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"Não é incompreensível que eu seja objeto de difamação por parte daquelas pessoas e grupos que se auto-intitulam anti-feministas, mas é no mínimo curioso que a difamação não cesse de gerar novos conteúdos associados sempre à minha pessoa. Desta vez, além de voltar a veicular um meme antigo criado por uma organização de defesa da heterossexualidade me comparando à Marisa Lobo, uma pessoa polêmica que se afirma “ex-feminista”, Sara Winter, veicula um novo meme de comparação entre eu e a missionária que esteve prestes a perder o título de psicóloga devido a violações éticas no exercício da profissão". Confira o artigo de Tatiana Lionço
Por Tatiana Lionço*
Não é incompreensível que eu seja objeto de difamação por parte daquelas pessoas e grupos que se auto-intitulam anti-feministas, mas é no mínimo curioso que a difamação não cesse de gerar novos conteúdos associados sempre à minha pessoa. Desta vez, além de voltar a veicular um meme antigo criado por uma organização de defesa da heterossexualidade me comparando à Marisa Lobo, uma pessoa polêmica que se afirma “ex-feminista”, Sara Winter, veicula um novo meme de comparação entre eu e a missionária que esteve prestes a perder o título de psicóloga devido a violações éticas no exercício da profissão. O meme foi replicado pela própria Marisa Lobo em sua conta de Facebook no afã de sua campanha política. Ideias como ex-feminista e ex-psicóloga são intrigantes. Há quem diga que se você é ex-alguma coisa é porque de fato nunca o foi e eu tenho neste momento uma concordância emocional com a ideia, ainda que não esteja me entregando à disponibilidade de pensar sobre o assunto de modo mais fundamentado pois estou decidindo refletir sobre outro aspecto da questão das difamações.
[caption id="attachment_90286" align="aligncenter" width="399"] Foto: Reprodução[/caption]
Não me deterei hoje sobre a condição esdrúxula de ex-feminista de uma pessoa que jamais foi feminista, mas no fato de Marisa Lobo permanecer sendo reconhecida como psicóloga dado que já existem inúmeras evidências de que não o é. A evidência mais explícita de que ela pode deixar de ser entendida como psicóloga consiste no fato de que ela não faz questão de o ser. Para ainda afirmar que seria uma psicóloga, Marisa Lobo precisa distorcer a Psicologia de acordo com seus preceitos religiosos de missionária a ponto de usar da manutenção pública de violação de preceitos éticos fundamentais da profissão para afirmar em que condições se afirmaria psicóloga: ela se afirma psicóloga negando a Psicologia, ou seja, sua condição para se afirmar psicóloga é não ser psicóloga senão como uma expressão de sua identidade missionária. Para isso, inventa um título que não existe: “Psicóloga Cristã”. Como se não bastasse, o usa em campanha política para vereadora.
Essa ideia só faz sentido na mesma medida em que eu poderia me afirmar, analogamente, como “psicóloga transviada”. O título que vale, no entanto, é o de psicóloga para ela, e o de Doutora em Psicologia, para mim. Todo o resto é distorção e uso de informação privada e pessoal como cortina de fumaça. Se ela é cristã e se eu sou transviada, isso apenas revela diferenças pessoais sobre as quais, inclusive, a Psicologia como ciência e como profissão afirmaria reconhecer e valorizar ambas como expressão singular da condição humana em sua diversidade social, cultural e moral. Nosso código de ética profissional afirma ser um dever proteger a diversidade subjetiva e social. Podemos, ambas, ser o que somos, o que não podemos, no exercício da profissão, é violar os preceitos éticos do que consiste fundamento da identidade profissional na Psicologia.
É importante notar ainda o contexto em que os memes que me comparam à missionária Marisa Lobo foram veiculados na última semana. A comparação entre nós se deu no seio da campanha política de Marisa Lobo a vereadora na cidade de Curitiba. Nos memes, eu seria a imoral e ela o exemplo de moralidade. Eu, associada a degradação de valores morais tais como aborto, drogas, pornografia, ateísmo; ela, associada à moralidade inquestionável da guerra às drogas, da família e dos bons costumes cristãos. Ela usa da comparação para afirmar que eu seria protegida pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) enquanto ela seria perseguida pelo conselho. Talvez Marisa Lobo tenha alguma dificuldade para aceitar cumprir preceitos democráticos e normas coletivas. A suprema corte já afirmou entender que não houve perseguição do CFP contra ela mas a mesma continua afirmando isso para fins políticos em benefício próprio. Marisa Lobo não foi perseguida, mas sim interpelada pelo sistema conselhos de Psicologia sobre violação de preceitos éticos praticados pela mesma. O conselho regional em que está inscrita entendeu que as violações seriam graves o suficiente inclusive para cassar seu título de psicóloga, enquanto o conselho federal entendeu que não seria prudente aplicar a sanção máxima diante de um primeiro processo ético tramitado e julgado no sistema.
