Escrito en
POLÍTICA
el
Em entrevista à Fórum, o advogado criminalista Fernando Hideo detalhou as inconsistências da denúncia que Janot ofereceu ao STF contra Dilma, Lula e outros petistas e escancarou o caráter político da peça, apresentada apenas um dia depois de o procurador-geral ter sido colocado em xeque com novas gravações de delatores da JBS. Leia
Por Ivan Longo
Bombardeado de críticas e centro do noticiário desde a noite desta segunda-feira (4), após convocar uma coletiva “surpresa” para anunciar uma revisão da delação da JBS, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, resolveu, apenas 24 horas depois, denunciar ao Supremo Tribunal Federal o ex-presidente Lula e a ex-presidenta Dilma Rousseff por organização criminosa. Uma boa jogada para quem teve seus erros expostos e está em descrédito.
Além de Lula e Dilma, foram denunciados pelo PGR os ex-ministros da Fazenda Guido Mantega e Antonio Palocci, além da senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), o ex-ministro Paulo Bernardo, marido da parlamentar, e os ex-tesoureiros do PT João Vaccari e Edinho Silva.
Para Janot, os denunciados teriam formado uma quadrilha desde 2002, quando Lula assumiu a presidência da República, e atuado até 2016, quando Dilma sofreu o processo de impeachment, desviando dinheiro da Petrobras. O resumo da denúncia é que o PT, basicamente, assumiu o poder para assaltar o país.
“Pelo menos desde meados de 2002 até 12 de maio de 2016 , os denunciados, integraram e estruturaram uma organização criminosa com atuação durante o período em que Lula e Dilma Rousseff sucessivamente titularizaram a Presidência da República para cometimento de uma miríade [grande número] de delitos, em especial contra a administração pública em geral”, sustentou o procurador em sua denúncia.
Acontece que em 2002, quando a organização criminosa supostamente foi formada, esse crime não existia. É o que aponta o advogado criminalista e professor de Direito Penal Fernando Hideo. "Até 2013, agosto de 2013, quando foi promulgada a Lei 12850, que é a lei das organizações criminosas, não existia um crime de pertinência a uma organização criminosa, de integrar uma organização criminosa. Não existia esse crime. Ele foi criado pela lei em 2013. O que acontece: a lei penal não pode retroagir para punir uma conduta que já aconteceu. Esse é o princípio básico. Você não pode punir isso para trás, só para frente. O princípio que rege a lei penal é esse", pontuou.
Em entrevista à Fórum, Hideo destrinchou a denúncia de Janot e mostrou como ela já começa inconsistente por considerar a prática de um crime que sequer existia quando começou a ser praticado. Mais do que isso, o advogado apontou como a peça não passa de um "copia e cola" de outros processos da Lava Jato e que não apresenta nenhum fato novo. Baseada, mais uma vez, apenas em delações, a denúncia ser apresentada neste momento escancara até mesmo um "mal acabamento" de um texto feito às pressas e que revela estar se aproveitando e um "timing", com uma motivação claramente política.
"Pela forma da denúncia, pelo contexto político que isso está sendo lançado, é possível a gente inferir que teve motivações extra-jurídicas, motivações políticas para a elaboração dessa denúncia. Não tem nenhum fato novo, não tem nenhuma base concreta, a denúncia se mostra mal acabada. A gente pode afirmar que o tempo dessa denúncia foi estrategicamente pensado como tem acontecido em inúmeros processos penais", explicou o advogado.
Para Hideo, o propósito da denúncia de Janot é muito específico: criminalizar o PT.
Confira a íntegra da entrevista.
Fórum - Fernando, a denúncia, mais uma vez, se baseia em uma série de delações de outros processos da operação Lava Jato e os denunciados, por sua vez, falam que a peça não tem fundamentos e que não apresenta provas. Qual a sua avaliação?
Fernando Hideo - Acho também que essa denúncia é baseada somente em delação. Ela vai fazendo menção à notas de rodapé, é sempre "conforme o depoimento, a colaboração premiada" de um, de outro, enfim.
Mas, antes, a gente tem que dar um outro passo para compreender qual o grande absurdo dessa denúncia. Na minha concepção, pelo o que eu li, é o seguinte: até 2013, agosto de 2013, quando foi promulgada a Lei 12850, que é a lei das organizações criminosas, não existia um crime de pertinência a uma organização criminosa, de integrar uma organização criminosa. Não existia esse crime. Ele foi criado pela lei em 2013. O que acontece: a lei penal não pode retroagir para punir uma conduta que já aconteceu. Esse é o princípio básico. Você não pode punir isso para trás, só para frente. O princípio que rege a lei penal é esse. Por exemplo: se o STF decide que a maconha não está mais na lista de drogas, o que acontece com o condenado por maconha lá atrás?
