Fato pouquíssimo notado no Brasil, foi divulgada em dezembro do ano passado a Estratégia de Segurança Nacional (NSS), do governo dos EUA. Documento publicado a cada quatro anos desde o governo Reagan, a NSS define, em linhas gerais, as prioridades da política de defesa nacional americana e segue como informe do executivo ao congresso americano para posterior orientação sobre os caminhos a serem trilhados na área de segurança nacional.
A versão de 2017 da NSS inaugura novas prioridades e traz novidades. Além da mudança de estilo, há uma mudança de conteúdo considerável em relação aos documentos publicados em 2010 e 2015, ainda no governo de Barack Obama. Em relação ao “hemisfério ocidental”, na NSS da gestão Trump, o combate à corrupção na América Latina e à “Ameaça Chinesa” ao livre mercado parecem ter ocupado o lugar da tradicional defesa dos direitos humanos, democracia e meio-ambiente enquanto justificativa ideológica para intervenção nos países de nossa região. Sinal da mudança dos tempos: enquanto em 2010 os EUA saudavam a ascensão do Brasil no cenário internacional, agora comemoram os avanços do sistema judiciário.
O destaque dado ao “combate à corrupção” chama atenção por ser o NSS genérico o suficiente para guiar um conjunto numeroso de instituições dedicadas à tarefa de defesa dos interesses dos EUA ao redor do mundo. Para termos ideia da capacidade e operação de nossos vizinhos ao norte, só na chamada Comunidade de Inteligência existem hoje dezesseis agências do governo com razoável independência entre si. E mais. Segundo o Washington Post2, em reportagem de 2010, existiam apenas no EUA, 1271 organizações governamentais, 1931 empresa privadas e 854 mil pessoas envolvidas em atividade contínua de inteligência, sem contar com as forças armadas. Esses números também não contabilizam as instituições que seguem orientação da política de segurança nacional dos EUA sem executar tarefas específicas de espionagem e inteligência, como as milhares de organizações não governamentais vinculadas aos interesses americanos via financiamento de suas empresas (e fundações de empresas), além do já famoso revezamento de dirigentes dessas ONGs em cargos no “terceiro setor” e no governo, inclusive na CIA, através do mecanismo de “revolving doors”3
A política de segurança nacional dos EUA para a América Latina foi explicada com todas as letras no dia 02 de fevereiro de 2018 pelo secretário de estado Rex Tillerson em discurso proferido em visita à sua Alma Mater, a Universidade do Texas em Austin. Às vésperas de uma viagem a 5 países latino-americanos, Tillerson usou e abusou da retórica de um verdadeiro combatente da guerra fria para falar dos vários inimigos dos americanos.
Em sintonia com a documento e dezembro, o discurso do ex-CEO da petroleira Exxon Mobile aumentou em vários decibéis o tom em relação à presença chinesa (e russa) na América Latina, o que levou a protestos imediatos do Ministério de Relações Exteriores Chinês. Entretanto, o que chamou atenção em sua apresentação foi dessa vez o destaque dado a dois aspectos aparentemente não relacionados: mais uma vez o papel dos EUA no combate à corrupção na América Latina e a importância dos recursos energéticos em nossa região.
Parecem claras as prioridades do Tio Sam na região. A palavra corrupção é citada 16 vezes, perdendo apenas para “energia” (22 vezes), à frente da boa e velha “democracia” (7 menções) e “pobreza” (apenas 2 vezes). Nas palavras de Tillerson, “nós temos uma série de iniciativas e de programas de financiamento trabalhando diretamente com países individuais – Os EUA diretamente, mas também com a ONU e outras organizações internacionais para, primeiro e mais importante, fortalecer os sistemas judiciários”4. E emenda: “Avanços recentes no combate à corrupção na Guatemala, Peru, República Dominicana e Brasil ressaltam a importância de seu trato direto”.5
De fato, Tillerson, parece estar certo. Os programas de cooperação institucional entre os EUA e o aparato judiciário na região parecem ter dado os frutos esperados pelos EUA. Hoje temos nove ex-presidentes (ou vice-presidentes) presos ou condenados por corrupção e o que chama a atenção é que a sua quase totalidade se constitui de líderes políticos não alinhados aos interesses americanos na América Latina. Não à toa, a 8ª. cúpula das américas de Lima terá como tema a “governança democrática frente a corrupção”.
Se já não fosse suficientemente suspeito que a política de defesa nacional de uma superpotência tratasse do fortalecimento do Judiciário como instrumento de saneamento moral de nações vizinhas, os rasgados elogios de Tillerson ao mandatário argentino Maurício Macri confirmam, que, como no trato dos direitos humanos, o governo americano parecer se cego aos abusos dos aliados. Macri é alvo de dezenas de processos por contrabando, lavagem de dinheiro, tráfico de influência e evasão fiscal.Trump e seus assessores definitivamente não são mestres na arte de embrulhar interesses particulares sob a reluzente forma de valores universais, mas sua rude retórica nos dá uma rara oportunidade de leitura quase literal das intenções – nada nobres- do Império. Nós, latino-americanos, que sabemos que o complexo militar-empresarial americano historicamente patrocinou alguns dos governos mais corruptos, violentos e antidemocráticos da histórica mundial em suas cruzadas para conquistar e manter mercados, talvez tenhamos percebido tarde demais que o jogo só mudou de arena, mas ainda é o mesmo.
1 Ph.D em economia New School for Social Resaerch. Programa de Pós-Graduação em Economia/UFPA. Brics Center, University of International Business and Economics, Pequim
4 “we have a number of initiatives and funding programs working directly with individual countries – the U.S. directly but also using other UN and other international organizations to, first and foremost, strengthen the judicial systems”
“Recent steps taken against corruption in Guatemala, Peru, the Dominican Republic, and Brazil underscore the importance of directly addressing it”