Doria flerta com o fascismo

Perseguição à população de rua, dependentes químicos e internação compulsória em massa é típica de regimes autoritários.

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Perseguição à população de rua, dependentes químicos e internação compulsória em massa é típica de regimes autoritários. Por Julian Rodrigues* Um governo assumidamente neoliberal e conservador. Um prefeito ousado, com uma estratégia agressiva de marketing e grandes pretensões, que opera um rápido desmonte das políticas sociais e a entrega do patrimônio da cidade às empresas. Esse é o perfil da administração Doria. Que o governo Doria iria acabar com o programa “Braços Abertos” (um grande avanço do governo petista) era algo previsível. Mas as medidas truculentas adotadas pelo prefeito tucano (junto com o governador) desde o último domingo, 21 de maio, foram além de qualquer parâmetro razoável, ao ponto da própria Secretária Municipal de Direitos Humanos ter deixado o governo. Doria/Alckmin não só repetiram medidas de violência extrema que já fracassaram (como a “operação sufoco” de 2012), mas avançaram na truculência.  Além de ocupar a região e espalhar os usuários, Doria lacrou uma série de estabelecimento, como bares e os hotéis (que acolhiam participantes do programa “Braços Abertos”). Pior: iniciou a demolição sumária de edificações - locais de moradia. Pessoas foram feridas quando as escavadeiras começaram seu trabalho. Ninguém foi avisado de nada. Tudo foi feito ilegalmente.  Nenhum procedimento legal-formal para a desapropriação ou demolição foi observado. Doria tinha pressa, pois queria lançar um factoide (“a cracolândia acabou”) e aproveitar o clima para avançar na reconfiguração urbana da região. Enxotar o “lixo humano”, demolir tudo e abrir espaço para a especulação imobiliária. De tão arbitrária e insensata, a ação do governo Doria foi criticada amplamente. Do Ministério Público, à Defensoria, passando pela mídia tucana e até por aliados do prefeito.  Em 24 de maio, uma liminar do juiz Fausto Martins Seabra atendeu a solicitação da Defensoria Pública  e suspendeu as ações da prefeitura, da remoção de pessoas à demolição de prédios. Determinou também cadastro prévio e atendimento nas áreas de saúde e habitação. Doria sofreu pesadas críticas dos movimentos sociais, do Ministério Público, do Conselho Regional de Psicologia, do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CONDEPE), de assistentes sociais, de especialistas na área de saúde, vereadores e deputados do PT, PSOL , PCdoB -  da mídia amiga e até dos próprios apoiadores (como a vereadora Soninha Francine, ex-Secretária de Assistência Social). Nesse cenário, ao invés de recuar, o João “trabalhador” resolveu radicalizar. Pediu autorização judicial para abordar pessoas nas ruas, aleatoriamente, supostamente usuárias, e levá-las para atendimento compulsoriamente. Passo seguinte: internação compulsória. O juiz Emiliano Neto – da sétima Vara da Fazenda Pública - ignorou a decisão de seu colega Fausto Martins, a posição do Ministério Público, da Defensoria, de especialistas em saúde, de defensores dos direitos humanos e concordou com o pedido de Doria. Autorizou, liminarmente, no último dia 26 de maio, a “concessão de tutela de urgência para busca e apreensão das pessoas em situação de drogadição com a finalidade de avaliação pelas equipes multidisciplinares (social, médica, assistencial) e, preenchidos os requisitos legais, internação compulsória”.  A decisão vale por 30 dias e “apenas” para região da Luz (a “cracolândia” – nome por si só estigmatizante). Retrocesso e Estado policial Trata-se de uma decisão absurda e gritantemente inconstitucional. Autorizar a Guarda Civil Municipal (!) a abordar e conduzir coercitivamente qualquer pessoa para avaliação médica e possível internação compulsória é retornar ao século 19 e início do século 20. É dar ao Estado o direito de “limpar” aleatoriamente as ruas, criar modernos campos de concentração (disfarçados de “comunidades terapêuticas”) - prendendo e isolando a  gente indesejável: pretos, deficientes, dependentes químicos, travestis, putas, todo povo da rua. A legislação em vigor define que a internação compulsória é uma medida extrema, provisória, que só pode ser autorizada, caso a caso, individualmente, depois de uma rigorosa avaliação médica. A diretriz maior é proteger o usuário. Mas, depois dessa decisão judicial cabe perguntar: quem, afinal, vai ser abordado? Qual o critério da abordagem? Qual o protocolo para condução e recolhimento dessas pessoas? Que formação técnica os guardas municipais ou policias militares possuem para identificar possíveis dependentes químicos em situação extrema? Que políticas de saúde e assistência social estão disponíveis imediatamente? Abriu-se, na verdade, uma porta para o arbítrio total. Na ditadura militar, os manicômios eram depósitos de possíveis opositores do regime, dissidentes e deserdados, miseráveis, gays, lésbicas, travestis, “loucos”. Milhares de pessoas foram encarceradas, torturadas e mortas em hospícios como o de Paracambi (RJ) , Barbacena (MG) ou Juqueri (SP). A luta antimanicomial que emerge no fim dos anos 1980 e se fortalece progressivamente nos anos 1990 e 2000 é patrimônio da democracia brasileira.  