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"A imagem das senadoras Gleisi, Fátima, Regina, Vanessa, Lídice, Katia e Ângela sentadas, com seus celulares em punho, na mesa diretora do Senado, rodeadas de homens brancos desesperados sem saber como reagir, já fica para a história como uma das referências da luta das mulheres e por um mundo menos desigual e mais diverso"
Por Alexandre Padilha*
Chico Buarque é reconhecido por muitas e muitos pela capacidade de expressar como poucos em música sentimentos das mulheres. Na famosa música Mulheres de Atenas, descreve o sofrimento e a injustiça pelas quais passam aquelas mulheres, indiretamente remetendo ao episódio contado na peça grega clássica de Aristófanes. Nela, conta a história de mulheres de cidades gregas lideradas pela ateniense Lisístrata que, cansadas de uma guerra que já durava vinte anos, resolvem reagir impondo greve do sexo. Não à toa, esta bravura é a mais lembrada, mas nem todos se recordam que para conseguirem de fato o que queriam ocuparam a cidade de Atenas e o Tesouro. Só assim conseguiram a assinatura do acordo de paz.
Poucos lugares são tão masculinos como o Senado brasileiro. Quando fui ministro da Coordenação Política do governo Lula, aos 38 anos, o mais jovem ministro daquele momento do governo, tinha o enorme desafio de tentar entender aquela casa, que era o principal local de derrotas parlamentares do presidente Lula, mesmo com sua popularidade crescente em 2009. Embora ainda longe do auge de sua aprovação, em 2010.
Ali estava parada, por exemplo, há mais de um ano, a aprovação da entrada da Venezuela no Mercosul. Em 2003, ali também havia sido destruída a proposta inicial de reforma tributária do governo Lula e, em 2007, por um voto, a prorrogação da CPMF, que assustava tanto a Fiesp e o setor financeiro, retirando, em uma noite, cerca de R$ 40 bilhões da saúde pública.
Tinha que desvendar aquela esfinge para aprovarmos o marco regulatório do Pré-Sal (o maior enfrentamento econômico dos governos populares), o Minha Casa Minha Vida, o Estatuto da Igualdade Racial, a mudança da Lei de Licitações para permitir usar o poder de compra do Estado para incentivar a inovação tecnológica no Brasil, a capitalização do BNDES e todas as MPs.
Tinha que me embrenhar e entender como caminhar naquele labirinto de homens, quase todos brancos, da política. Ouvir suas histórias. Entender seus códigos. "Política é namoro de homens, ministro", ouvi de alguns. E isso significava: almoçar, tomar café e cafés, jantar mais de uma vez por noite, viajar aos estados e receber suas bases.
Desde a sua criação, quando teve a Princesa Isabel como participante obrigatória, apenas em 1979 tivemos a primeira senadora por voto popular. Eunice Michelis era suplente do senador do Amazonas da Arena, sendo recebida com flores e poesia quando assumiu, "Foi uma recepção muito carinhosa, é verdade. Mas não era usual um senador ser recebido assim. Então foi profundamente discriminatória”, disse em entrevista de 2010.
Lembrando que, em 1979, antes da chegada dela, não existia banheiro feminino. "Meu papel de senadora era ficar quietinha, me comportar como uma dama." A primeira senadora negra, nossa querida Benedita da Silva, só foi eleita em 1994. Depois veio Fatima Cleide. E hoje Regina de Souza.
Já no século 21, muitos consideravam desrespeito as senadoras não usarem vestido no dia a dia das sessões. "O Senado é lugar mais masculino que puteiro, ministro”, dizia outro.
Logo nas minhas primeiras conversas com o senador mais experiente daquela legislatura recebi uma dica: “Ministro, aqui tem dia que a gente sente que vai ter traição na votação. Que estão enganando os líderes e as líderes do governo, eles percebem. Se uma dia o senhor ver, daquela televisão no seu gabinete em que o senhor assiste às sessões, um senador discursando defendendo uma proposta passar a mão na gravata de cima pra baixo, pode ter certeza de que ele está orientando a bancada a votar diferentemente do que está falando". Até o comando da traição tem vestuário masculino no Senado. É um conjunto de códigos que tentam dar um ar de estabilidade e respeito mútuo, mesmo quando atrocidades estão sendo engendradas. É a casa da "estabilidade" política, como dizem alguns, em parte por mandatos mais longos, de oito anos.
A ousadia das senadoras em 11 de julho de 2017, apoiada por uma bancada de senadores companheiros e por milhões de brasileiros nos seus lares, bares, padarias e comércios, ruiu com tais códigos. O Senado, que viu quase calado uma presidenta eleita ser deposta sob a acusação de um crime de responsabilidade por uma dezena de canalhas, mas cordatos, tinha certeza de que aprovaria silenciosamente um dos maiores ataques aos direitos da maioria da população.
