Em decisão histórica, Unicamp aprova cotas étnico-raciais e Vestibular Indígena

Mecanismos fazem parte de política mais ampla que objetiva fazer com que a sociedade esteja representada na Universidade

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Mecanismos fazem parte de política mais ampla que objetiva fazer com que a sociedade esteja representada na Universidade Do Jornal da Unicamp* A Unicamp tomou uma decisão histórica na tarde desta terça-feira (21) ao aprovar, por meio do Conselho Universitário (Consu), mecanismos que flexibilizam o ingresso nos seus cursos de graduação. Entre as medidas admitidas estão a adoção de um sistema de cotas étnico-raciais que reserva 25% das vagas disponíveis para candidatos autodeclarados pretos e pardos e a criação do Vestibular Indígena. O objetivo da iniciativa, como assinalou o reitor Marcelo Knobel, é fazer com que a sociedade se veja representada na instituição. As medidas serão aplicadas a partir de 2019. Foto: Scarpa O reitor Marcelo Knobel: “Daremos início a uma nova etapa, que incluirá a criação da Secretaria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade, instância que cuidará de questões como acompanhamento e permanência estudantil” De acordo com Knobel, a Unicamp deu um passo importante ao estabelecer novas formas de ingresso nos cursos de graduação que combinam princípios como mérito, justiça social, equidade e diversidade. “Agora, daremos início a uma nova etapa, que incluirá a criação da Secretaria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade, instância que cuidará de questões como acompanhamento e permanência estudantil, e a elaboração dos respectivos editais”, adianta. Além das cotas étnico-raciais e do Vestibular Indígena, o Consu também aprovou mudanças no Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (PAAIS), criado em 2004, de modo a aperfeiçoá-lo. Uma das novidades é a concessão de bonificação [20 pontos na primeira e segunda fase do Vestibular] também aos candidatos que cursaram o Ensino Fundamental II em escola pública. No modelo atual, o PAAIS confere pontuação adicional somente aos candidatos que fizeram o Ensino Médio em escola pública. Foto:Scarpa O coordenador-executivo da Comvest, José Alves de Freitas Neto: “A Universidade sinaliza que reconhece a existência de múltiplas experiências educacionais que merecem ser consideradas na busca pelos melhores estudantes" O Consu referendou, ainda, a indicação da Comissão Central de Graduação (CCG), que sugeriu a oferta parcial de vagas por meio do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) e não pelo Sistema de Seleção Unificado (SISU), como constava originalmente na proposta de resolução formulada pelo Grupo de Trabalho (GT Ingresso), constituído pelo próprio Conselho para analisar novas vias de entrada nos cursos de graduação. A designação de vagas para os melhores colocados em olimpíadas e competições de conhecimento foi outro ponto aprovado, assim como a recomendação para que a Universidade promova estudos para a expansão do Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS) para as cidades da Região Metropolitana de Campinas (RMC) e os municípios de Piracicaba e Limeira. Foto:Scarpa A pró-reitora de Graduação, professora Eliana Amaral. “A diversidade é um substrato fundamental para a Universidade. Olhares e experiências diferentes ajudam a ciência a formular soluções criativas e inovadoras para os problemas que ela investiga” Tão importante quanto criar condições para que a sociedade se sinta representada na Unicamp, as medidas aprovadas pelo Consu ajudarão a qualificar ainda mais as atividades de ensino, pesquisa e extensão no âmbito da instituição, como explica a pró-reitora de Graduação, professora Eliana Amaral. “A diversidade é um substrato fundamental para a Universidade. Olhares e experiências diferentes ajudam a ciência a formular soluções criativas e inovadoras para os problemas que ela investiga”, pontua. Presidente do GT Ingresso e coordenador-executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest), o professor José Alves de Freitas Neto entende que a decisão do Consu transmitiu uma mensagem importante à sociedade. “A Universidade sinaliza que reconhece a existência de múltiplas experiências educacionais que merecem ser consideradas na busca pelos melhores estudantes. Sem dúvida, foi uma decisão madura, tomada depois de uma profunda reflexão por parte do conjunto da comunidade universitária”, avalia. Foto:Scarpa Estudantes indígenas da UFSCar comemoram com dança e canto típicos Vários convidados acompanharam a sessão do Consu. Além de integrantes do GT Ingresso, representantes de movimentos sociais e de povos indígenas estiveram presentes à reunião. Vários deles se manifestaram ressaltando a importância de a Universidade oferecer oportunidades para integrantes de segmentos sociais que sempre estiveram sub-representados no ensino superior brasileiro. Ao final da votação, dois estudantes indígenas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) dançaram e cantaram músicas típicas para comemorar a aprovação das medidas, especialmente a criação do Vestibular Indígena.