Gostaria de me deter um pouco mais sobre esta questão e de veicular publicamente uma opinião bastante pessoal sobre o tema. Há muitos outros elementos a serem considerados no caso. Um deles, e talvez o mais importante, seja que o caso serviu para demarcar divergências políticas entre diferentes movimentos que disputam gestão no sistema conselhos de Psicologia. Uma tendência política na Psicologia clamou pela cassação, outra tendência política na Psicologia justificou sua discordância acusando a primeira de tribunal de exceção e propondo uma sanção mais branda, a censura pública. É bom lembrar, no entanto, que o que justifica a aplicabilidade da sanção mais branda não é a relativização da violação ética, pois todas as tendências políticas na Psicologia entendem os termos em que houve violação ética, mas sim a ideia de que foi a primeira representação sofrida pela missionária. Isso significa que a reincidência pode ser entendida, inclusive pela tendência política da Psicologia que decidiu pela aplicabilidade da sanção mais branda, como um agravante que pode vir a justificar uma sanção mais incisiva futuramente: a cassação do título. Isso depende de novas representações serem apresentadas e nova tramitação de processo ético ocorrer. Espero que as representações se multipliquem pois as violações éticas permanecem públicas.
Do meu ponto de vista pessoal, considero que a desconsideração da censura pública, o não atendimento a solicitações de retratação em relação a conteúdos de violação ética e a auto-promoção política em torno da própria violação ética do princípio da laicidade e não discriminação na profissão configuram ainda, outra violação ética: o aviltamento da Psicologia. Por analogia, imaginemos por alguns segundos um profissional de Medicina que propusesse o retorno à lógica das internações de pessoas homossexuais em hospitais psiquiátricos, desconsiderando a resolução do conselho de classe e mesmo os manuais diagnósticos que excluíram homossexualismo dentre as doenças mentais. Imaginemos um médico que usasse deste pleito para campanha política de candidatura em nome próprio a cargo público no poder legislativo e que, a despeito das determinações do conselho de medicina, decidisse ainda usar da ideia de “Medicina Cristã”, que não existe nem descrita na ciência médica e nem nas normativas da profissão médica, para se eleger vereador. Seria a Medicina conivente com tal profissional? Seria a cassação do título legítima?
Por fim, gostaria de dizer, sobre a insistência das difamações em relação ao meu rosto e nome próprio, que penso que talvez a repetição decorra do fato de eu ser, no caso, uma pessoa sem vergonha. No entanto, o sentido de minha sem-vergonhice tal como expresso pelas minhas opositoras não é o mesmo que eu mesma sustento para ao fato de eu ser, no caso, uma sem vergonha. Não me omitiria, por exemplo, de vir a público compartilhar o que penso a respeito da situação e o faço sem vergonha alguma. Entendo que tais pessoas buscam me recobrir de vergonha, visam me impor o jugo da vergonha. A vergonha, no entanto, é sempre relativa, sempre decorre do elo entre um sujeito e aquele que o vê como vergonhoso. No meu caso, não sinto vergonha alguma de ser menosprezada por pessoas das quais eu mesma discordo em princípios morais.
De minha parte, de acordo com meus próprios princípios, me sentiria equivocada moralmente caso precisasse difamar outra pessoa para me auto-afirmar superior moralmente. Percebam que não é isso que estou a fazer neste momento. Estou simplesmente me revelando como pessoa, um sujeito não redutível à objetificação e abuso instrumental que outras pessoas, das quais discordo em princípios, buscam realizar ao me construírem personagem. Eu não sou redutível a personagem dos projetos alheios, eu sou pessoa. Eu, como pessoa, não escolheria criar meme de comparação entre mim e outras pessoas das quais discordo e considero abusivo que assim façam comigo. Prefiro, portanto, vir a público explicitar meus pensamentos a respeito do dissenso. Assim como o meme, esta declaração também permanecerá pública na internet e as pessoas poderão tirar suas próprias conclusões sobre a situação. Por fim vale notar, ainda, que difamar alguém em campanha política é crime previsto no Código Eleitoral, sendo as penalidades aumentadas em casos de difamação em meio que favoreça a divulgação da ofensa.
*Professora de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB)