“As plataformas digitais se tornaram a ‘passarela’ para expansão da ideologia no Brasil e de forma global”, conforme análise do pesquisador Lucio Massafferri Salles, doutor e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Para Massafferri, a internet é a grande revolução tecnológica, no campo da comunicação, desde a invenção da escrita. E a marca dessa extrema direita é a habilidade neste novo campo da comunicação, a partir da consolidação das novas tecnologias. Ele diz que a mídia tradicional perde espaço pela velocidade, intensidade e presença da massa do digital, e a partir do momento que essa massa cresce, quando as pessoas passam a ter o seu lugar de fala, o espaço de poder passa a ser minimamente escutado. É assim que o meio tradicional vai começar a sumir.
“Ao examinar a extrema direita nesta era que vivemos, temos que estar cientes de que todo o campo da internet foi e ainda é influenciado pelas grandes cabeças pensantes do Vale do Silício, na Califórnia, nos EUA. São homens brancos, CEOs, empreendedores, criadores de chips, nanotransistores, mas que têm como característica serem ‘bem-nascidos’, muitos oriundos do MIT, cujos olhares sobre a vida social - até então entendida -, do mundo das relações presenciais, era um universo que eles não curtiam mais. A ideia da plataforma de rede social vai se propagar como uma alternativa social, muito mais que uma possibilidade”, explica o pesquisador que também é especialista em psicanálise e membro do Núcleo de Pesquisa e Reflexão sobre Cultura Digital e Ensino Médio (CDEM-PUC/SEEDUC/FAPERJ).
A nova extrema direita há 20 anos já surgia com a internet pública
Segundo o pesquisador, já em 1994, quando ocorreu o advento da internet pública no Brasil, as cabeças pensantes do Vale do Silício tinham projetado a ideia de encontrar recepção em pessoas que passaram a dedicar horas de seu tempo a viver postando e interagindo nas primeiras salas, assim como em plataformas de redes como o 4chan, criado em 2003, onde as pessoas anonimamente podiam postar, fazer manifestações. Para Massafferri, o anonimato nas plataformas reforçou a ideia de espaço sem lei para propagação das manifestações iniciais da ideologia.
“Ali começa a surgir uma recém-fundada rede que ligava milhões de pessoas às tais postagens que vão se tornar proibidas, de memes racistas, nazistas, homofóbicos, misóginos, situação que foi naturalizada, pois na plataforma havia uma massa de pessoas que ficava no anonimato, vivendo suas insônias, protegidas do olhar da censura do outro, podendo se manifestar da forma e com que quisesse. Sob esse aspecto era um espaço de certo modo acolhedor, sem reprovação ou censura, sem lei, em que não obedecer era permitido. Eu faço essa observação para que se perceba a nascente dessa chamada nova extrema-direita, que essa grande virada da grande rede teve sua aurora e berço nesse momento. Isso inclui os mais velhos, que hoje já estão na faixa etária entre 50 e 60 anos, pois seus filhos já nasceram dentro daquele ambiente”, afirma.
Judiciário e Legislativo não estão entendendo o que acontece
O discurso do ambiente da liberdade da expressão absoluta faz com que os regramentos e regulamentações percam sua funcionalidade, como é o caso do Projeto de Lei 2630/2020, que visa regular o uso das mídias sociais, conhecido como PL das fakenews, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que está paralisado no Congresso Nacional por conta do lobby das grandes plataformas digitais.
Lucio Massafferri acredita que no Brasil, tanto o Judiciário quanto o Legislativo ainda estão atrasados no entendimento sobre como funciona a dinâmica da propagação das fakenews e do ambiente de desinformação.
