Deputadas se articulam para combater o cenário de desigualdade de gênero nas instâncias de poder do Parlamento; no último domingo, pela primeira vez na história, duas mulheres foram escolhidas para integrar, simultaneamente, a Mesa Diretora da Casa
Por Anna Beatriz Anjos
Na eleição da Câmara dos Deputados, realizada no último domingo (1), algo de inédito ocorreu. Pela primeira vez, duas mulheres foram escolhidas para integrar, simultaneamente, a Mesa Diretora da Casa. Com 456 votos, Mara Gabrilli (PSDB-SP) foi eleita para a 3ª Secretaria, e Luiza Erundina (PSB-SP), com 372 votos, foi eleita para a 3ª suplência.
A Mesa é formada por sete integrantes titulares (um presidente, dois vice-presidentes e quatro secretários) e quatro suplentes de secretário. No total, portanto, são onze cargos, dos quais apenas dois são ocupados por mulheres. Antes de Gabrilli e Erundina, somente Rose de Freitas (PMDB-ES) esteve entre eles – no biênio 2011-2012, foi a primeira deputada a ser eleita para um posto na Mesa, como 1ª vice-presidente.
Se considerarmos as últimas três legislaturas, os números indicam para uma profunda e crônica desigualdade de gêneros. Somente 8,7% das presidências de Comissões Permanentes foram ocupadas por mulheres; 2,5% das relatorias de medidas provisórias foram feitas por mulheres; e só duas deputadas presidiram comissões mistas para apreciação de medidas provisórias.
A ausência de mulheres não é tônica apenas nos espaços de poder e decisão, mas na Câmara como um todo. A legislatura que se iniciou no último dia 1º contará com maior número de deputadas do que a anterior: até dezembro de 2014, elas eram em 45; agora, são em 51. Ainda assim, representam, atualmente, apenas 9,9% de um total de 513 parlamentares. A dificuldade das mulheres no acesso às altas esferas políticas do Brasil o colocou na 129ª posição em um ranking de 189 países, produzido pela União Interparlamentar (UIP), que mede a participação feminina no Parlamento.
"Na nossa avaliação dos possíveis avanços do trabalho que realizamos no ano passado, chegamos à conclusão de que a pressão, as mudanças legais foram bem mais além do que a conquista do processo eleitoral. Nós quase que não crescemos, apesar da intensa mobilização que foi realizada com o Supremo Tribunal Eleitoral, Ministério Público Eleitoral, campanhas institucionais para a mudança da legislação", explica a deputada Jô Moraes (PCdoB-MG), coordenadora da bancada feminina da Câmara, que, para tentar reverter essa quadro, lançou, no final do ano passado, uma plataforma de atuação para esta legislatura.
O documento se baseia em quatro pilares. Um deles é a defesa rigorosa da manutenção das conquistas legislativas mais recentes das mulheres brasileiras. Essa é uma das maiores preocupações de Luiza Erundina, que se diz pessimista em relação à atuação da nova Câmara, cuja composição, de acordo com ela, é "mais conservadora, de pessoas que não têm compromisso com mudança, avanços e modernidade". "Acho que, em vez de se avançar, temo que se retroceda, que se comprometam conquistas importantes", argumenta. "Mas, ao mesmo tempo, mudanças, conquistas e preservação de direitos você consegue com força política, e essa força política a gente constrói na relação com a sociedade, não no âmbito das instituições".
Para fortalecer essa relação com a sociedade, Erundina pretende, como um dos pontos centrais de seu mandato, apertar os laços com movimentos sociais. "Há umas duas legislaturas, havia muito mais articulação entre a bancada [feminina] e os movimentos de mulheres, as entidades feministas. Isso reforçava a atuação da bancada, e a bancada se tornava canal, ferramenta a serviço das demandas desses movimentos", relembra.
Outro eixo de atuação da bancada feminina diz respeito ao estabelecimento de um novo padrão de ocupação dos cargos de poder da Casa, mais inclusivo e democrático, que suponha a representação de ambos os sexos. Para tanto, as deputadas focarão na apreciação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 590/06, de autoria de Erundina, que determina a presença obrigatória de parlamentares mulheres e homens nos órgãos de direção da Câmara e do Senado. Na avaliação da deputada, a matéria ainda não foi votada – embora já aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) –, por enfrentar resistência. "Em geral, a presidência e a Mesa Diretora da Câmara são constituídas por maioria de homens. Não interessa a eles ampliar a participação das mulheres nos espaços de poder da Casa, porque isso significa diminuir o poder deles", assinala.
Atuação
Segundo Jô Moraes, há a possibilidade das deputadas da bancada feminina votarem juntas, independente de seus partidos, quando os projetos forem relacionados à participação das mulheres na política e nos espaços de poder. Essa questão foi levantada em uma reunião em dezembro, mas agora é necessário rediscuti-la com as novas parlamentares que ingressaram.
Questionada sobre como a bancada lida com divergências políticas e religiosas que engloba, Moraes foi categórica. "Da coordenação da bancada, saem propostas que são de consenso para defesa conjunta. Do ponto de vista dos direitos políticos e da participação das mulheres no poder, não tem diferenças. Quanto às questões dos direitos sexuais e reprodutivos e da violência contra a mulher, em geral, cada deputada atua isoladamente. Nós não vamos impor uma maioria em torno das questões religiosas", afirma.
