RECONHECIMENTO

Alguns dos nossos heróis de verdade – Por Mouzar Benedito

Há guerreiros indígenas que lideraram seus povos para enfrentar o domínio europeu

Raoni, líder caiapó, virou lenda viva.Créditos: Fernando Frazão/Agência Brasil
Escrito en OPINIÃO el

Estive pensando nos heróis esquecidos da História do Brasil. São muitos, e quase todos só são conhecidos nos locais onde viveram, ou nem isso. Eu gostaria de conhecer a história deles todos ou, pelo menos, de um monte deles, e já pensei em escrever um livro sobre nossos heróis indígenas, mas não tenho tanto conhecimento para isso. Outro seria dos heróis negros, de que também não sei muito, mas hoje aqui o assunto são os heróis indígenas. Sei só um pouco de alguns deles.

Há guerreiros indígenas que lideraram seus povos para enfrentar o domínio europeu, embora aqui seja mais fácil encontrar quem saiba um pouco de Tupac Amaru, líder Inca.  Alguns dos nossos “Tupac Amarus” são reconhecidos pelo menos em seus estados, como é o caso de Sepé Tiaraju, no Rio Grande do Sul, e Ajuricaba, no Amazonas. Mas quem já ouviu falar de Mandu Ladino? Pois é. Quase ninguém. Talvez algum piauiense. Aliás, o próprio Sepé Tiaraju teve um parceiro de liderança de seu povo que caiu um pouco no esquecimento, Nicolau Neendiru.

Ajuricaba é um nome festejado no Amazonas. Líder dos Manaos (nação indígena que deu nome à capital do estado), Ajuricaba revoltou-se contra os portugueses e negou-se a aceitar a situação de escravizado. Os Manaos tinham um acordo de convivência pacífica com os portugueses, mas eles mataram traiçoeiramente o pai de Ajuricaba, e ele procurou apoio dos holandeses que viviam no atual Suriname, conseguiu armas e liderou ataques a missões lusitanas no rio Negro.

Depois de algumas negociações de paz que não duraram muito, os portugueses começaram o que chamavam de “guerra justa” contra os Manaos, em 1727. Conseguiram prender Ajuricaba e alguns outros líderes e tentaram levá-los a ferros para Belém, onde seria vendido como escravo. Os indígenas tentaram uma rebelião no barco, mas falharam e, segundo a história oficial, ele e outro líder pularam acorrentados ao rio, preferindo morrer a serem escravos. Mas há também uma história de que ele teria sido jogado acorrentado no rio.

Interessante é que existe uma cidade chamada Ajuricaba, mas não no Amazonas, e sim no outro extremo do Brasil, o Rio Grande do Sul, onde há também duas cidades homenageando um herói indígena, Sepé Tiaraju. São as cidades de Tiaraju e São Sepé. Então, o herói virou santo popular... São Sepé!

Na história oficial a gente estudava de forma superficial os chamados “Sete Povos de Missões”, localizados no Rio Grande do Sul. Eram sete cidades que se tornaram ruínas depois de destruídas pelos colonizadores (ô, instituição maldita! Colonizadores são uma praga). A mais conhecida delas, no Rio Grande do Sul, é São Miguel das Missões. Mas não era só no Brasil atual que tinha cidades como essas, havia também na região de Entre Rios, na Argentina (as ruínas de San Ignácio são famosas), e no Paraguai (aqui as ruínas mais famosas são as de Trinidad).

Criadas pelos jesuítas, eram cidades muito avançadas como poucas na América, nos séculos XVII e XVIII. Bons escultores e pintores, e bons músicos, os Guaranis se organizaram bastante e seu modo de vida era avançadíssimo. Antes de qualquer lugar, lá já funcionava a semana de 5 dias de trabalho, mas as folgas não eram sábado e domingo, eram quarta e domingo. O dia de trabalho terminava às 16h. Orquestras tocavam para os trabalhadores ouvirem enquanto labutavam. Aliás, suas orquestras eram as melhores da América. Era uma sociedade tão avançada que mereceu um livro de autoria do suíço Clóvis Lugon, intitulado “A República Comunista Cristã dos Guaranis – 1610-1768”, com relatos obtidos em documentos históricos de testemunhas como o padre tirolês Antônio Sepp (1691-1733), fundador da Missão de São João Batista. Foi publicado inicialmente em francês, em 1949, e depois em português, na década de 1970. Vale a pena ler, mas hoje em dia só é encontrável em sebos.

