Sobrava tempo e faltava coragem ao adolescente de canelas finas, o Jessé. O garoto bom de batuque e de gogó queria se aproximar do ídolo, mas como? E se conseguisse, diria o quê?
O fã acompanhava a vida do cantor, por sorte, morador do mesmo bairro. Seu Hildimar não era apenas um portelense, mas sambista e integrante de destaque da Escola de Osvaldo Cruz. Titular absoluto da Campeã das Campeãs.
Naquela tarde, Jessé viu seu Hildimar, de chapéu, calças e sapatos brancos, entrando no ônibus que ia de Del Castilho para o centro do Rio. Até hoje ele não sabe de onde veio a coragem, tampouco a velocidade. Jessé correu, quase voou e pousou lá dentro, antes do motorista engatar a primeira.
Enfim, destravou a língua.
— Seu Hildimar, sou o Jessé.
— Muito prazer, meu filho.
— Há tempos quero lhe mostrar um samba, posso?
— Leva aí.
Eram os versos de sua primeira música, que ainda nem estava pronta, mas já tinha refrão. Jessé não desafinou e lembrou dos poucos versos. Mesmo assim, o nervosismo e o medo de uma reação negativa do ídolo fizeram o jovem descer sem nem se despedir.
Ainda no ônibus, o veterano ria sozinho.
Aquele foi o primeiro de muitos encontros. Não é exagero dizer que Jessé quase controlava a agenda de Hildimar.
O adolescente não perdia a chance de puxar conversa com seu ídolo e Hildimar se encantava com o jovem portelense.
Os dois se encontraram mais, se viram mais, cantaram mais.
O veterano aconselhou, apresentou os parceiros e levou o pupilo à quadra da Azul e Branco. Os trinta carnavais de diferença nunca afastaram padrinho e afilhado.
Aos 70, Hildimar que já vivia há décadas com Olinda, casou na quadra da Portela. E o padrinho foi Jessé. Agora, sim, compadres.
Hildimar, mais conhecido como Monarco, que alguns chamavam de Monarca do Samba, foi líder da Velha Guarda da Portela e parceiro de Paulinho da Viola, morreu em 2021.
Jessé é Zeca, o Zeca Pagodinho.
**
Nando também não tinha valentia para falar. Então escreveu:
Mario, leio tudo que tu assinas, gosto das traquinagens, das brasileirices, queria saber mais de ti. Aprender um pouco dos macetes. Sei que andas ocupado, mas te acalmes, não tenho pressa, só peço que leias. Leias e se não quiser, nem precisa responder. Mas, por favor, leia.
Mario não leu, guardou o livro no fundo da gaveta, até que numa faxina reencontrou Os Grilos Não Cantam Mais. Não se empolgou com o livro, mas enxergou um escritor.
Sem medo da verdade, Mario respondeu mais ou menos assim.
Desculpe a demora, como você disse, ando mesmo ocupado. Digo então: se tem de 30 a 35, não insista, não vai longe. Dedique-se a uma profissão, tem muito concurso por aí. Já se está rodeando os vinte anos, de vinte a vinte e cinco, como imagino, lhe garanto que seu caso é bem interessante, que você promete muito. E o livro, nesse caso, é bom.
O melhor nem foram os elogios, Nando vibrou mesmo porque tinha apenas 17 anos. Depois de outras mensagens, juntou as economias, viajou para São Paulo e conheceu o ídolo num boteco da São João.
Dois apaixonados pelas palavras que se viram pouco e se escreveram muito. Entre 1942 e 1945 foram tantas cartas que viraram livro.
À mão ou à máquina, histórias de vida e arte; conselhos, segredos, pedidos de ajuda, palpites no texto. Os envelopes bem fechados e selados viajavam entre a Barra Funda, do Mario, e a praça da Liberdade, do Fernando. Os finais merecem releitura.
— Fico por aqui. Estou com dor na mão
— O papel está acabando e são quase cinco da manhã.
— Não zangue com essa carta. Eu não tenho medo das palavras e já te quero muito bem.
— Dezenove anos... que coisa fantástica ter dezenove anos!
— O espírito mineiro já nasce maduro, faz com que a gente aos dezenove anos às vezes se sinta um velho. Você é que parece ter 19 anos.
— Vou interromper. Me avisam que o banho está pronto.
— Um abraço, querido. E não esqueça, beba mais leite. Deus te dê muita saúde e, caso contrário, dinheiro para pagar o médico.
— Escrever, não, mas receber carta é uma gostosura quando a gente está imobilizado numa cama. Vale mais que as visitas dos amigos, principalmente porque as cartas não fumam e não empestam o quarto do enferminho.
O ponto final na correspondência surgiu apenas com a morte daquele que já era chamado de Papa do Modernismo.
Mario? Mario de Andrade.
Nando? Fernando Sabino.
**
Elí começou a cantar na Boi Passado em troca de prato feito. Em pouco tempo pediu picanha. Depois exigiu cerveja, sobremesa e cachê.
A Churrascaria lotava. Caminhoneiros, frentistas e as moças da beira de estrada, todos queriam conhecer a voz que cantava Alcione, Amado Batista e Roberto Carlos.
Um dia o cantor emudeceu bem na hora do bis. A razão do tropeço tinha nome e história. Ali, na fila do gargarejo, mastigando polenta, um dos cantores mais populares e talentosos do Brasil. O mito já tinha ouvido falar de Eli, a Estrela da Churrascaria, e quis ver de perto.
A história, contada aqui e talvez aumentada ali, até hoje sobrevive. Depois do bis, Ron, esse era o apelido do artista consagrado, elogia a voz e o jeito de Eli. Dá ainda um beijo na testa do pupilo e revela que ele também cantou por comida, no início da carreira. Nasce a amizade.
Ron viaja pelo mundo, ganha até música de Chico Buarque. É cada vez mais respeitado pela potência da voz e carisma. Pra muitos, o melhor do Brasil.
Eli não se livra do cheiro de carvão e gordura. Mas insiste. Quer seguir os passos de Ron e só a ele admite contar seu projeto mirabolante: empenhar o carro velho e o apartamento modesto e com o dinheiro reservar o Canecão - a maior casa de espetáculos da época - para uma apresentação particular? Só ele e os convidados? Seria um jeito de virar notícia e tentar se livrar do preconceito de cantor de churrascaria. Ron respondeu em duas palavras: conta comigo!
Numa terça-feira de 1985, duas mil pessoas lotaram o Canecão e muitas outras não puderam entrar. Mais do que recuperar o dinheiro investido, Eli despertou curiosidade e virou notícia: Quem era esse homem que reservava o Canecão para realizar uma fantasia? Diante do frenesi, o dono da casa de shows programou nova apresentação, dessa vez com cachê.
Eli, virou Elymar Santos e terminou o show histórico cantando Conceição junto com Ron, ou melhor, Cauby Peixoto.
No dia seguinte, o Jornal Hoje apresentou reportagem sobre Elymar. A apresentadora Leda Nagle encerrou a edição com uma frase: Elymar, o audaz.
Bem que Fernando, o sabido, ensinava:
No fim tudo dá certo, se ainda não deu é porque não chegou ao fim.
*Essa crônica faz parte do livro Birinaites, Catiripapos e Borogodó, semifinalista do prêmio Jabuti 2024. O texto foi reescrito, atualizado e ganhou novo título.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.