Cientistas políticos discutem paralelismos entre a crise política atual e a enfrentada por Juscelino Kubitschek
Por Lilian Milena, do Jornal GGN
A expressão "presidencialismo de coalizão" foi cunhada pelo cientista político Sérgio Abranches, em 1998, para definir o jogo político-institucional brasileiro. O presidente (poder Executivo), no Brasil, é eleito pelo voto universal e tem um mandato independente dos parlamentares eleitos para ocupar o Senado e a Câmara (poderes legislativos). Dessa forma, Legislativo e Executivo são poderes antagônicos. Para um presidente governar o Brasil, necessita fazer acordos com senadores e deputados de distintos partidos, realizando então o chamado "presidencialismo de coalizão".
A falta de habilidade do poder Executivo pode levar à fragilidade dos poderes do presidente da República e, consequentemente, maior poder de barganha do Congresso. É nesse ponto que estamos na história recente, com a presidente Dilma Rousseff enfraquecida frente a um congresso mais articulado nas mãos de seus respectivos presidentes, Eduardo Cunha, na Câmara dos Deputados, e Renan Calheiros, no Senado, ambos do PMDB.
Para o político e historiador Ronaldo Costa Couto, o erro do presidencialismo de coalizão hoje é a falta de um projeto nacional. “O tipo de coalizão que temos visto no Brasil é em torno da governabilidade e em torno de um projeto de poder, quando deveria ser em torno de um projeto nacional. Isso, talvez, é que tenha levado à fragmentação dos poderes”, disse durante a sua participação no programa de debates Brasilianas.org (TV Brasil).
Como exemplo, Costa Couto aponta a estrutura atual dos ministérios do governo federal, com representantes de diferentes partidos e com objetivos, muitas vezes, antagônicos à pauta do partido de quem governa o país. Esse complexo modo de governo não é, necessariamente, negativo, na visão do cientista social da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Roberto Grün, também convidado para o debate.
“Nosso tipo de presidencialismo faz parte da nossa cultura política. A população teve oportunidade de votar por duas vezes para mudar o sistema para o parlamentarismo - defendido pela elite - mas optou pelo presidencialismo. A noção de democracia brasileira coloca no centro do poder um presidente forte, mas a coalizão diminui a força do nosso presidente”, explicou.
O que poderia ser alterado, na visão do professor, seria, no máximo, a relação entre o presidente da República e o Congresso Nacional. “Por outro lado, isso também é muito complicado, porque o parlamento é uma câmara de compensação entre o poder central e as peculiaridade regionais”, adverte.
Apesar desse cenário, Grün compreende que a cultura política do presidencialismo de coalizão é capaz de responder a alguns problemas do país, mesmo que não de maneira ideal. Costa Couto arremata que o problema de governabilidade atual está mais ligado à falta de habilidades do Executivo do que ao sistema de coalizão em si. Como exemplo lembra a capacidade que Juscelino Kubitschek teve para governar o país durante um período conturbado da história, sob ameaças de golpe militar e acusações diárias de corrupção vindas da mídia.
A visão de Costa Couto não é, porém, compartilhada por todos os especialistas em relação de poderes na política, a exemplo do colunista do Jornal GGN, André Araújo. Sua teoria é de que o poder Executivo foi bastante enfraquecido na construção da Constituição Federal de 1988. “A Carta Magna foi uma espécie de contraponto ao regime militar, então ela procurou não construir um poder muito centralizado. Acontece que, com isso, acabou criando ilhas de poder. Assim, a fragmentação hoje [de poder] é imensa”, acrescentou.
André Araújo explica que o tamanho e a diversidade do território brasileiro seriam melhor geridos se o poder Executivo fosse mais centralizado. Para corroborar sua tese aponta para o “utilitarismo” norte-americano, como um modelo que deveria ser imitado - pelo menos em partes - por aqui.
“Nós temos um Ministério Público independente, por exemplo, isso não existe em lugar nenhum. O Ministério Público norte-americano é diretamente dependente da presidência da República, como uma extensão do Executivo. O mesmo acontece na França, onde o procurador é nomeado pelo presidente”. Araújo explica que não é lógico a independência do Ministério Público, pelo simples motivo de não ser administrado por figuras eleitas pelo povo e que, por conta das faculdades que possui, acabou se transformando em uma espécie de quarto poder.
Alguns casos emblemáticos nos Estados Unidos, lembrados por Araújo, chamariam atenção no Brasil. Na década de 1970 o presidente republicano Richard Nixon se viu obrigado a renunciar ao mandato, após o escândalo "Watergate", quando jornalistas do Washington Post desvendaram uma operação ilegal de espionagem do Partido Democrata, na época da corrida eleitoral que levou Nixon ao poder.
