dos cidadãos e cidadãs silenciados, invisibilizados, abandonados: pobres, negros e negras, trabalhadores rurais, indígenas, estupradas, seres humanos sem teto, sem terra, sem nome, sem direitos.
Brasil, um país continental, cheio de golpes. E de mentiras. Quando o regime militar derrubou o presidente democrático João Goulart, em 1964, prometeu restabelecer a ordem institucional em apenas um dia. Permaneceu no poder por 21 anos. O primeiro editorial do jornal O Globo, depois do golpe, sentenciava: “Ressurge a Democracia”.
E a democracia realmente ressurgiu, mas somente duas décadas mais tarde, sustentada por uma lei do esquecimento e da impunidade para os crimes militares. Ninguém seria julgado. Ninguém seria condenado. O poder foi delegado a um presidente eleito de forma indireta, sem o voto popular, que morreu antes de assumir o cargo, transferindo assim o mandato para um cacique inexpressivo e cinza, com aspirações de poeta medíocre e herdeiro feudal de uma das regiões mais miseráveis do país. A democracia quis ressurgir, mas não conseguiu.
Somente em 1989 seriam realizadas as primeiras eleições presidenciais desde 1960. Durante quase 30 anos, o Brasil conseguiu viver à margem da mais diminuta e imperceptível democracia representativa. Suas elites, entretanto, explicavam que aquele período de exceção ditatorial tinha constituído um verdadeiro “milagre”, e assim começou a ser chamado o particular processo pelo qual uma nação que chegou a crescer mais de 30% em apenas um ano, pôde se transformar ao mesmo tempo em uma das sociedades mais injustas e desiguais do planeta.
A ruptura
A história brasileira dos anos 90 é mais ou menos conhecida. Fernando Collor derrotou Lula com o apoio solidário da Rede Globo. Collor foi destituído e Itamar Franco assumiu a presidência. Não fez quase nada, embora fosse bonachão e tivesse o hábito de ser fotografado junto a moças sem calcinha, o que fez muitas pessoas pensarem que se tratava de um bom presidente. Itamar foi sucedido pelo príncipe dos sociólogos, Fernando Henrique Cardoso, que também derrotou Lula (com o apoio solidário da Rede Globo) e exigiu que quem conhecia seu passado, esquecesse tudo o que ele havia escrito. Em 1998, Lula voltou a ser derrotado por Fernando Henrique e a Rede Globo. O governo neoliberal do FHC, além de avançar em um amplo programa de privatizações, nunca reverteu e, em alguns casos, piorou as já deterioradas condições de vida dos mais pobres. Durante seus dois mandatos, a pobreza cresceu ou se manteve estável, alcançando, em 2002, 31,8% da população. Nesse ano, Lula finalmente ganharia as eleições presidenciais.
O fim do governo Cardoso significou a deterioração de um modelo de dominação que havia imperado desde a transição democrática. Apesar da crise do regime, as elites brasileiras confiavam que Lula não significaria uma ameaça a seus interesses corruptos e mesquinhos. Eles tinham suas razões para isso. O ex-líder metalúrgico escrevera uma carta ao povo brasileiro na qual prometia não ameaçar a riqueza e as propriedades dos mais ricos, mas desenvolver um programa de inclusão social que seria benéfico para o país. Não sabemos se acreditaram nele porque não tinham outra opção ou porque tinham a certeza de que, finalmente, haviam conseguido derrotá-lo. O que sabemos é que o ex-líder metalúrgico não mentiu e desenvolveu um inédito programa de reformas sociais cujos resultados foram excepcionais.
A pobreza diminuiu significativamente, sendo reduzida em 12 anos mais de 73%. A chamada pobreza crônica passou de quase 10% para 1%. Todos os setores sociais aumentaram seus níveis de renda. Os mais ricos, por exemplo, 23%. Mas, os mais pobres, 84%. O Brasil deixou de ocupar o humilhante mapa da fome da FAO, ampliando oportunidades e condições de bem-estar até então inimagináveis entre os setores mais pobres do país.
Mas os grandes indicadores sociais, educacionais e econômicos e, definitivamente, o excelente desempenho de seu governo, não foi o que deu a Lula um imenso reconhecimento e aprovação. O que o transformou em um verdadeiro mito, em uma personalidade de culto e admiração por parte dos setores populares, foi o caráter fundacional do seu mandato. Embora os pobres não codifiquem a sociologia ou a economia com os códigos teóricos criptografados dos intelectuais, nem por isso são menos sutis e perspicazes na hora de compreender sua própria realidade social.
Os pobres sabem, por exemplo, que a renda tem a ver com suas capacidades e oportunidades de bem-estar. Assim, operacionalizam essa evidência em indicadores muito concretos, como por exemplo, ter ou não acesso a maiores e melhores níveis educacionais; ter possibilidades de acesso ao crédito que permite comprar uma casa própria ou alguns bens de consumo básicos; ter energia elétrica, esgotos, água potável e, quando exageram em suas aspirações de bem-estar, poder viajar de avião para visitar seus parentes e amigos.
