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Para Igor Fuser, professor da Universidade Federal do ABC, situação é de impasse: forças progressistas têm impulso político para vencer eleições, mas não para aprofundar transformações sociais
Por Diego Sartorato, da Rede Brasil Atual
[caption id="attachment_43454" align="alignleft" width="300"] “Nunca vi nem na Globo nem nos jornais brasileiros uma única notícia positiva sobre a Venezuela. Uma única. Será que em 15 anos de chavismo não aconteceu nada positivo? Cadê o outro lado?", disse o jornalista e professor de relações internacionais Igor Fuser no programa Entre Aspas, da Globo News (Foto: Reprodução)[/caption]
O jornalista Igor Fuser, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), ganhou notoriedade nas redes sociais há cerca de duas semanas, após participação em programa de debates da emissora de TV fechada Globo News sobre a situação na Venezuela: a uma constrangida apresentadora, denunciou ao vivo o viés antichavista do noticiário da TV Globo e dos demais veículos tradicionais da imprensa brasileira e ganhou os perfis à esquerda no Facebook e no Twitter.
Fuser volta a falar da ação da mídia tradicional na perpetuação de uma sociedade violenta e excludente, dos acúmulos dos governos progressistas latino-americanos na última década e do momento da luta de classes no continente, que não é propício às grandes mudanças. "No conjunto da região, há um certo momento de impasse: o campo progressista não consegue mais se expandir, mas, ao mesmo tempo, consegue reunir força suficiente para permanecer no poder. Ou seja, não é um momento de ofensiva das transformações na América Latina, não é momento de revolução ou de reformas", resume, destacando a importância que líderes carismáticos como Luiz Inácio Lula da Silva e Hugo Chávez tiveram na década passada para unificar as forças progressistas e promover mudanças de graus variados.
Fuser, no entanto, aponta que o contexto seria o mesmo caso os governantes que deram início à sucessão de vitórias eleitorais da esquerda latino-americana seguissem no poder. "O fato de Lula não ser mais o presidente, de Chávez ter morrido, de a Cristina Kirchner não poder mais se reeleger, é óbvio que faz uma diferença, mas não é o fator decisivo. Tem algo que a gente precisa levar em conta que é o seguinte: as forças conservadoras não têm necessidade de grandes líderes", pondera. O professor prevê ainda maior interferência dos Estados Unidos em situações de fragilidade política nos próximos anos, conforme surgirem oportunidades de levar a América Latina de volta para o seu círculo direto de influência.
Confira abaixo a íntegra da entrevista.
Como o senhor vê o acúmulo da última década de governos mais à esquerda na maioria dos países da América do Sul?
A América Latina, especialmente a América do Sul, vive um novo ciclo histórico desde o final da década de 1990. A eleição de Hugo Chávez em dezembro de 1998 é o marco inaugural desse ciclo, que seguiu com a eleição de Néstor Kirchner na Argentina, do Lula no Brasil, da Frente Ampla no Uruguai, primeiro com o Tabaré Vázquez e depois com o Pepe Mujica, de Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador; tivemos também a experiência infelizmente frustrada no Praguai com o governo de Fernando Lugo. Fora outros governos de esquerda, como em Cuba, Nicarágua. Essa mudança teve uma importância histórica porque é a primeira vez que a dominação estrangeira, particularmente a norte-americana, é desafiada de forma articulada, conjunta, em diversos países.
Em reação ao fracasso do modelo neoliberal na década de 1990 se instala uma leva de governos progressistas que, apesar de grandes diferenças entre si, e não poderia ser de outra forma, porque as culturas são muito diferentes, mas uma leva de governos que trabalham em um sentido comum de prioridade à resolução dos problemas sociais, do atendimento às demandas da maioria desfavorecida da população, a busca por maior autonomia do Estado para poder levar adiante políticas públicas em favor do povo e uma política externa, em cada um desses países, independente. Procurando romper com a tradicional submissão da diplomacia latino-americana em relação aos Estados Unidos, e, assim, governos também comprometidos com a integração nacional por meio da Unasul, da Celac, do Mercosul...
Esses governos estão muito fortes hoje. No Equador, Correa foi reeleito com uma maioria estrondosa. Teremos eleições este ano na Bolívia, e Evo Morales é disparado o favorito. Outros países da região enfrentam impasses políticos, o que é perfeitamente normal. Não se espera que esses governos vivam às mil maravilhas, por conta do contexto de crise internacional e por conta de seus próprios desafios internos. Alguns governos, como no caso da Argentina e da Venezuela, enfrentam dificuldades econômicas, que têm uma relação muito estreita com a crise econômica mundial, e que têm a ver também com problemas internos, da própria dinâmica da luta social nesses países, além das deficiências desses governos, que estão longe de serem perfeitos.