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Mudanças produzirão ganhos acadêmicos e sociais MANUEL ALVES FILHO A criação de múltiplas formas de acesso aos cursos de graduação da Unicamp, incluindo o sistema de cotas étnico-raciais, representa um avanço importante para a Universidade e também para a sociedade. Esta é, em resumo, a avaliação de três atores que estiveram envolvidos diretamente no processo de construção da proposta, os professores Mário Augusto Medeiros da Silva e Lucilene Reginaldo, ambos do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), e Taina Aparecida Silva Santos, integrante do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp. Conforme Medeiros, que integrou tanto o GT Cotas quanto o GT Ingresso, o processo que resultou na proposta de resolução apreciada pelo Consu foi positivo. Ele destaca que as discussões ocorreram em alto nível e que não houve retrocesso em relação às proposições anteriores, que contaram com contribuições tanto da comunidade interna quanto da externa. “Todos os pontos apresentados são conquistas das demandas expressas no antigo relatório e nas audiências públicas. Estas reforçam o princípio da diversidade social como uma estratégia científica da Unicamp, aliada ao mecanismo de redução de desigualdades de acesso à educação superior e ao combate ao racismo e à discriminação na sociedade brasileira”, afirma. Para o docente, ao intensificar a diversidade étnica e social, a Unicamp não somente responde afirmativamente aos direitos sociais e aos mecanismos de combate às desigualdades e ao racismo, como faz um movimento em direção à qualificação das suas atividades de pesquisa, ensino e extensão. “Os estudantes que adentrarem a Universidade por esses mecanismos o farão testados pelo Vestibular, como todos os outros. Destarte, são altamente capazes segundo os valores da instituição. Eles trarão consigo, em suas bagagens, visões de mundo e experiências sociais que tornarão a Unicamp mais rica e complexa, podendo surgir desse cenário soluções originais para problemas enfrentados nas diferentes áreas de conhecimento”, avalia. Foto: Perri O professor Mário Augusto Medeiros da Silva: “Todos os pontos apresentados são conquistas das demandas expressas no antigo relatório e nas audiências públicas” Medeiros lembra que os membros do Consu ainda deverão avançar no debate a respeito das políticas de permanência aos estudantes. “Isso não estava no âmbito da discussão do GT Ingresso, mas estava no anterior é algo indissociável das propostas construídas. Moradia, bolsas de pesquisa e de caráter social, bem como mecanismos institucionais de combate à discriminação e preconceitos, são medidas absolutamente necessárias para que essas políticas tenham êxito”, observa o docente do IFCH. Integrante do GT Cotas, a professora Lucilene também avalia positivamente tanto o processo quanto o resultado dos debates acerca das medidas sugeridas na proposta de resolução. “Iniciamos as discussões num patamar e terminamos num patamar muito superior. As discussões partiram das demandas dos estudantes, mas também de parte da comunidade acadêmica e dos movimentos sociais. Eu participei de reuniões em várias unidades de ensino e pesquisa, onde o tema do racismo enquanto elemento estruturante da sociedade brasileira esteve em pauta. Foi uma discussão muito importante e mostrou que grupos foram convencidos de que precisávamos pensar em novas formas de ingresso e de que as cotas faziam parte do reconhecimento da presença do racismo na sociedade brasileira”, relata. Foto: Scarpa A professora Lucilene Reginaldo: “Ganhamos ao convivermos num ambiente mais diversificado, o que é importante para combater a discriminação racial” As sugestões apresentadas, assinala, representam ainda o reconhecimento do lugar social da Universidade. “É uma questão importante reconhecer a relevância de políticas de ação afirmativas num país com um histórico de discriminação racial e de alijamento de direitos dos povos indígenas. Nesse sentido, a Unicamp admite que tem um papel a cumprir em relação a essas questões. Mas vai além: o ingresso desses grupos sociais significa também um ganho para a instituição. Ganhamos ao convivermos num ambiente mais diversificado, o que é importante para combater a discriminação racial. Mas ganhamos também sob o ponto de vista da produção do conhecimento. Trata-se de um ganho epistemológico. Vamos trazer para cá pessoas que olham o mundo de outro ponto de vista. E isso contribui para a produção de conhecimento novo”, entende. No entender de Taina, o processo de reflexão sobre as novas formas de ingresso foi “interessante”. Ela considera que existem pontos específicos a serem analisados com mais cuidado, notadamente no que diz respeito ao mecanismo de gatilho de algumas medidas. “Mas como o sistema será avaliado anualmente, de acordo com o que estabelecemos na proposta, acredito que teremos oportunidades de debater eventuais