Tudo isso, que constitui uma lista de direitos e oportunidades básicas em qualquer república moderna, nunca havia estado ao alcance de milhões de brasileiros e brasileiras. O governo de Lula, e posteriormente o da Dilma, ofereceu, pela primeira vez, a oportunidade efetiva de se sentirem cidadãos e cidadãs a um imenso contingente de pessoas que tinham sido desprezadas, descartadas e humilhadas pelas elites, que fingiam desconhecer sua existência como sujeitos de direitos ou como simples seres humanos com necessidades elementares nunca satisfeitas.
Lula veio para reparar essa injustiça histórica. E o fez com uma enorme capacidade de gestão e exercendo uma forte liderança política, dentro e fora do país.
A avassaladora força de Lula pegou de surpresa algumas elites indolentes e ignorantes que supunham que um operário metalúrgico sem instrução universitária fracassaria em sua aspiração de dirigir os destinos da décima potência econômica do planeta.
Em uma década, Lula e Dilma reduziram em 53% o déficit de acesso à moradia digna. Construíram mais de 1 milhão e 700 mil casas populares, universalizaram o acesso à energia elétrica (em um país com uma imensa desigualdade energética), aumentaram significativamente a porcentagem de domicílios com acesso à água, duplicaram a matrícula universitária, construíram mais universidades e escolas técnicas que em toda a história do país até 2002. Todas essas políticas foram resultado de colocar os pobres no centro do orçamento nacional, beneficiando especialmente à população rural, as mulheres, os jovens, as comunidades indígenas e a população negra.
Se quiséssemos entender o Brasil com olhos argentinos, embora com enormes diferenças e especificidades históricas, deveríamos pensar que Lula exerce um papel muito mais próximo ao que Perón exerceu desde 1946, que ao de Néstor Kirchner em 2003, diante da crise de 2001. O presidente Kirchner teve um papel excepcional em fundar as bases de uma república construída sobre os pilares da igualdade, dos direitos humanos e da justiça social. E o fez com uma grande capacidade de gestão, governando um país em ruínas, mas tendo como referência um imaginário e uma história que pretendia ser recuperada ou refundada.
Lula não. Lula é o fundador. O grande arquiteto democrático de um Brasil que nunca existiu.
Na Argentina, o poderoso e contundente lema “a pátria é o outro” é a emotiva síntese de uma década de realizações que conquistamos coletivamente. Uma síntese que adquire sentido e referencialidade em um passado comum e se encarna de maneira viva na necessidade de construir um novo presente. É o passado que se projeta e se espelha em nossos grandes líderes democráticos históricos (Yrigoyen, Perón, Evita, Cámpora, Alfonsín), assim como nas vítimas da ditadura e em nossas heroicas mães e avós. É o futuro possível, diante da existência de um passado real.
Mais tarde
O Brasil não teve esse passado. Nem nenhum outro comparável. Meio século mais tarde do que a Argentina, o Brasil cumpriu o mandato que muitas vezes coube aos governos populares na América Latina: ser as administrações que instalam, constroem e defendem uma ordem republicana, modernizadora e democrática, frente à barbárie predatória imposta pelas elites do atraso que sempre parecem ter saudades da Idade Média.
Lula funda o Brasil republicano. É o líder que não está disposto a aceitar que não haja espaço para todos e todas em um país de iguais. E aquele que, sem disfarces nem remorsos hipócritas, não tem medo de dizer que deseja que todos vivam melhor, que os pobres possam comer bem, viver bem, ter seus filhos nas universidades, ser proprietários das casas em que vivem. Lula rejeita a sempre tentadora e desfocada crítica pequeno burguesa aos bens de consumo, porque sabe que deles depende a possibilidade de fazer da vida digna uma oportunidade efetiva e não uma falsa promessa.
Por que o juiz Mouro prende Lula sem outra prova além de sua própria convicção? Porque foi a estratégia que o poder financeiro (improdutivo e predatório), o grande monopólio da comunicação que é a Rede Globo, e os setores políticos neoliberais e conservadores encontraram para acabar com o que acreditam ser um antecedente inaceitável para esse Brasil egoísta e mesquinho, cujos privilégios sempre preservaram. Não aceitam que Lula volte para o poder. Acreditaram que o golpe contra Dilma Rousseff o afundaria. Erraram. Agora acreditam que, prendendo-o, poderão silenciá-lo. Também estão enganados.
Querem acabar com esse metalúrgico teimoso e persistente que parece não estar disposto a se render jamais e nunca entregar as armas da dignidade, da confiança na política e da certeza no valor das mobilizações populares. Mas também querem acabar com todos os Lulas que estão por vir. Querem acabar com aquilo que consideram um vírus fatal contra seus privilégios e sua impunidade corrupta: a possibilidade de que muitos e muitas possam vir a pensar que, se uma vez um metalúrgico sem escola, nordestino e pobre, foi capaz de governar o país, outros e outras como ele poderão fazê-lo.
Estão prendendo Lula, prendendo uma ideia. Aspiram prender futuro. Não vão conseguir. Não haverá espaço nas prisões para essa multidão de homens e mulheres livres, que continuarão lutando pela construção de um futuro que pertence a eles e que ninguém poderá roubar.