Políticos-celebridades e eleitores-seguidores: pane da democracia – Por Raphael Fagundes
A utopia de que a internet iria democratizar o debate político não aconteceu, até porque existe uma internet para cada um
“Num exercício de pensamento experimental, podemos imaginar o que seria o mundo capitalista se, de repente, desaparecessem todas as pessoas a que chamamos celebridades ou famosos: toda uma indústria desapareceria”.[1]
Já faz um tempo em que a política está se submetendo aos padrões midiáticos para poder se aproximar do povo. Hoje, um político deve se apresentar como uma celebridade e ter um número alto de seguidores nas redes sociais para, assim, pensar em disputar um cargo. Em tese, seguidores são votos em potencial. Eleitores transformaram-se em seguidores!
Antes das redes sociais, a política já se submetia às regras da mídia. O estudo de Thomas Meyer e Lew Hinchman mostra a consolidação desse processo na segunda metade do século passado. São categóricos ao afirmar que “no nível da mídia, a tendência é que a política seja apresentada de um modo cada vez mais tosco, mais trivial e mais personalista, em consonância com as regras que governam a produção de espetáculos de entretenimento”.[2]
Isso ainda estava relacionado à TV. Com a internet e as redes sociais, a apresentação tosca de ideias políticas se intensificou, até porque a velocidade que tais mídias exigem tornou-se um óbice para a formulação de um pensamento político aprofundado.
O político precisa de fãs, tal como uma celebridade. Luís Mauro Sá Martino e Ângela Cristina Salgueiro Marques destacam um fenômeno curioso dos tempos atuais: “Há uma curiosa semelhança, indicada por vários pesquisadores e pesquisadoras, entre fãs e eleitores. Embora o conteúdo certamente seja diferente, há pontos muito próximos entre a militância política e o engajamento dos fãs - o mais relevante talvez seja a paixão que move qualquer uma dessas duas formas de relação entre pessoas, grupos e objetos [...] Quando a política é mediada e o político se torna uma celebridade, o eleitor se torna um fã”.[3]
A invenção da política-celebridade
Essa realidade é consequência da necessidade de salvar a tecnoestrutura montada pelo capitalismo desde a Segunda Guerra Mundial. De acordo com o economista Yanis Varoufakis, após ter montado uma tecnoestrutura que promoveu o enriquecimento dos EUA durante a guerra, como seria possível mantê-la com o término do conflito? Engenheiros e economistas foram convocados para realizar essa tarefa. “Se o governo deixasse de garantir vendas e preços, onde eles (os que lucraram com a tecnoestrutura montada na guerra) encontrariam clientes o bastante, prontos e dispostos a pagar por todas as barras de chocolate, carros e máquinas de lavar que eles planejavam fabricar usando a capacidade até então dedicada a produzir munição, metralhadoras e lança-chamas?”.[4]
Para tal foi fundado “um novo mercado para nossa atenção sobre uma base de emoções puras”.[5] É nesse processo que entram o rádio, a TV e as celebridades que negociam as emoções, desejos e sonhos para, assim, vender toda uma parafernália que mantém a estrutura lucrativa do pós-guerra.
As celebridades atraem multidões através do “poder de tocar e sensibilizar a experiência das pessoas” mediante três processos. “Um sujeito pode projetar seus sonhos de riqueza na experiência dos famosos (projeção); ou reconhecer uma situação vivida por uma celebridade como semelhante à sua (identificação); ou, ainda, marcar o afastamento de sua vida em relação à conduta de um ídolo, ao denunciar seus fracassos e deslizes (contraidentificação)”.[6]
A ideologia neoliberal defendida por celebridades coaches vem reunindo sujeitos que sonham em se tornar milionários tornando-se empreendedores de si mesmos. Muitos são inclusive contrários a projetos populares, já que acreditam que se tornarão ricos um dia pelo próprio esforço. Para além desta questão de projeção, há a identificação e contraidentificação nessa estrutura polarizada construída pela própria lógica midiática, já que é parte de sua programação ficcional (filmes, séries e novelas) o agenciamento da estrutura mítica de conflito entre o bem e o mal, induzindo os seus telespectadores a raciocinar polarizadamente.[7] Assim, nos identificamos com um político e odiamos outro. É a mesma lógica das celebridades.
Política pós-web
Vivemos em uma era pós-web que “surge depois da criação das redes sociais e de seu uso maciço por alguns candidatos e políticos”. E, assim como as celebridades, “os candidatos interagem com os cidadãos principalmente nas mídias sociais”.[8] As redes sociais se tornaram uma arena de disputa por capital político constrangendo os candidatos a participarem, “a abrirem espaço para rebater críticas e ouvirem sugestões, ao mesmo tempo, claro, em que podem consolidar uma boa fama”.[9] As estratégias de comunicação são similares. Não é à toa que vemos não apenas políticos agindo como celebridades, mas celebridades se candidatando a cargos na política.