mudanças. Por hora, fizemos o melhor trabalho possível para o tempo que tínhamos disponível”, diz. De acordo com ela, que participou dos dois GTs, a despeito de algumas discordâncias pontuais, o GT Ingresso conseguiu estabelecer certo consenso. “Em relação às cotas raciais, por exemplo, conseguimos garantir que o percentual de população negra referente ao Estado de São Paulo seja respeitado no momento da reserva de vagas. No que se refere ao Vestibular Indígena, pelo menos de nossa parte, houve interesse em dialogar com as lideranças de algumas comunidades para que pudéssemos fazer análises assertivas sobre quais eram os cursos de maior interesse para essa população, com intuito de evitar evasão ou baixa demanda”. Foto: Scarpa Taina Aparecida Silva Santos: “Sem dúvida, é um passo importante para o ensino superior público e uma vitória para o Movimento Negro brasileiro” A representante do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp adianta que sua expectativa é de que as propostas apresentadas sejam referendadas pelo Consu. “Com isso, estaremos encerrando um ciclo que alterou as dinâmicas desta Universidade e o lugar que a temática do racismo vinha ocupando na agenda institucional. Sem dúvida, é um passo importante para o ensino superior público e uma vitória para o Movimento Negro brasileiro”, sentencia, acrescentando que outras questões devem ser debatidas a partir de agora, como a criação da futura Secretaria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade, que cuidará de questões como a permanência estudantil. “A implantação desse órgão precisa contar com ampla participação e consulta à comunidade universitária”, reivindica.

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Simulações indicam avanço da inclusão MANUEL ALVES FILHO As propostas apresentadas no documento do GT Ingresso foram precedidas de inúmeras simulações, realizadas a partir da base de dados dos inscritos no Vestibular 2017. “Apoiados nas informações disponíveis, nós fizemos projeções sobre como ficaria o acesso à Unicamp, em termo gerais e por curso, considerando os mecanismos sugeridos na proposta de resolução. Esse exercício não foi feito em relação às vagas destinadas ao Sisu [a CCG recomendou a substituição deste sistema pelo Enem] porque não dispomos dos dados dos inscritos nesse sistema”, explica o professor Rafael Pimentel Maia, coordenador de pesquisa da Comvest. O cenário desenhado, prossegue Maia, refere-se à primeira chamada. Segundo as simulações, o índice geral de candidatos aprovados oriundos de escolas públicas passaria dos atuais 38,1% para 45,9%. Quanto aos cursos, a proporção de estudantes vindos de escolas públicas variaria de 80%, no caso da Química Tecnológica [noturno], a 28,3% em Engenharia de Produção [integral]. “Essa variação tem a ver com o perfil dos candidatos inscritos. Há cursos nos quais a proporção de inscritos egressos da escola pública é muito maior que em outros, caso de algumas carreiras oferecidas no período noturno e algumas licenciaturas”, esclarece o coordenador de pesquisa da Comvest. Foto: Reprodução O professor Rafael Pimentel Maia, coordenador de pesquisa da Comvest: maior número de oriundos de escolas públicas A expectativa da Universidade, pontua Maia, é que, com a oferta de novas formas de acesso à graduação, aumente a procura por parte dos candidatos de escolas públicas. “Esperamos o mesmo em relação aos candidatos autodeclarados pretos e pardos. Atualmente, a presença desse segmento no conjunto dos estudantes de graduação é de 29,5%. Com o advento das cotas, essa taxa passaria num primeiro momento para 33,6%, número próximo à meta que a Unicamp pretende atingir, de 37,2%, que corresponde à participação de pretos e pardos na população do Estado de São Paulo”, observa o docente. Desmembrada por cursos, a participação dos estudantes afrodescendentes também apresentaria variações positivas. De acordo com as simulações executadas, a proporção subiria de 35,7% para 40% nas Ciências Econômicas [noturno] e de 11,4% para 20% em Tecnologia em Saneamento Ambiental [noturno]. Com o advento das cotas, cerca de 20 cursos passariam a contar com um contingente de pretos e pardos equivalente ou superior ao da representação desse grupo étnico na população paulista. Como o Vestibular Indígena ainda está para ser criado, obviamente não foi possível realizar uma projeção sobre a possível participação desse grupo nos cursos de graduação da Unicamp, como adverte Maia. Entretanto, o GT Ingresso consultou universidades que adotaram esse processo seletivo e elencou os cursos mais procurados pelos indígenas. São eles: Medicina, Ciências Biológicas, Farmácia, Enfermagem, Educação Física, Nutrição, Ciências Sociais, Letras, Linguística, Pedagogia, Geografia, História, Filosofia, Administração, Comunicação Social (Midialogia) e Engenharia Agrícola. Alguns deles já manifestaram interesse em oferecer vagas para esse segmento.  

