A revogação do decreto que fechava 93 escolas comprova que ocupações são um método político legítimo; jornais que falaram em “invasões” também perderam
Por Alceu Luís Castilho, no Outras Palavras
O governador Geraldo Alckmin levou um xeque-mate já na primeira semana de ocupações em São Paulo. E demorou a perceber. Mais até do que a presidente Dilma Rousseff levou para perceber a dimensão da catástrofe em Mariana (MG). Os estudantes fizeram uma jogada de mestre. Ocupar as escolas que seriam fechadas levou ao governo estadual a imagem de truculento – que só seria agravada em caso de reintegrações de posse.
Foi uma alternativa aos protestos de rua, precocemente abortados pelos black blocs. Estes foram isolados pelos secundaristas, em frente do Palácio dos Bandeirantes, enquanto tentavam derrubar as grades. O método violento servia para o governo – e para a opinião pública – desqualificar o movimento. Mas a nova geração de adolescentes paulistanos mostrou-se mais madura que os militantes tradicionais. Não desistiu. Reuniu-se em assembleias e conquistou territórios.
E os territórios eram as próprias escolas. Inicialmente, as que seriam fechadas. O que levou a criminalização tradicional feita pela imprensa corporativa a soar ridícula: esta chegou a noticiar que os estudantes “invadiam escolas” – as próprias escolas. E mais: escolas que seriam fechadas. Como repetir que eles não queriam ter aulas, se era pelas escolas que eles estavam brigando? Geraldo Alckmin ficou sem saber o que fazer. Parecia apenas torcer para que o movimento não se alastrasse.
E se alastrou. Dobrou a meta. Até esta sexta-feira, quando o governador desistiu da “reorganização” e defenestrou o secretário de Educação, eram 196 escolas ocupadas, mais que o dobro das 93 escolas que ele queria fechar. Foi ficando tão desigual que parecia que os adolescentes jogavam um jogo de xadrez, como velhos enxadristas, enquanto Alckmin se aplicava ferrenhamente a um jogo de damas – binário. Esperando que alguma peça engolisse de uma vez todos os adversários. Essa peça não existia.
Como toda batalha política, trata-se também de uma batalha de comunicação. E quem costuma defender o governo estadual e sua polícia truculenta viu-se, de repente, tão derrotado quanto o governador. O milagre de multiplicação da palavra “invasões” nos títulos foi sendo progressivamente percebido como algo extraterrestre. Só nossos jornalões mesmo para manter criminalizado o método político das ocupações – como se fossem seres perigosíssimos a ameaçar pessoas ou o patrimônio público. Não colou.
O jornalismo morreu; viva o jornalismo
É por isso que a vitória histórica dos estudantes significa também uma vitória contra um certo modo de se fazer jornalismo político. Ainda que um jornalismo político disfarçado, escondido em nome de um noticiário “isento” que não é mais percebido como tal. O Datafolha desta semana – que mostrou a queda da popularidade de Alckmin e o apoio popular às ocupações – mostrou que também a imprensa foi uma grande derrotada. E, por isso, precisa se repensar.
As implicações são muitas. Mas vale insistir na carga política de se chamar ocupações de “invasões”, como escrevi no domingo (29/11): “Invasões” x “Ocupações”. Por um curso intensivo para jornalistas. Se ficou demonstrado (com o aval do Judiciário) que as ocupações são legítimas, como continuar perpetuando a criminalização discursiva – ela que antecede a repressão – nos títulos sobre sem-teto, sem-terra, estudantes universitários?
Enquanto isso, o jogo de xadrez dos secundaristas tratava a comunicação de forma contemporânea. Tomando a cidade como uma das peças. Ocupar a EE Fernão Dias Paes, em Pinheiros, significou trazer para o centro expandido, mais visível, uma disputa que talvez ficasse amortecida nas periferias – estas que costumam ser criminalizadas sem que a classe média paulistana se sinta culpada. Os estudantes catapultaram, a partir dali, suas demandas: Algo acontece em São Paulo, na #OcupaFernão.
E se comunicaram. Entre si, por meio de grupos no WhatsApp, com a ajuda das redes sociais, da imprensa contra-hegemônica (pronta a noticiar abusos do governo e da polícia), e sabendo usar a própria cobertura da grande imprensa. Esta não conseguiria distorcer os fatos o tempo todo, por muito tempo – e se viu obrigada a ser testemunha da maior manifestação urbana em rede de que se tem notícia no século 21, neste país que se acostumou a enxergar as cidades como apenas algo pulverizado.
Uma nova cidade
A cidade de São Paulo acaba de ser reinventada. Estudantes dos quatro cantos da cidade ocupando escolas com política, arte, cultura e capacidade de autogestão mostraram a todo o país – e não somente a esse governador subitamente letárgico – que existem outras formas de se pensar o urbano, não apenas como uma sucessão de prédios isolados. Mas em rede, de forma que prédios escolares das zonas sul, leste, norte, oeste se tornem, todos eles, centrais.
A cidade tem um novo Centro. Ele está em todas as partes e tem nos estudantes secundaristas a assinatura de sua alforria. Acaba de ser inaugurada em São Paulo a reterritorialização da luta política. As ruas plenamente liberadas para que a direita exponha sua despolitização (ao ponto de tirar selfies com PMs) não costumam ser liberadas para quem tenha uma pauta de reivindicações à esquerda. Por isso os estudantes buscaram as ruas virtuais e se entrincheiraram; e as trincheiras eram um território incontestável: as escolas. Públicas.
(Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)