Essas dificuldades maiores em alguns países, menores em outros, não têm nenhuma relação com a realização de protestos de diferentes signos políticos e de diferentes características em alguns desses países. Protestos contra governos, em qualquer lugar do mundo, são uma situação normal. Agora, existe muito pouco em comum entre períodos de mais protestos no Brasil e os que ocorreram recentemente na Venezuela, movimentos absolutamente diferentes. E essas manifestações na América do Sul não têm absolutamente nada a ver com o que aconteceu na Ucrânia, que, por sua vez, nada teve a ver com o que acontece na Europa, contra os efeitos da crise, ou nos Estados Unidos, como o Occupy Wall Street.
É necessário observar, em cada país, quem são os manifestantes, quais são as demandas que eles estão apresentando, qual o contexto político interno, ou, eventualmente, as conexões internacionais, que existem em alguns casos, e em outros, não. Mesmo a chamada Primavera Árabe, em diferentes países do mundo árabe, também teve características diferentes. Então temos de ter cuidado quando falamos sobre os protestos. Quer dizer, “a juventude do mundo está protestando contra tudo que está errado”, mas não é bem assim. Você tem de olhar mais de perto para compreender o que está acontecendo.
Mas existe um grande esforço para que esses movimentos sejam interpretados como uma coisa só.
Depende muito. No caso da América do Sul, Venezuela e Brasil têm em comum seus governos progressistas, mas os protestos que ocorreram no Brasil, em junho, eram protestos progressistas também, em sua origem. Seu pleito principal era a melhoria das condições do transporte público a partir da oposição ao aumento da passagem em São Paulo. Esses protestos se ampliaram, se misturaram com outras pautas, outras demandas e outros atores. Havia protestos contra a corrupção, o protesto dos professores do Rio de Janeiro, alguns grupos que discordam da realização da Copa do Mundo também participaram. Então é indefinido.
Na Venezuela, o que existe é uma articulação com objetivo claramente golpista, liderada por políticos de extrema direita, um movimento que não tem nenhuma reivindicação específica, ao contrário do Brasil, onde sobram demandas. Lá, a única reivindicação é o fim do governo; um governo constitucional, legítimo e que foi eleito há menos de um ano e que conta com a aprovação da maioria da população. Acabou de se sair muito bem, inclusive, nas eleições municipais, que a oposição apresentou como plebiscito da vontade da Venezuela. Se você considerar assim, foi um plebiscito que desfavoreceu a oposição, ao fim.
A mídia internacional, articulada com a mídia das grandes empresas brasileiras, aquelas seis ou sete empresas que dominam a comunicação no Brasil, tenta criar uma conexão, mas a única coisa em comum que existe é a presença da juventude, o que não é de se espantar porque a juventude é a população mais disponível para os protestos, de qualquer tipo.
Qual a perspectiva do senhor para os próximos anos para o enfrentamento entre os governos progressistas e as oposições?
Esses governos se chocam contra duas forças: as forças internas, as elites que historicamente exercem o poder político e controlam a economia, se apropriam da maior parte da riqueza nacional de cada um dos países; e, num plano mais amplo, se chocam com interesses dos Estados Unidos e com os países que se articulam com os Estados Unidos e que alguns autores chamam de “capitalismo global”, que inclui a Europa ocidental e o Japão.
Esse núcleo central percebe o surgimento de governos progressistas na América Latina como um desafio, eles são vistos como inimigos; em alguns casos, como inimigos mortais, como é a Venezuela, ou um inimigo com quem você pode dialogar, como é o caso do Brasil. Os Estados Unidos têm intensificado a luta pela sua retomada de posição como hegemonia global. O que aconteceu agora na Ucrânia, à parte dos problemas e contradições internos que estavam em jogo, mas a condição geopolítica do que aconteceu foi a Rússia de um lado e os Estados Unidos com apoio da Europa de outro. Precisavam derrubar a hegemonia da Rússia na Ucrânia, o que conseguiram, pelo menos neste primeiro momento.
Na América Latina já tivemos sinais dessa tática, com o golpe de estado em Honduras, no Paraguai também. Podemos prever, portanto, uma presença cada vez maior dos Estados Unidos em apoio às forças de oposição conservadora em cada um desses países. É uma luta que tende a ficar mais intensa, até porque o ciclo progressista que teve início na década passada está em um momento de impasse, já não é mais o avanço espetacular de antes, com uma vitória eleitoral atrás da outra.