Quanto aos projetos prioritários para o grupo, por ora também não há uma definição, que deve ser alcançada ao longo das conversas com as deputadas eleitas em outubro. Moraes, entretanto, relembra as matérias mais defendidas pelo bloco recentemente. "Nos últimos anos, e principalmente no último, a bancada feminina colocou três prioridades: a PEC da Luiza Erundina; o projeto de lei da deputada Alice Portugal [PCdoB-BA] sobre relação de igualdade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho; e os projetos da CPMI da violência contra a mulher. Não conseguimos a PEC nem o PL, e dos treze projetos da CPMI, só aprovamos aqui na Câmara dois secundários. Por isso que colocamos como preocupação central uma pressão maior para a aprovação desses projetos", esclarece.
União
A deputada Ana Perugini (PT-SP) iniciou, nesta semana, sua atuação em Brasília. Ela, que habitou, até ano passado, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), é uma das novas integrantes da bancada feminina da Câmara. Para ela, a articulação das parlamentares é fundamental. "Espero que possamos nos reunir enquanto mulheres aqui no Parlamento para dar sustentação à nossa participação na política. Eu desconheço uma outra forma de transformação da sociedade que não seja organização para reivindicarmos e adquirirmos nossos direitos", declara.
Mara Gabrilli compartilha desse ponto de vista. Sua experiência como candidata a um cargo da Mesa Diretora, inclusive, diz muito sobre união e empoderamento de outras mulheres. "A hora em que apareceu meu nome como candidata à 3ª Secretaria, a mulherada toda se empolgou. As mulheres se unem, independente do partido, do estado, porque são mulheres", coloca.
Ela quer abrir um novo precedente nesse sentido. "É bem curioso como uma mulher inspira confiança principalmente para outra mulher. Como eu assumi esse cargo de 3ª secretária e não vou poder frequentar as comissões, estou dando andamento para os meus projetos para que tenham relatores. E já estou entregando nas mãos das mulheres do meu partido", conta. "Estou representando as mulheres nessa secretaria."
Erundina: "Uma mulher a mais nos espaços do poder é um homem a menos"
Uma das duas mulheres eleitas para compor a Mesa Diretora da Câmara no último domingo (1º), a deputada Luiza Erundina falou à Fórum sobre a articulação da bancada feminina para a próxima legislatura. Confira:
[caption id="attachment_58405" align="alignleft" width="300"] Mara Gabrilli e Luiza Erundina após eleição para a Mesa Diretora (Foto: Reprodução/Facebook)[/caption]
Fórum - Por que, na sua avaliação, o fortalecimento da bancada feminina e sua articulação para uma atuação mais específica nesta legislatura que se inicia são tão importantes?
Luiza Erundina - Essa questão tem sido sempre importante, porque a bancada ainda é pequena. Agora teve um aumento de mais 5 mulheres – éramos 46, agora somos 51 –, o que significa que essas novas mulheres não passaram pela experiência que as outras que se reelegeram passaram. Nós temos, neste momento, que integrar essas companheiras, inclusive com base nesta plataforma, e na construção de unidade entre nós. Nossa força e as poucas conquistas que temos se devem exatamente à articulação e à unidade que se constrói na Bancada, pelo menos em relação a determinadas questões.
Cada uma de nós, ou mais de uma de nós, é de diferentes partidos. Se já é difícil você construir unidade na bancada de um único partido, imagina construir unidade entre parlamentares de diferentes partidos. Mas as questões que interessam, como a de gênero, facilitam a construção da unidade, e isso acaba sendo um diferencial em relação inclusive às outras bancadas, que embora sejam mais numerosas, não têm atuado de forma unitária. A individualidade de cada mandato tem se exposto, e isso em todas as bancadas.
Na Bancada Feminina, temos conseguido construir essa unidade em torno de algumas propostas, de alguns projetos, e isso tem feito diferença e tem correspondido à condição para se conseguir algumas conquistas. Exemplo é a existência de uma Secretaria da Mulher, que no fundo substituiu a Coordenação da Mulher, só que agora com muito mais poder – participa das reuniões da Mesa Diretora, participa inclusive do espaço da tribuna, igual à qualquer líder. A secretária da Mulher hoje, na Câmara, tem direito a usar a palavra como qualquer líder.
São conquistas que a Bancada Feminina vem conseguindo ao longo dos anos por esse esforço de construção de unidade entre nós, apesar das diferenças. Essa é uma preocupação e uma estratégia que nós vamos adotar também nesta legislatura. Evidentemente, integrando as companheiras que estão chegando agora. Os temas são aqueles que sempre nortearam a nossa atuação: buscar mais espaço de poder para as mulheres; os direitos das mulheres em relação à questão de gênero ou então da saúde; o combate à violência, que é uma questão grave; a emancipação da mulher; direitos iguais na condição de trabalhadoras, não só para as parlamentares.