No alto do seu destempero machista, de patrão de milhares de terceirizados, o presidente do Senado gritava: "Nem a ditadura ousou ocupar a mesa do Senado", esquecendo que a ditadura ousou fechá-lo, cercear opiniões, o debate de ideias, a liberdade nas eleições, a rotatividade dos mandatos ao criar os senadores biônicos com o pacote de abril de 1977, por exemplo. Mas caberia resposta, "embora não garantisse liberdade sindical, nem a ditadura ousou destruir a CLT."
A imagem das senadoras Gleisi, Fátima, Regina, Vanessa, Lídice, Katia e Ângela sentadas, com seus celulares em punho, na mesa diretora do Senado, rodeadas de homens brancos desesperados sem saber como reagir, já fica para a história como uma das referências da luta das mulheres e por um mundo menos desigual e mais diverso.
A cena patética dos homens que presidiam a casa em apagar a luz, imaginando que as mulheres fraquejariam, mostrando desconhecer a bravura das mesmas senadoras e ignorando a bravura de tantas Marias e Margaridas espalhadas pelo Brasil afora que, na escuridão, trabalham, cozinham, andam até o ponto de ônibus, pegam na enxada, na faca, cuidam dos seus filhos, reagem a todo tipo de violência psicológica, física e sexual. Ignoram que mulheres podem até ter medo do escuro, como homens, podem até fugir do agressor, mas não da luta. Outras imagens da sessão, se não ficarem na história, demorarão muito tempo para sair da memória dos milhões que um dia dedicaram o seu voto a uma senadora pelo estado de São Paulo, ontem flagrada em um beija-mão com o líder mais hipócrita do golpe, o senador derrotado nas urnas do segundo turno de 2014, por uma MULHER.
A luta das senadoras e da bancada de oposição de 11 de julho de 2017, buscando barrar a destruição dos direitos trabalhistas pela aliança PMDB-PSDB-DEM, tinha uma emenda simbólica: a garantia de direitos de mulheres grávidas. Uma das faces mais cruéis das destruições dos direitos, vide o que ocorreu no mundo e levou ao aumento da precarização das relações de trabalho, da concentração de riquezas e de renda, com consequente aumento da desigualdade.
Destruição de direitos que, vide o caso espanhol, não deu conta de enfrentar um desemprego de 40% entre os mais jovens. A destruição dos direitos trabalhistas, se não for barrada no Judiciário, deverá ampliar as chances de demissão sem negociação e contratos temporários, criando um exército de empregos precarizados, que resultam na redução da capacidade do trabalhador em negociar ganhos reais de salário e condições saudáveis de trabalho.
Embora tenha convicção de que as urnas de 2018, caso tenhamos um pleito sem fraude, irão registrar os senadores que destruíram o direito dos trabalhadores e trabalhadoras, estes dificilmente terão destaque na história pelo episódio. Mas a história nunca mais se esquecerá das senadoras sentadas à mesa. A imagem delas na mesa de ontem somam-se a imagens crescentes de mulheres na luta pelos seus direitos. A bravura da Presidência Dilma enfrentando o Senado. As jovens que tomaram as ruas na primavera de 2015, contra tentativa do então presidente da Câmara e, sempre misógino, Eduardo Cunha, em destruir por lei uma conquista das mulheres e da saúde pública aprovada e sancionada quando eu era Ministro da Saúde: a obrigação de todo serviço do SUS oferecer acolhimento, orientação psicológica e jurídica, notificação obrigatória e medicamentos para prevenção de gravidez e infecções sexuais transmissíveis em mulheres, ou qualquer pessoa, vítima de qualquer tipo de violência sexual.
As imagens da “Marcha das Vadias”, que provocaram uma espiral de 180º nos olhares sobre as pautas das mulheres. Como já também são históricos os chapéus de palha das Margaridas tomando as ruas de Brasília, que pautavam, mesmo em governos democrático-populares como os de Lula e Dilma, a assumir mais agendas de compromisso em relação às mulheres como um todo, em especial da área rural. As mulheres sempre serão marcantes não apenas pelas pautas que trazem, mas pela capacidade incessante de reinventarem a intervenção política, território masculino por séculos.
São o que dizia Gonzaguinha em Têmpera: "É que as mulheres sempre serão a chave do seu tempo, o charme de uma etapa, o tapa na acomodação”. Nós, homens, que queremos cada vez mais mudanças, mais do que defender e propiciar cada vez mais espaço para as mulheres, devemos mesmo saudar e celebrar com grande alegria tamanha ousadia. Sem a força das mulheres, não há mudança, não há revolução.
*Alexandre Padilha é médico, foi secretário municipal da saúde na gestão de Fernando Haddad e ministro nas gestões Lula e Dilma.
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