A energia progressista não se esgotou, haja visto o que aconteceu agora no Chile com a vitória da Michelle Bachelet, que retorna ao governo com um perfil mais à esquerda do que ela teve no passado, quando também governou o Chile. Mas, no conjunto da região, há um certo momento de impasse: o campo progressista não consegue mais se expandir, mas, ao mesmo tempo, consegue reunir força suficiente para permanecer no poder. Ou seja, não é um momento de ofensiva das transformações na América Latina, não é momento de revolução ou de reformas.
Esse momento de impasse é o que, de forma geral, sustenta a crítica pela comparação direta entre os atuais presidentes e seus antecessores, como quando dizem 'mas a Dilma não é igual ao Lula', ou 'o Maduro não tem a liderança do Chávez'?
Na verdade, esse impasse ocorreria também se o Chávez continuasse vivo como presidente da Venezuela ou se o Lula ainda fosse presidente do Brasil. Esses líderes ganharam a importância que têm não só por seus próprios métodos, mas porque eles representavam uma força popular que existia independentemente deles próprios. O fato de o Lula não ser mais o presidente, do Chávez ter morrido, da Cristina Kirchner não poder mais se reeleger, é óbvio que faz uma diferença, mas não é o fator decisivo. Tem algo que a gente precisa levar em conta que é o seguinte: as forças conservadoras não têm necessidade de grandes líderes. Nos Estados Unidos, na França... quem é o presidente da França? É um sujeito completamente inexpressivo. Quem é o primeiro-ministro da Espanha? A gente não consegue nem lembrar o nome dele. Da Itália, aí que não dá pra lembrar mesmo; da Inglaterra, uma nulidade, um sujeito que é um zero.
A Alemanha é que tem uma liderança mais carismática, digamos assim. Mas eles não precisam. Eles têm o poder, são os donos da economia, são a classe dominante, e têm em torno deles o consenso dos grupos dominantes do capitalismo, os donos das finanças, das indústrias, e assim por diante. Agora, nós é que precisamos de líder, nós estamos por baixo, tentando virar o jogo em favor da grande maioria da população dos nossos países, do nosso continente, e do mundo. Precisamos muito de pessoas que desempenhem o papel do Lula, de Fidel Castro... Não surge assim do dia para a noite. Antes do Chávez, na Venezuela, você teve o Simón Bolívar, 200 anos antes. Entre um e outro, não teve ninguém com estatura comparável.
O líder é aquele que é capaz de dizer aquilo que as pessoas nem sabem que querem, mas querem, que consegue unificar as diferenças e as vontades, e consegue unificar as forças progressistas, o que não é fácil. Porque quando você quer manter as coisas como estão, o programa já está dado, mas, quando você quer mudar, um quer mudar de um jeito, outro quer mudar de outro, grupos querem as mesmas mudanças mas sugerem caminhos diferentes, quer dizer... O líder é o que chega e diz: “Vamos por aqui”. A importância dessas figuras, da Cristina na Argentina, do Evo na Bolívia, é gigantesca. Essa capacidade, esse carisma, não se transfere. Embora o Maduro esteja demonstrando competência política, ele não é o Chávez. E não vai aparecer outro, então essa é uma debilidade do nosso lado, mas não é uma debilidade fatal. O que levou a Dilma à presidência, e antes dela o Lula, é uma energia que continua existindo.
Até que ponto o acirramento da disputa entre grupos progressistas e conservadores se traduz em maior violência física entre as classes sociais?
A gente tem de estabelecer aí uma diferença. No caso da Venezuela, existe um ódio muito forte, muito intenso, da elite venezuelana que se sente ameaçada pelas mudanças sociais que acontecem no país, e que se sentem muito ameaçados pelo que significa simbolicamente presidentes como Chávez, Maduro, e as massas de pessoas que se sentem pobres e empoderadas com as conquistas desses governos. São pessoas que sempre foram desprezadas pela elite local e que afirmam sua cidadania nesse novo cenário.
Há um ódio muito grande também por conta da impotência, já que estão há 15 anos tentando derrubar o governo progressista venezuelano, sem sucesso. Isso explica atitudes tão absurdas e agressivas como colocar arame farpado nas ruas para derrubar os motoqueiros, de classe social mais pobre. Isso é diferente de uma violência social que existe de forma disseminada em países muito desiguais e em países onde há uma violência endêmica na sociedade que se expressa na criminalidade, na brutalidade da polícia, na corrupção, no uso generalizado de drogas, no individualismo, e assim por diante. São fenômenos antissociais que proliferam em países como o Brasil, também na Venezuela, no México.