“Nixon renunciou em 9 de agosto de 1974 e, em menos de um mês, foi perdoado. Não teve processo judicial. O perdão ocorreu porque a Justiça concluiu que o julgamento iria perturbar o país, ou seja, sairia mais caro lhe julgar do que não julgar”. É importante destacar que todos os poderes ligados à justiça e investigação, nos Estados Unidos, são submetidos ao poder central do presidente. “Na chamada ordem executiva, nos Estados Unidos, o executivo pode praticamente tudo. É que os presidentes moderam esse uso [da força]”.
Outro caso lembrado por André Araújo ocorreu no último dia do mandato de Bill Clinton, em 2001. “[O então presidente norte-americano] concedeu perdão ao grande sonegador fiscal Marc Rich, com o argumento de que o encarceramento deste homem e a quebra de sua firma, a GlencoreXstrata, importante trading de petróleo, seria prejudicial ao país”.
Exemplos de JK para Dilma
Juscelino Kubitschek assumiu a presidência da república em 1956, sob estado de sítio. Desde o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, o Brasil vivia uma conjuntura política instável. Com 11 dias de mandato sofreu uma tentativa de golpe militar. O historiador Ronaldo Costa Couto, que também é autor de uma biografia sobre a vida de JK explica que o mineiro conseguiu manter os cinco anos de mandato graças à grande habilidade política. Veja alguns exemplos nos recortes históricos à seguir:
- Maio de 1956, a cidade do Rio de Janeiro, então capital da república, era ocupada por protestos nas ruas, com enfrentamento entre população e polícia, que deixava com saldo não apenas feridos, como mortos. A crise se deu por causa do aumento das passagens dos bondes e ônibus. Os estudantes foram às ruas, com o apoio de parte dos operários. “A cidade virou quase que um campo de guerra. Com Juscelino Kubitschek acuado no Palácio do Catete [sede do governo], preocupadíssimo, até porque há pouco tinha sofrido uma tentativa de golpe militar”, lembrou o político, historiador e biógrafo de JK.
Foi então que Juscelino teve uma ideia. Ao invés de mandar a polícia bater ainda mais nos manifestantes, pede ao professor Pascoal Carlos Magno, que tinha bom relacionamento com os estudantes, para entrar em contato com a direção da União Nacional dos Estudantes (UNE) e marcar uma reunião.
“Na sala da presidência, JK deixou a cadeira do presidente vaga. Quando os meninos chegaram, ele pediu ao presidente da UNE que se sentasse na cadeira dele, como presidente da República. O menino resistiu, mas JK insistiu: ‘É um pedido do presidente, atenda por favor’. O menino sentou-se, os demais também. Serviram água e cafezinho, então Juscelino disse para o presidente da UNE: ‘Vocês praticamente paralisaram a cidade. A situação é grave e meu próprio governo está em risco, porque o Brasil é um país instável! Vocês querem que eu perca o poder, saia da presidência e vocês sejam presos? Como você decide senhor presidente?”, perguntou JK se virando ao presidente da UNE.
Em resposta, o rapaz levantou-se da mesa, abraçou Kubitschek e interrompeu a manifestação. O historiador Ronaldo Costa Couto conta também que dias depois JK foi à UNE fazer uma visita. Na sede foi recebido com vaias às quais respondeu: "Feliz é o país onde os estudantes vaiam seu presidente da república e nada acontece".
- JK construiu Brasília sob “manchetes diárias de acusação de corrupção de seu governo”, recorda Costa Couto. Em resposta à imprensa, o então presidente da república apenas levou adiante o projeto e, para lidar com a opção dentro do Congresso nomeou Íris Mainberg, da UDN, à direção da Novacap - Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil).
A cooptação “do parlamentar inimigo”, por Juscelino, reduziu os ataques da oposição de que Brasília estava sendo construída sobre suspeita de corrupção.
Esses e outros exemplos da prática políticade JK de se relacionar com os diversos poderes fez com que Santiago Dantas, observado pelo professor Costa Couto como uma dos maiores intelectuais políticos do país, a dizer o seguinte: “Se alguém não quiser ser amigo de JK, que fique pelo menos a uma légua dele”.
Apesar dos paralelismos existentes entre a crise política vivida no governo JK e a crise vivida hoje, por Dilma Rousseff, como ataques diários da mídia acusando ações de corrupção e fortalecimento de grupos apoiadores de um golpe (impeachment no caso atual), o professor adverte que hoje a estrutura social é bastante diferente para querer tirar, da época de JK, uma lição que possa ser aprendida por Dilma.
“Os personagens tem alguma semelhança, mas o palco não tem nenhuma. Os paralelismos são mais enganosos, nos atrapalham mais do que nos ajudam a pensar a realidade atual. Somente na última eleição tivemos 120 milhões de votos, e vivemos hoje uma democracia de massa. É outro mundo”, pondera.
(Foto: Lula Marques/Fotos Públicas)