“Ainda temos dificuldades para a existência de normas e leis que regulem as fakenews, a disseminação de mentiras, a criação do ambiente de desinformação, hoje é a coerção que se usa, olha a luta empreendida pelo governo e o Supremo Tribunal Federal (STF) para combater isso, com esse relativo atraso do Judiciário, e até do Legislativo. Ambos ainda não construíram uma interlocução como se deveria, com a Cibernética e a Psicologia, para obter conhecimentos sólidos sobre essas experiências de persuasão, fabricação de consentimento e influência sobre as mentes nessa ‘Nova Era’. A massa de dados e informação, são como uma avalanche de linguagem que impacta nas mentes solitárias, divididas em bolhas e sub-bolhas, no momento em que vivemos. O DNA dessa extrema-direita se fertilizou justamente nesse solo”, adverte.
Uma nova extrema direita que usa velhas técnicas em um novo ambiente comunicacional
No Século XX, o rádio, a partir dos anos 1930, foi o veículo de massa que proporcionou a difusão de um discurso de ódio, capaz de unificar populações em torno do nazifascismo na Alemanha e na Itália. Hoje, a extrema-direita usa a potência da internet para a disseminação do que chamam de sua narrativa. Massafferri faz uma alusão ao período dos tempos atuais com o período que antecedeu a 2ª Guerra Mundial. E considera que os chefões das plataformas digitais permitem e reproduzem técnicas e linguagens do período.
“Eu costumo dizer que se o grande marco da internet tivesse acontecido em 1934, possivelmente o nazifascismo teria ganho a 2ª Grande Guerra Mundial. A ideia crucial para esse sistema supremacista e autoritário, que aplica a tese do “dividir para conquistar”, é que você precisa deprimir para criar bolhas. Hoje se está aí com a realidade de execução desses instrumentos de guerra sobre as mentes das pessoas, à medida que se aplica artefatos dessas linguagens mescladas, criando grupos e bolhas, onde se pode repercutir tal como numa câmara de eco praticamente todas essas microideologias e propagandas. Os indivíduos se embolham e defendem seus espaços como se estivessem se protegendo de uma ameaça de aniquilação das suas próprias identidades. Então, acredito que essa nova extrema-direita tem o seu DNA, sim, nas ideias projetadas e executadas pelos grandes CEOs do Vale do Silício. Não é à toa que eles cultuam a liberdade de expressão, tal como uma bandeira calcada na Declaração da Internet e da Cibercultura (em 1996), uma liberdade total e plena. Eles têm essa declaração de 1996 como máxima”, detalha.
Manipulação de corações e mentes
Episódios recentes como os ataques ao Capitólio, sede do legislativo dos EUA, em 06/01/21, e do golpe fracassado no Brasil, em 08/01/23, mostram o grau de manipulação da extrema-direita sobre seus militantes, que foram condicionados a exercerem o culto da personalidade de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, como aconteceu no passado com Hitler e Mussolini.
“Recorro ao episódio do Capitólio, quando você observa o ‘cidadão comum’, com sua bandeira, se declarando patriota, arremessando tijolos na vidraça de um prédio que é a sede do órgão máximo do país, acreditando que ao fazer aquilo ele contribuiria para uma solução, em um ambiente de ‘Mad Max’, onde quem manda é o mais violento. Isso é quase uma reprogramação das mentes dentro de uma cultura do ódio e da ignorância. Muitos desses são ignorantes mesmo, eles são conduzidos como num mundo paralelo, onde aquele tipo de manifestação os fosse levar para uma ‘terra melhor’. Erroneamente, se tem uma ideia de que todas essas pessoas orquestram golpes de estado, porém os cabeças nunca vão à frente, ainda mais numa era como essa de alta tecnologia digital informatizada. Os cabeças não vão na frente, ficam por detrás para operacionalizar os peões”, avalia Massafferri.
O pesquisador considera que há toda uma gama de especialistas que dão suporte para a extrema-direita na elaboração de estratégias e ações de campanha para atingir seus objetivos e públicos.