O que eles alegam é uma coisa meio técnica mas é super importante: o Supremo Tribunal Federal tem uma súmula, a súmula 711, que diz assim: a lei penal mais grave, ela se aplica ao crime continuado ou ao crime permanente, se essa vigência for anterior. O MPF, na denúncia, amplia esse entendimento. Ele vai lá em 2002 e fala que tem uma organização criminosa que durou até 2016 quando a Dilma foi tirada do poder. Ou seja, 14 anos de um crime permanente. Acontece que em 2002 não existia o crime de organização criminosa. E aí, o pior de tudo não é só ele considerar o tempo da organização criminosa, é que ele considera que o Lula é o chefe, com uma pena até maior. Acontece que o Lula saiu da presidência em 2010, e até 2010 não existia esse crime. A organização criminosa precisa de quatro ou mais pessoas que estejam ali numa estrutura organizada, com tarefas divididas, com o objetivo de cometer crimes. A única coisa relevante, penalmente relevante, porém, é o que aconteceu de 2013 em diante. Não dá para falar que o Lula era o líder de 2013 para frente. Não tem o menor sentido. Ele diz que o Lula continuava influenciando no governo da Dilma. É até uma piada Tudo bem, em 2002 ele era presidente, mas o que importa, a título do direito penal, é que essa lei foi criada em 2013. Então, os únicos fatos que poderiam ser apurados são de 2013 para cá.
Essa denúncia, na verdade, é um "copia e cola". Nos processos da Lava Jato tem corrupção, lavagem de dinheiro e alguns casos de organização criminosa. Nesses casos, não dá para colocar duas vezes. Ou é uma organização criminosa grande ou ela é pontual. A denúncia diz que existe uma organização criminosa, formada pelos denunciados. Nessa organização criminosa, porém, tem que se individualizar as condutas. Este fazia isso, aquele fazia aquilo, etc. Ele [Janot] tenta fazer isso, mas não dá. Quantos cargos a Gleisi ocupou nesse período de 2002 a 2016? E o Mantega? Não tem como. O pior é que essa denúncia cita 2002 sendo que não existia essa conduta criminosa. Não tem cabimento. O primeiro recorte que faço é que tinha que ser a partir de 2013. O segundo é que as atuações tinham que se individualizadas. Quem fazia o que? Não adianta falar que era uma organização criminosa e citar um monte de coisa que foi apurada em outros processos. Quem fazia o que nessa organização? Aí ele [Janot] fala que o Lula sempre foi o líder, e era o presidente, depois ficou influenciando. Ué. Um é quem influencia, outro é líder. São papéis completamente diferentes. Não dá para falar que era uma organização criminosa itinerante. E o pior, a denúncia deixa muito claro que foi um "copia e cola" de vários trechos, várias coisas, para criminalizar o PT. Esse é o foco. Aí falam: "ah, mas separou os outros partidos". Aqui temos um recorte muito específico para criminalizar não só a política, mas para criminalizar o PT.
Quando você coloca os fatos como eles estão, primeiro só se pode avaliar de 2013 para frente. De 2013 para frente quem está no comando dessa organização? Dilma, né? Mas não tem nenhuma denúncia de corrupção, de lavagem, de nada contra a Dilma. Como ela a líder da organização criminosa? Se ela era a líder de uma organização, não dá para imputar só um crime de organização criminosa a partir do momento que você tem ciência, ainda que por omissão, da técnica de quem tá na execução. Assim, você não é líder. Dilma não foi nem sequer denunciada. O Lula tem uma denúncia pontual aqui ou ali. Como a líder da organização criminosa só é denunciada por organização criminosa? Isso é totalmente irreal. Em todos os processos da Lava Jato tem uma organização criminosa, sim, mas nunca peguei um caso de um cara ser acusado só por organização criminosa. Uma organização criminosa composta por pessoas que só cometeram organização criminosa é uma organização criminosa que não praticou efetivamente nenhum crime. Aí argumentam que poderia ser só uma tentativa. Como foi uma tentativa de organização criminosa por 14 anos? Então, é uma denúncia que não tem lógica, não tem técnica. Desde o período temporal da imputação até a individualização da conduta. Não importa o crime, você tem que individualizar a conduta, o que cada um fazia.
E conforme você começou falando, que eu concordo totalmente: a denúncia não tem base, não tem embasamento nenhum. O que é o embasamento dessa denúncia? Um monte de delação premiada e menção a casos da Lava Jato. Abre margem para a gente perguntar: o que aconteceu de novo pra ter essa denúncia? Juridicamente, nada.
Fórum - Então seria uma denuncia que foi feita com um timing calculado - basta ver os acontecimentos dos últimos dias - com uma motivação política?