Nós temos procurado – e essa é uma questão em que vou me empenhar – uma maior articulação com os movimentos de mulheres, que já foi mais forte no passado. Há umas duas legislaturas, havia muito mais articulação entre a Bancada e os movimentos de mulheres, as entidades feministas. Isso reforçava a atuação da Bancada, e a Bancada se tornava canal, ferramenta a serviço das demandas desses movimentos. Isso, por exemplo, é um questão que vou retomar para que faça parte da estratégia, da agenda e da preocupação da Bancada. Exatamente articular-se com os movimentos de mulheres e atuar junto a elas. Por exemplo, quando da definição anual do Orçamento, se fazer uma ação articulada com as entidades para conseguir recursos de maior vulto destinados a programas que interessem diretamente às mulheres.
Fórum - Segundo a plataforma de atuação, uma das prioridades da bancada é fazer com que a PEC 590/06, de autoria da senhora, seja apreciada. Por que acha que isso não ocorreu até o momento?
Erundina - Exatamente pela correlação de forças desfavorável a nós. Em geral, a presidência e a Mesa Diretora da Câmara são constituídas por maioria de homens. Não interessa a eles ampliar a participação das mulheres nos espaços de poder da Casa, porque isso significa diminuir o poder deles, embora as proporções sejam extremamente díspares – agora somos 10%, com mais 5 mulheres que entram na Bancada. Mas temos sido menos de 9% esse tempo todo. É uma proposta de 2006, já passou por uma comissão especial, foi aprovada por unanimidade por ela, e o presidente da Câmara e o colégio de líderes não pautam essa matéria.
As poucas vezes em que veio para pauta, ainda na época de Michel Temer como presidente da Casa, ela não foi votada, sofre muita resistência. A correlação de forças com uma hegemonia absoluta dos homens parlamentares em relação às mulheres explica o fato de a gente não conseguir garantir esse direito. Por exemplo, estou na Mesa Diretora como terceira suplente. De toda a bancada, só tem eu e a Mara Grabrilli, que está em uma secretaria. Ela é um cargo efetivo, eu sou suplente. Isso exatamante porque não somos vistas pela maioria de homens como tendo direito, sobretudo aos espaços de poder. Afinal, são eles que nos dão poder para inclusive garantir outros direitos. Por exemplo, se nós tivéssemos mais poder, as políticas públicas de interesse das mulheres com certeza seriam melhor contempladas do que têm sido.
Portanto, é uma luta permanente, muito desigual, que exige uma perseverança, uma persistência, uma determinação que não nos tem faltado, mas mesmo assim as conquistas são muito pequenas. Eu não gostaria de estar na Mesa, mesmo como suplemente. Preferia que isso tivesse vindo por indicação da Bancada Feminina, e não como representante de uma bancada – nós conseguimos que uma mulher da nossa bancada ocupasse aquela vaga pela proporcionalidade que cabe ao partido. E a maioria é de homens também – somos seis mulheres em 34 deputados –, e conseguimos a adesão de todos. Foi unânime a indicação do meu nome para ocupar essa vaga dentro do proporcionalidade que cabe ao PSB.
Eu, como mulher, as mulheres do PSB e as mulheres da Bancada Feminina, no geral, estarão representadas no meu mandato na Mesa, como terceira suplemente. Já a deputada Mara está em uma secretaria, tem muito mais poder. Então, nossos espaços são conquistados a duras penas e desproporcionalmente ao que é ocupado pela imensa maioria de homens. Isso nos leva a questionar o discurso que se ouve sobretudo nas datas que têm relação com nós mulheres – 8 de março e outras. Já denunciei isso na tribuna. Não adianta fazer discurso pela igualdade de gênero, porque na prática eles não contribuem para isso. Uma mulher a mais nos espaços do poder é um homem a menos, embora eles sejam, hoje, 90%.
Fórum – Com a eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara, e diante do atual Congresso, considerado o mais conservador desde a ditadura militar, qual a perspectiva de avanço nos direitos das mulheres nos próximos anos?
Erundina – Depende do quanto a gente conseguir mobilizar a sociedade, os movimentos de mulheres e feministas, até por conta dessa condição desfavorável da correlação de forças da Casa. Considero que essa é uma legislatura com uma composição mais conservadora, de pessoas que não têm compromisso com mudança, avanços e modernidade. Nesse sentido, sou pessimista; acho que, em vez de se avançar, temo que se retroceda, que se comprometam conquistas importantes, mas, ao mesmo tempo, mudanças, conquistas e preservação de direitos você consegue com força política, e essa força política a gente constrói na relação com a sociedade, não no âmbito das instituições, porque elas são muito bitoladas, não têm uma dinâmica transformadora – muito pelo contrário.
Por isso que afirmo que pelo menos o meu empenho, minha dedicação, minha atuação na Bancada Feminina terá como foco essa articulação com a sociedade civil organizada, sobretudo a relação com as entidades de mulheres. Com isso, a gente pode compensar as desvantagens, os retrocessos e o perfil da atual legislatura, e da atua direção da Casa. |
Atualizada na segunda-feira (9), às 15h
(Foto: Lucio Bernardo Jr./Câmara dos Deputados)