“Agora, fatores importantes como montar essas estratégias vão compor essa construção. São os cientistas políticos, profissionais da Ciência da Computação, militares, profissionais da Ciência da Psicologia, para a produção de propaganda que possa atingir uma camada baixo limiar da consciência, subliminar, uma espécie de “inconsciente digital” da população, não sendo esse um conceito que pode ser considerado algo muito espantoso, que altere a ideia nuclear do inconsciente freudiano, de modo algum! Isso é pautado na própria distorção da apropriação que o sobrinho do Freud, Edward Bernays (propagandista do anticomunismo nos EUA, no início da Guerra Fria, nos anos 1950) fez do conceito de inconsciente, visando a implementação de estratégias de propaganda capazes de atingir medos e desejos, fabricando consenso e consentimento. Ou seja, no momento que você detecta medos e desejos que as pessoas deixam como rastro de milhões de traços na grande redes, os seus vestígios, as suas inclinações registradas, essa atual máquina de leitura com inteligência metódica, artificial, é capaz de perfilizar a pessoa. Ao longo de um tempo, essas pessoas têm uma descrição minuciosa que outras pessoas próximas não conseguem ter, tal é a gama de informações, tendências e inclinações que estão armazenadas neste grande bigdata”, descreve.
Massafferri continua, “Diante disso percebemos como é fácil elaborar, para quem tem a tecnologia, o desejo e a ânsia do poder do controle e domínio, viabilizar estratégias de propaganda e persuasão, usando esse tipo de instrumental, o marketing digital, a comunicação preditiva, ou target direcionado para grandes públicos, individualmente. O Facebook já mostrava isso em 2006, quando descobriu a máquina de engajamento na plataforma com a criação do feed de notícias personalizado”.
Neoliberalismo e extrema direita
Lucio Massafferri é autor do livro “A arquitetura do caos – guerra híbrida, operações psicológicas e manipulação digital”, lançado em 2023. Na obra, o pesquisador usa o terreno da “Psicopolítica” para discorrer sobre como é arquitetada e realizada a tomada de poder em golpes de estado, tendo como alavancagem o campo virtual, com as mídias e redes sociais. A instrumentalização das chamadas guerras híbridas visando a caotização e o abalo de regimes políticos é uma das principais caracteristicas dessa contemporânea extrema-direita.
“Essa extrema-direita é voltada para a destruição do território em cujo solo se pretende erigir um tipo de ordenamento sociopolítico em que a força prevalece. Em que a lei da meritocracia de quem já é rico prevalece, do cara que é ‘bem-nascido’, do sujeito que manda, podendo dizer tudo o que pensa não observando prejuízos que isso causa a terceiros ofendidos, fomentando a ausência de respeito de um para com o outro. Esse campo, da extrema-direita, já sabe manejar isso como método, se apoiando numa rede horizontal, por conta da velocidade e necessidade dos ruídos, conflitos e ressentimentos constantes, que gerados acabam agrupando os afetos e sentimentos, formando redes em torno dessa ideia ou ideologia, a sua causa”, discorre o pesquisador.
Massafferri descreve como o uso da emoção é fundamental na cooptação de pessoas pela extrema direita.
“Qual é a diferença entre afetos e emoção? O luto é um sentimento. Ele demanda tempo para ser elaborado e organizado, possuindo uma simbologia de perda. Por outro lado, a tristeza momentânea, a emoção e a raiva são causadas a partir de um fato gerado que possa manipular isso, a manipulação das emoções, como faz essa rede de extrema-direita baseada na emoção do indivíduo, funcionando na base da explosão emocional. Engaja com ressentimento, ódio e raiva. A rede forma ondas de indignação, chamadas pelo filósofo sul-coreano, Byung Chul Han de Shitstorm, as tempestades de merda”, citando o filósofo oriental radicado na Alemanha, autor de “Psicopolítica” e “A sociedade do cansaço”, seu livro mais conhecido.
A Engenharia do Consentimento
É claro e evidente que as Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (NTICS) são um campo fértil para atuação dessa dita nova extrema-direita que incorporou premissas liberais ao seu discurso, como analisa Lucio Massafferri.