Hideo - É. Hoje em dia o processo penal virou um jogo político. É a manipulação do processo penal com finalidade política. Alguém tem que se salvar. O processo penal virou uma guerra política. Agora, há vários aspectos nessa denúncia em que você vê que isso foi feito de última hora, correndo. Logo quando você vê a capitulação, nas primeiras folhas, ele [Janot] coloca Lula, Dilma, Palocci, Guido, Gleisi, Vaccari e aí tem um ponto e vírgula e um "e". Você percebe que alguém foi excluído, tinha mais gente aí. Teve um corte de última hora. A numeração das páginas, na revisão do sumário, não tá batendo. Você vai vendo que são coisas que, no fundo, mostram só um "copia e cola" de vários outros processos. No final das contas não tem nada.
Fórum - E ela teria sido feita de última hora justamente como forma de desviar a atenção de algum outro foco?
Hideo - Eu não gosto de trabalhar muito com suposições mas, pela forma da denúncia, pelo contexto político que isso está sendo lançado, é possível a gente inferir que teve motivações extra-jurídicas, motivações políticas para a elaboração dessa denúncia. Não tem nenhum fato novo, não tem nenhuma base concreta, a denúncia se mostra mal acabada. A gente pode afirmar que o tempo dessa denúncia foi estrategicamente pensado como tem acontecido em inúmeros processos penais.
Fórum - Na denúncia, Janot diz que Lula era o grande líder e afirma que o petista trabalhou com nomeação de cargos públicos para atender a interesses no Congresso. Aí, a princípio, não há nenhum crime. Isso seria mais uma aspecto de inconsistência da denúncia?
Hideo - É nisso que a gente vê bem uma tentativa de criminalização da política de quem pensa de uma maneira diferente. Se eu fizer uma política dessa maneira, tudo bem, mas se eu ver o adversário fazendo, isso é crime. O próprio Janot reconhece. Ele diz assim: "É importante registrar que não há ilicitudes por si só nas tratativas descritas". Ou seja, nessas nomeações políticas. Ele mesmo reconhece na própria denúncia que o ilícito não está nas nomeações políticas, mas sim no uso delas como ferramenta para se arrecadar a partir do negócio firmado. Fica muito vago. Ele aponta nomeações, relações e tudo mais, mas não é ilícito. Então o que é? Onde está? Quem fazia o que? O Lula fazia o que, o que a Dilma fazia, a Gleisi, o Vaccari? "Ah, mas o delator falou que pagou a título de doação de campanha, mas não acho que é campanha, é corrupção, ponto". É muito mexido...
Cadê as provas? Isso já é batido. Delação premiada não é prova, é meio de obtenção de prova. É pra te trazer prova. Não se pode usar o depoimento dele como base da prova. É um meio. Não adianta pegar os relatos dos delatores e achar que isso basta. Até por que se você adotar esse princípio de que a palavra do delator basta, que é o que ele [Janot] faz com Lula, se for por esse raciocínio, quem deveria ser denunciado por essas supostas irregularidade do Marcello Miller é o próprio Janot, percebe? Tem palavra de delator, tem diálogo dos irmãos Batista falando de irregularidades de um subordinado de quem? Do próprio Janot. Se você levar esse raciocínio de Janot para Lula, transpassá-lo de Janot para Janot, é o Janot quem deveria ser denunciado. Eu não admito isso, por que acho que isso é totalmente equivocado, mas está se trabalhando com dois pesos e duas medidas. Não há um padrão. A gente trabalha com depoimentos, delação, pega uma lei de 2013, joga para 2012, pega nomeações e afirma que elas são mecanismo para corrupção... Enfim, é um quadro realmente assustador esse tipo de denúncia.
Fórum - Tem algum outro aspecto na denúncia que te chamou a atenção?
Hideo - Na denúncia, o PGR ele chama o golpe que a presidenta Dilma foi submetida de "reformulação do núcleo político da organização criminosa". Ele vai falar: "Com a reformulação do núcleo político da organização criminosa a partir de maio de 2016 os integrantes do PMDB da cãmara passaram a ocupar o papel de liderança".
Fórum - Como se o golpe tivesse sido pactuado com a suposta quadrilha...
Hideo - Exatamente. Que organização criminosa é essa que você chama uma guerra política toda e fala que o PT e o PMDB compunham uma organização criminosa e que teve uma reformuluação do núcleo político? É assustador. Ele tá falando que toda a política, todo o Congresso, que é tudo uma organização criminosa e que o conflito que teve, a crise institucional, o impeachment, foi apenas uma reformulação de núcleo político dessa organização criminosa. Então, não tem como a gente levar a sério essas considerações.
Eu tinha grifado exatamente nesse sentido. É o Lula que mandava, segundo o Janot, de 2002 a 2016. Ele era o líder, logo, ele que articulou essa reformulação do núcleo político, o impeachment. Parece uma peça de ficção.