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Debates envolveram toda a comunidade JULIANA SANGION Arte: LPSilva Clique na imagem para ampliar | Arte: LuppaSilva Até ser aprovada no Conselho Universitário (Consu), a proposta de adoção de cotas étnico-raciais e demais mudanças nas formas de ingresso nos cursos de graduação da Unicamp percorreu um longo caminho. O trabalho envolveu audiências públicas, criação de grupos específicos para estudo e elaboração de um modelo; simulações estatísticas para subsidiar a proposta e apresentações e discussões nas unidades de ensino e pesquisa e na Câmara Deliberativa do Vestibular. Durante cinco meses, desde junho de 2017, o segundo Grupo de Trabalho (GT Ingresso) formulou e discutiu uma proposta capaz de alcançar maior equidade no acesso à Unicamp (leia sobre o primeiro GT ao final do texto). O grupo foi instituído pelo Conselho Universitário (Consu) logo depois da aprovação, em 30 de maio, do princípio das cotas étnico-raciais na graduação. Assim que foram oficialmente nomeados pelo reitor Marcelo Knobel, os 13 integrantes do GT Ingresso iniciaram os trabalhos. O grupo, presidido pelo coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest), José Alves de Freitas Neto, foi composto por dois representantes da Comvest; dois representantes do GT Cotas (que antecedeu os trabalhos do GT ingresso); dois representantes dos movimentos sociais; três representantes do Consu; um representante discente; um representante de funcionários e um representante da Comissão Central de Graduação (CCG). Ainda em junho, antes da primeira reunião do GT Ingresso, foi realizada uma reunião da Câmara Deliberativa do Vestibular, em que os representantes de cada curso da Unicamp apresentaram as considerações sobre as cotas étnico-raciais e demais ações que estavam sendo estudadas. Os representantes da Câmara haviam sido pautados pela coordenação executiva da Comvest e tiveram algumas semanas para levantar tais informações junto à comunidade interna e às congregações e, posteriormente, apresentá-las na reunião. De acordo com o presidente do GT Ingresso, foi um momento importante, pois “ouvir os cursos foi fundamental para detalhar as especificidades e fazer frente ao desafio da permanência”, afirmou José Alves. A primeira reunião do GT Ingresso aconteceu quatro dias após essa reunião da Câmara do Vestibular. Os membros definiram, então, o calendário de encontros e as dinâmicas de trabalho, de maneira a atender o cronograma estabelecido pelo Consu. Depois de cerca dois meses de estudos e simulações estatísticas, a proposta do GT Ingresso foi finalizada e apresentada, no dia 31 de agosto, na Câmara Deliberativa do Vestibular. O GT recomendou a ampliação das possibilidades de ingresso, de diferentes maneiras. A partir de então, o trabalho do GT Ingresso foi de apresentar e discutir a proposta em cada unidade de ensino, com o objetivo de esclarecer as dúvidas e provocar uma reflexão interna sobre as especificidades de cada curso. As apresentações foram realizadas pelo presidente do GT e pelo coordenador de pesquisa da Comvest, Rafael Maia, que também integra o GT Ingresso. No dia 9 de novembro, a proposta finalizada foi apresentada na Câmara Deliberativa, onde foi aprovada por unanimidade, mas com importantes sugestões de ajustes. Na sessão, juntamente com o texto da deliberação, a Câmara aprovou outros documentos que subsidiariam as discussões tanto na CCG, como no Conselho Universitário (Consu): um quadro com a compilação de todas as manifestações dos cursos e um anexo sobre a forma de preencher as vagas. A apreciação e a aprovação na Comissão Central de Graduação (CCG) ocorreram no dia 14 de novembro, última etapa antes da votação da deliberação no Conselho Universitário, em 21 de novembro. GT Cotas antecedeu GT Ingresso O processo para elaboração de uma política de adoção de cotas nos cursos de graduação na Unicamp teve início em 2016. No primeiro semestre daquele ano houve uma mobilização estudantil que resultou em um acordo entre a Reitoria e grupos associados ao Movimento Estudantil. Em setembro, o então reitor José Tadeu Jorge designou por meio de uma portaria (GR-050/2016), o Grupo de Trabalho responsável por promover audiências públicas e que ficou conhecido como GT Cotas. O grupo foi composto por 11 integrantes e presidido pela professora Rachel Meneguello. Foram realizadas três audiências públicas, em outubro, novembro e dezembro de 2016, que resultaram em um amplo debate sobre as cotas na Universidade. O GT Cotas finalizou e apresentou, então, em fevereiro de 2017, um relatório com os resultados das discussões nas audiências e uma proposta de reformulação da política de ação afirmativa na Unicamp, contemplando as dimensões do acesso e da permanência universitária.   