Tem a ver não só com a pobreza, mas com a incapacidade do Estado de lidar com essa realidade. O episódio do Rio de Janeiro, isso de amarrar um suspeito no poste, quem faz são também pessoas do povo. Na periferia brasileira, tem uma situação meio que de todos contra todos. O outro ser humano é visto, a princípio, como uma pessoa perigosa, pela dificuldade que o estado tem de garantir segurança, e por causa de uma tensão permanente muito relacionada com a desigualdade social. Esses fenômenos antissociais se misturam, como, por exemplo, a rejeição à presença de jovens da periferia nos shoppings, o ódio expressado na forma dos black blocs; e discordo dos que dizem que os black blocs são fascistas, ou coisa que o valha.
Acho que há necessidade de uma análise mais serena do fenômeno dos black blocs. Morreu o cinegrafista no Rio de Janeiro, mas quem mais corre risco são os próximos black blocs, que, de uma forma temerária, meio maluca, se opõem às forças policiais. O fenômeno tem a ver com a violência policial, pela oportunidade de bater também na polícia. E tem a ver com a violência que é própria do capitalismo mesmo, a gente olha muito para os fenômenos de violência, como quando alguém queima um ônibus ou assalto um banco, e não vê a violência no mundo do trabalho, por exemplo, quando a funcionária do McDonald's, que trabalha 12 horas por dia para ganhar R$ 900, mas não consegue estudar porque fica muito cansada.
Isso é uma violência, e está aí o tempo todo. As pessoas presas no trânsito, sem conseguir chegar em casa. A ostentação e o luxo absurdos das classes privilegiadas do Brasil. Os carros que você vê desfilando nas ruas, enquanto o motoboy está parado no farol. São violências que não são explicitamente violências, mas é vivido por suas vítimas como algo tão traumático e doloroso quanto. É muita raiva que as pessoas têm, e isso pode se expressar tanto como black blocs ou no sujeito que despeja sua fúria sobre um infeliz que cometeu um delito, ou outros que se revoltam contra a morte de um morador da favela e queimam um ônibus, deixando, sim, a população com um ônibus a menos, mas é o único símbolo presente da instituição.
Hoje, você entra nas redes sociais e é uma coisa impressionante como as redes sociais são usadas como instrumentos de agressão. Qualquer notícia que cai nas redes sociais, qualquer comentário, a reação não é o debate, são monólogos violentos. Usa para agredir o outro, o que pensa diferente. Então esse espaço que seria de cidadania, uma praça pública virtual, vira uma pancadaria. Eu nem opino mais, porque qualquer coisa que eu disser já vai ter alguém me xingando. Eu não gosto disso. Vejo como um efeito da desigualdade que segue se aprofundando.
Vínhamos de um momento em que as redes sociais eram celebradas como instrumento de democratização da comunicação. Na sua opinião, as redes sociais estão sendo mais utilizadas como instrumento de desinformação, como vemos na Venezuela?
Acho que havia uma ilusão, em relação à internet, que é a seguinte: o controle dos meios de informação por algumas empresas muito poderosas surge e se instala pelo fato de que essas empresas tinham acesso a certos instrumentos completamente fora do alcance do cidadão comum, como uma impressora de milhões de dólares, ou uma concessão de rádio e televisão. São meios muito restritos, mas com a internet eu posso fazer meu boletim, postar na internet e teoricamente ele está acessível para milhões de pessoas sem custar quase nada. Essa era a ideia, mas, na prática, é o seguinte: quem vai acessar meu boletim, se ninguém me conhece? Então quem consome informação na internet consome informação das mesmas empresas de sempre, reproduzidas em rede, em cadeia, por milhares e milhares de atores, que por sua vez só têm acesso a essa fonte de informação.
Então esse potencial libertário da internet fica muito prejudicado, porque na base, da captação e processamento de informação, o capital simbólico continua nas mãos da Globo, do Estadão, da Abril, que é o que a massa de pessoas menos informada tem como referência na selva que é a internet, onde encontra-se de tudo. A internet não significou a democratização da informação, é um espaço ainda a ser disputado, e as empresas estão em melhores condições para essa disputa. Não significa que não mudou nada, temos condições de fazer nossa guerra de guerrilha, não estamos mais em um mato sem cachorro como antes. Agora, podemos disputar. E, pelo menos, certas mentiras não podem mais ser publicadas impunemente sem ter uma contraposição, então neste momento em que vivemos, é mais difícil impor uma mentira.
*Foto de capa: Site da Presidência da Nação Argentina