Alinhado aos avanços internacionais o movimento contra os hospícios (verdadeiras “casas de extermínio”) - por uma política de saúde mental humanista e democrática conquistou, no âmbito do SUS, a lei  10.216/2001 (conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica). A lei afirma que os direitos e a proteção das pessoas com transtorno mental são assegurados sem qualquer forma de discriminação. E determina que a internação só será permitida quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem ineficientes. A lei também orienta que o tratamento visará a reinserção social do paciente em seu meio, oferecendo assistência integral, por meio de uma equipe multidisciplinar. A partir dessa avançada norma legal, o movimento antimanicomial construiu com os profissionais de saúde, gestores públicos e usuários  a política nacional de saúde mental . Em 2011 foi instituída a “Rede de Atenção Psicossocial, ou RAPS, que dispõe sobre a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde”. Os CAPS - Centro de Atenção Psicossocial – equipamentos públicos e gratuitos do Sistema Único de Saúde são a base dessa política.  Eles “possuem caráter aberto e comunitário, dotados de equipes multiprofissionais e transdisciplinares, realizando atendimento a usuários com transtornos mentais graves e persistentes, a pessoas com sofrimento e/ou transtornos mentais em geral, inclusive decorrentes do uso de crack álcool ou outras drogas.” Há várias modalidades de CAPS, direcionados para públicos e necessidades diversas. Por exemplo, os “CAPS AD - atendem pessoas de todas as faixas etárias que apresentam intenso sofrimento psíquico decorrente do uso de crack, álcool e outras drogas”. É importante registrar essa história porque não partimos do zero. Todo esse arcabouço institucional, todo acúmulo teórico-prático foi não só ignorado, como também repudiado pela administração Doria. Vale lembrar que a ONU também condena a internação compulsória.  Segundo a Organização Mundial de Saúde “a  priorização de medida extrema como a internação compulsória, além de estar na contramão do conhecimento científico sobre o tema, pode exacerbar as condições de vulnerabilidade e exclusão social dos usuários de drogas”. Business as usual Não é difícil apontar os interesses imediatos - e nem tão ocultos – que fundamentam as ações do prefeito de São Paulo. Primeiramente: “limpar” o centro da cidade, tirando a gente feia e suja. É sempre uma coisa bem vista pelas classes médias conservadoras, pela mídia e pela burguesia que entusiasticamente apoia João Doria. Em segundo lugar, a região da Luz é altamente valorizada, cobiçada pela especulação imobiliária. O governo Kassab chegou a lançar um “projeto urbanístico”, chamado Nova Luz, para “reurbanizar” aquela área. O governo petista arquivou essa iniciativa voltada para os interesses do capital especulativo. Doria indica que quer retomar esse projeto passando por cima de tudo e de todos. Em tempo recorde, atropelando a legislação e massacrando as pessoas pretende expulsar os moradores e colocar abaixo as atuais edificações. Ou seja: para além de uma posição reacionária e anti-científica na questão do enfrentamento ao problema da dependência química, a administração do João quer mesmo é satisfazer rapidamente os interesses da burguesia paulistana. Atrevido e sem limites, o prefeito midiático acha que pode passar por cima de tudo e de todos para executar seu projeto privatista, elitista, excludente, higienista – é um alegre capacho das elites. Tudo indica, entretanto, que Doria passou dos limites e está se isolando. A resistência democrática cresce.  A maioria da cidade não apoia políticas que beiram ao fascismo! Há espaço para defender os direitos humanos e uma São Paulo plural, diversa, onde caibam todos e todas. Obs.: No domingo (28), dia da publicação deste artigo, o desembargador Reinaldo Miluzz, a pedido do Ministério Público Estadual e da Defensoria Pública de São Paulo, suspendeu a liminar que permitia Doria internar compulsivamente usuários de droga da região da Luz. *Professor e jornalista, é da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) Foto: Daniel Arroyo/Ponte jornalismo