Lideranças falam sobre a aprovação VALÉRIO PAIVA DENNIS DE OLIVEIRA Foto: Reprodução Chefe do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP, coordenador do Centro de Estudos Latino Americanos de Cultura e Comunicação e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro. É importante garantir mecanismos de acesso ao ensino superior para a juventude negra que, em razão do racismo, é excluída da possibilidade de uma qualificação maior e de outras oportunidades. É a correção de um dos mecanismos do racismo enquanto barreira de oportunidades. E do ponto de vista da USP e da Unicamp, como são universidades de ponta que concentram grande parte das pesquisas, você possibilita a participação de jovens nesses centros de poder do conhecimento. Vamos ver jovens negros e jovens negras como protagonistas de pesquisas de pontas em centros de estudos avançados, tendo um papel destacado na ciência. Precisamos de uma reformulação total do Estado brasileiro, que foi constituído a partir de uma perspectiva de exclusão racial. Quando observamos a história Brasil nos séculos 19 e 20, particularmente na transição do sistema de trabalho escravizado para assalariado, observamos que foi constituído um Estado com três elementos: um Estado que é voltado para a manutenção da concentração de renda e patrimônio, por exemplo, quando vemos que existe no Brasil um sistema tributário regressivo que penaliza mais o consumo, e, por conseguinte a população trabalhadora e negra ao manter intactos os patrimônio e a concentração de renda; o segundo elemento é um Estado com concepção restrita de cidadania, com acesso restrito a educação e saúde de qualidade; e o terceiro elemento é a violência como prática central de manutenção de privilégios, pois ela quando, mesmo em regimes democráticos, o Estado mantém aparatos repressivos intensos, que atingem fundamentalmente a população negra jovem da periferia. Nós entendemos que é pontual esse processo de exclusão racial na educação e na saúde, com violência. Eles fazem parte da lógica desse Estado. É importante a conquista das cotas raciais e de outras ações afirmativas, mas é fundamental direcionar uma transformação radical do Estado brasileiro, para que de fato ele seja constituído para garantir a reparação e equidade social e racial. DJAMILA RIBEIRO Foto: Reprodução Pesquisadora da área de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). | Reprodução | Caros Amigos É importantíssimo ter ações afirmativas na Unicamp porque elas cumprem um papel de reparação de fato, pois as oportunidades não são iguais para a população negra devido ao apartheid historicamente existente nesses espaços por conta do racismo estrutural e institucional. É um importante passo para diminuir essas distâncias. Dentro das ações afirmativas que garantem o acesso, é igualmente importante pensar na questão da permanência dos estudantes nesses espaços. É um grande desafio num momento de diminuição desse tipo de política. A maioria vem de locais pobres e muitas vezes os alunos são obrigados e desistir da universidade por conta disso. Outra questão é fazermos no Brasil um debate sério e profundo sobre racismo estrutural. Num país onde foi cunhado o mito da democracia racial, temos dificuldade de fazer o debate de maneira mais franca. Precisam garantir essas ações já que ainda utilizam o quesito raça para discriminar. A criação de políticas nesse sentido, para além da educação, precisa ser ampliada para outros setores. A educação pública de qualidade é algo que o movimento sempre reivindicou, com ações afirmativas paralelamente à melhoria do ensino público. E isso acaba sendo um grande desafio, pois a maioria está