Em 1750, portugueses e espanhóis assinaram o Tratado de Madri, determinando que o atual estado do Rio Grande do Sul ficaria para os portugueses e a chamada Banda Oriental (Uruguai), ficaria para os espanhóis. E com um “detalhe”: toda a população das tais sete cidades localizadas no Brasil atual teria que se mudar para regiões dominadas pelos espanhóis, como os atuais Paraguai e Argentina. E mais: tinham que ir embora deixando para trás tudo o que possuíam: suas cidades, seu gado...

O povo Guarani se levantou, liderado por Sepé Tiaraju e Nicolau Neendiru e teve que enfrentar os exércitos poderosos de Portugal e Espanha. O cavalo de Sepé Tiaraju caiu durante uma batalha e ele foi capturado. O governador português se encarregou pessoalmente de sua execução. É um herói popular merecidamente festejado pelos gaúchos.

Um parêntese. Segundo alguns autores, o termo gaúcho surgiu na província de Santa Fé, na Argentina, para designar moços perdidos, vestidos ao estilo charrua, que assaltavam estâncias de gado (na língua charrua o termo significa guerreiro nômade).

Mas há outras versões e numa delas os primeiros gaúchos da região foram sobreviventes do massacre dos guaranis, que se tornaram cavaleiros errantes e se espalharam pelos Pampas (em guarani, o significado é outro: gau (cantar triste) chê: (homem)); mas tem quem diga que vem do araucano (amigo) e até do quéchua (pobre, indigente, órgão). Podem achar improvável, pois o kéchua é uma das línguas faladas pelo povo Inca, mas a própria palavra pampa, que designa a região, vem dessa língua, com o significado de planura, campo.

Mandu Ladino é menos conhecido e reconhecido. Era um menino de um povo de língua cariri chamado “índios abelhas”, porque conviviam muito bem com as abelhas da região, no Piauí, perto do rio Parnaíba.

Quando começou a expansão da pecuária pelo sertão nordestino, a matança de índios virou rotina na região, para tomar suas terras. Por volta do ano 1700, esse menino e uma irmã viram sua aldeia ser exterminada. Mataram quase todo mundo, inclusive seus pais.

Ele tinha 12 anos, e foi levado para uma missão religiosa dos capuchinhos, no Sertão da Paraíba. Lá, foi batizado com o nome de Mandu. Manuel era difícil pronunciar para os povos de língua tupi, e pronunciavam Mandu. Ele não era tupi, mas os padres usavam essa língua, como uma espécie de língua geral.

Na missão, aprendeu a falar português, daí passou a ser Mandu Ladino, pois ladino, além de sinônimo de esperto, é como os portugueses chamavam indígenas e negros que falavam português.

Um dia chegou à missão um padre daqueles fanáticos, que consideram tudo da cultura indígena como coisa do demônio. E queimou objetos sagrados deles, obrigando todos eles a ver a destruição, sob a mira de armas. À noite, o padre viu também os objetos de suas crenças cristãs serem queimados como ele queimou os indígenas. A igreja, com as imagens dentro, foi incendiada.

Mandu fugiu com um grupo, em direção ao Piauí, para voltar à região de suas origens. O grupo foi perseguido, muitos morreram, e lá ele foi preso e escravizado. Rebelde, era muito torturado. E o morticínio de índios continuava, para se apropriarem de suas terras, que dariam lugar ao gado. Mas Mandu escapou da escravidão e conseguiu unir vários povos indígenas para combater os brancos escravagistas, que ele odiava com muita razão.

Ganhou várias batalhas, mas o poderio militar do colonizador acabou vencendo: ele foi morto enquanto atravessava a nado a foz do rio Parnaíba. Mandu Ladino é um nome que merece ser recuperado para a memória do povo brasileiro, especialmente dos povos indígenas.

O morticínio causado pelos colonizadores não acabou. Persistiu e está aí até hoje. Marçal de Souza, líder guarani assassinado a mando de fazendeiros do Mato Grosso do Sul no final do século XX é um exemplo. Mas há muitos. Continuam matando indígenas na Amazônia, no Centro-Oeste, no Nordeste e mesmo no Sul, para se apropriarem de suas terras. E não indígenas também. Suas lutas continuam sendo muito atuais, enfrentando organizações poderosas de grileiros, devastadores de florestas, criadores de gado... E até legisladores que inventaram ou apoiam uma coisa esdrúxula chamada “marco temporal”.

Viva Mandu, Viva Ajuricaba, Viva Sepé Tiaraju, Viva Nicolau Neendiru e todos os que lutaram e lutam contra a dominação, contra a escravidão, contra a devastação, contra a impunidade de assassinos que se dizem “pessoas de bem”... . Não dá para citar todos aqui, então homenageio todos eles na figura de Raoni, líder caiapó que já virou lenda viva.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.

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