De um lado, as celebridades foram fundamentais para fortalecer a importância das redes sociais, “já que muitas pessoas vão integrar a rede para acompanhar as postagens de seus ídolos”. Por outro lado, explica Juliana Nascimento Torezani, “os usuários presentes no Facebook, Twitter e Instagram são preciosos ao mercado e à política, já que, por meio de tais espaços, se pode comunicar de maneira rápida com um grande número de pessoas, tratando de ideias, comércio, cultura, legislação, economia e sociedade”.[10]
A democracia midiática começou a se formar nos anos 1960 nos EUA. Ronald Reagan é o símbolo desse fenômeno. Hoje as redes sociais são soberanas no processo transformando eleitores em seguidores. Isso aconteceu primeiro com as blogueiras de moda que “até 2013, a referência para dizer se uma blogueira era ou não uma ‘blogueira de sucesso’ eram os números de acesso por mês em seu blog. A partir de 2014, a métrica mais valiosa são os números de seguidores no Instagram”.[11]
Como a mídia já havia colonizado a política há muitos anos, forçando os políticos a dialogarem com o entretenimento e as tendências midiáticas, o sucesso das blogueiras que se tornarão influenciadoras incitou os políticos a seguirem o mesmo caminho. Agora a métrica para observar a força de um político vem se tornando o número de seguidores que tem no Instagram, no X ou no seu canal no YouTube.
Sabemos que a própria tecnoestrutura das redes é fruto de um projeto econômico que buscava mercantilizar a atenção, produzindo, portanto, uma discussão rasa e simplificada, alimentada por uma imensa carga emocional. Assim, a política, que por natureza exige um debate mais sério e aprofundado, é prejudicada em sua essência. Como a esquerda poderia vencer essa batalha?
Toda a lógica do debate foi posta pelo inimigo. A utopia de que a internet iria democratizar o debate político não aconteceu, até porque existe uma internet para cada um. Recebemos os conteúdos que mais gastamos tempo olhando, comentando e compartilhando. É a economia da atenção. Deste modo, os que fabricam mais conteúdos, os que possuem os algoritmos ao seu favor, os que produzem um discurso cada vez mais simples e de rápida compreensão (propagável), vencerá.
Essa celebretização da política, um caminho inevitável por conta da lógica das redes, prejudica a democracia. É mais fácil saírem daí tiranos, déspotas e ditadores narcisistas que conceder ao povo o poder de fato.
A atitude de Lula para regular o TikTok é uma ação em defesa da política. Independentemente da rede ser chinesa, estadunidense ou europeia, a lógica da tecnocracia que a produziu é antidemocrática por prejudicar ou até mesmo promover a eliminação do debate político. A reprodução em massa do que é mais visível invisibiliza pautas fundamentais (as raízes do problema) para o desenvolvimento do país.
É da natureza da imagem excluir. Só se torna visível aquilo que o pintor, o fotógrafo, o cineasta etc. decidiram que deveria ser visto. Quando a política se resume à imagem, no mundo digital em rede, somente o que é propagável é visto. E para se tornar propagável é preciso se submeter às regras de propagação das redes sociais. A discussão política democrática, ao se submeter à lógica das redes, corre o sério risco de desaparecer. E o que se sonhava em ser uma Ágora moderna se tornou a sua sentença de morte.
Não sei se toda essa intervenção das Big Techs na política tenha dado um golpe fatal no capitalismo, como acredita Varoufakis, mas que causou uma pane na democracia liberal causou. A ascensão da extrema direita é um exemplo claro disto. A regulamentação das redes é uma boa atitude para se salvar a democracia, mas a questão que fica é: que democracia iremos construir a partir daí?
[1] TORRES, E. C. Economia e carisma da indústria cultural da celebridade. In: FRANÇA, V.; FILHO, J. F.; LANA, L.; SIMÕES, P. (orgs.). Celebridades no século XXI. Porto Alegre: Sulina, 2014, p. 74.
[2] MEYER, T e HINCHMAN, L. Democracia midiática. São Paulo: Loyola, 2002, p. 129.
[3] MARTINO, L. e MARQUES, A. Política, cultura pop e entretenimento. Porto Alegre: Sulina, 2022, p. 72.
[4] VAROUFAKIS, Y. Tecnofeudalismo. São Paulo: Planeta do Brasil, 2025, p. 38.
[5] Id.
[6] SIMÕES, P. O poder de afetação das celebridades. In: FRANÇA, V.; FILHO, J. F.; LANA, L.; SIMÕES, P. (orgs.). Celebridades no século XXI. Porto Alegre: Sulina, 2014, p. 215.
[7] MEIMARIDIS, M. Séries de conforto. Curitiba: Appris, 2023, p. 99.
[8] BRAGA, S. e CARLOMAGNO, M. Eleições como de costume? Uma análise longitudinal das mudanças provocadas nas campanhas eleitorais brasileiras pelos impactos das tecnologias digitais (1998-2016). In: MAIA, R.; PRUDENCIO, K.; VIMIEIRO, A. C. (orgs.). Democracia em ambientes digitais. Salvador: Edufba, 2018, p. 19.
[9] SILVA, S. e MARQUES, F. Diva e soberana do Twitter: a construção da imagem de Dilma Rousseff pelo perfil fake Dilma Bolada. In: MAIA, R.; PRUDENCIO, K.; VIMIEIRO, A. C. (orgs.). Democracia em ambientes digitais. Salvador: Edufba, 2018, p. 101.
[10] TOREZANI, J. As selfies do Instagram. Ilhéus, BA: Editus, 2022, p. 120-121.
[11] KARHAWI, I. De blogueira a influenciadora. Porto Alegre: Sulina, 2022, p. 177-178.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.