na educação pública, num projeto falido e que precisa ser revisto. Acesso através de ações afirmativas tem tempo de duração. Enquanto o ensino não for de fato universal, num país onde a gente sofre com a mercantilização, essas medidas se mostram importantes, mas devem ser pensadas para além da educação. DOUGLAS BELCHIOR Foto: Reprodução Historiador, é professor da rede pública estadual e do Uneafro-Brasil. Participou da Formação da Frente Pró Cotas Raciais do Estado de São Paulo. O acesso à educação formal, em todos os níveis, é uma luta histórica da população negra. A mesma população que sempre percebeu que o acesso à informação, educação e conhecimento é uma estratégia de luta pela sua liberdade. Tanto é verdade que os escravocratas, ainda no período do Império, lançaram mãos de leis que proibiam a presença de africanos e descendentes nas escolas públicas quando elas surgiram. O acesso à educação por parte da população negra sempre foi vista como um risco para o status quo, para elites escravocratas deste país. Essa dinâmica se perpetua no pós-abolição, pois nunca se democratizou o acesso à educação brasileira desde então, se comparada a presença de negros e brancos nesses espaços. O que é uma pena, pois perdemos muito potencial que poderia nos ajudar no desenvolvimento do país. É da população negra que surgem as maiores inovações do campo da cultura e das artes. E, mesmo com as limitações pelo mundo afora, negros e negras são destaque nas ciências e nos conhecimentos formais e não-formais. A universidade brasileira sempre se recusou a ser um espaço de acolhimento dessa população. E por isso sempre foi tão pobre, normativa e pouco universal. De maneira que as cotas raciais, como uma política compensatória e temporária para a situação que o Brasil vive de apartheid radical e profundo, não reconhecido, é uma contribuição para sua própria valorização. Quem ganha com a presença de negros na universidade é a própria instituição e a sociedade no geral. Daí a importância da aprovação, mesmo com atraso, dessas políticas afirmativas. Joselício Freitas dos Santos Júnior Foto: Reprodução Jornalista e membro do Círculo Palmarino. A política de cotas é, sem sombra de dúvidas, uma medida muito importante para reduzir o abismo econômico, social e cultural, que se construiu ao longo da história brasileira, principalmente no pós-abolição. Nós entendemos que o acesso à universidade pública é um elemento de reparação histórica à exclusão e ao abismo que se formou entre negros e não negros. É um fator de empoderamento, importante para a melhoria da condição social da comunidade negra, e democratiza esse espaço de produção do conhecimento, colocando a universidade a serviço da comunidade e da sociedade brasileira. Num regime democrático, a universidade deve expressar a diversidade da sociedade brasileira. Ter alunos negras e negros dentro da universidade provoca a necessidade de repensar currículos, coloca um desafio sobre a questão da permanência e no acesso da pós-graduação. Causará a necessidade de ter professores negros e negras, trazendo uma amplitude e maior diversidade para a instituição. A conquista das cotas na Unicamp é uma grande vitória do movimento e do povo negro. É uma vitória daqueles que sonham e lutam por democracia e por uma universidade que esteja a serviço da maioria da população brasileira. Acho que demorou, pois já temos a implementação de cotas no Brasil há mais de uma década, e as universidades de São Paulo somente agora passam a implementar uma política que todos os dados estatísticos demostram que não reduz a qualidade do ensino. Os alunos cotistas têm desempenho igual ou melhor aos não cotistas, ampliando a discussão sobre diversidade, e trazem conflitos necessários para a mudanças de currículos e paradigmas dentro das universidades. As ações afirmativas têm se mostrado um grande acerto na última década, e é importante que as universidades paulistas, que historicamente atenderam as elites, passem a atender os interesses do conjunto da população trabalhadora e excluída historicamente nesse país. Por isso vejo como um avanço a implementação de cotas na Unicamp. TEXTO: MANUEL ALVES FILHO FOTOS: ANTONINHO PERRI | ANTONIO SCARPINETTI | DIVULGAÇÃO