“Diante dessa instrumentalização, desse tipo de arma, baseado em linguagem, com acesso às mentes de forma individualizada ou coletiva, vale tudo. Usar robô, conta falsa e perfilização. E quando se tem o objetivo de destruir um campo onde a regulação é o respeito, a empatia e o acolhimento, fica óbvio que essas premissas vão ser descartadas num ambiente de guerra, como faz a extrema-direita, valendo praticamente tudo para que se possa alcançar o objetivo do domínio e vitória. Daí você percebe a aplicação da chamada “engenharia do consentimento ou consenso”, uma engenharia baseada na propaganda, na persuasão instrumentalizada nas e pelas linguagens. Uma pessoa, antes religiosa e pacifista, pode se tornar um belicista porque ela passa a ter medo, impulsionado e amplificado por trabalhos de persuasão desse tipo. Esse é um conceito que existe há tempos, sendo discutido por pesquisadores da Ciência Política como Walter Lippmann, um dos primeiros a aplicar o conceito, assim como hoje ainda faz o linguista Noam Chomsky no seu livro “Mídia”, mostrando como essa teoria do Consentimento está presente nas democracias liberais, dessa Era Digital, como estratégia”. Chomsky analisa com preocupação o como que a Engenharia de Consentimento atua na mudança de comportamento dos indivíduos em sociedade.
Falta uma organização horizontal para a esquerda progressista para ser o contraponto a essa realidade
Apesar da existência de um ecossistema comunicacional que agrega comunicadores das mais variáveis tendências de esquerda, a realidade é que esse campo não consegue ainda ter um discurso potente e unificado e que possa ser massificado para ser um contraponto para combater a extrema direita.
“Acredito que falta para o chamado campo ideológico progressista uma reunião em rede, horizontalizada. Ao dito campo de esquerda, serei nietzschiano ao afirmar isso: falta o desejo, uma vontade para organizar esse contraponto. Até existe uma organização verticalizada, mas falo de uma organização de mútuo apoio, formando uma rede para que se construa a médio e longo prazo, não só uma conscientização, mas uma educação. Educação para um mundo que necessita de estabilidade, de cuidado, de um mundo de pessoas que precisam se proteger, se cuidar para poder viver. De um mundo em que elementos naturais que compõem esse mundo não podem faltar sob o risco da possibilidade de vida acabar, sem a preservação das riquezas e recursos naturais. Então, tudo isso está no pacote de uma Paideia, de uma educação que essa grande rede de formadores de conteúdo, influenciadores, do campo progressista de esquerda deveria organizar para ser o contraponto de tudo isso que está aí”, reflete o pesquisador.
É preciso entender o contexto
O filósofo não se vê como um marxista, mas acredita que falta ao campo da esquerda entender da necessidade de relacionar o chamado conceito de Luta de Classe a realidade do atual contexto das pessoas, em um mundo digital.
“Hoje, tem especialistas dizendo que falamos pouco sobre a Luta de Classe, da importância do trabalhador se posicionar sobre a sua realidade. Porém, mais importante do que isso, é entender esse contexto da Luta de Classe na atualidade, com o jovem, com a moça, com o cara e o trabalhador, alugando a bicicleta de ‘X’, para entregar a comida que é feita em ‘Y’, na casa de ‘W’, no horário que ela quer, deitada com seu smartphone, usando um aplicativo, em bolhas, recebendo informações com um certo viés, dia e noite, sendo doutrinados e persuadidos. Nós estamos em uma outra Era, se vivos fossem, Freud e Marx, talvez levantassem essa bandeira da necessidade de entender mais de perto essa revolução tecnológica do campo da comunicação, pensando junto a questão do trabalho, com a questão do trabalho psíquico, da economia psíquica, e a questão da persuasão e do impacto da palavra, das linguagens na mente e nas mentes do coletivo, e a sua instrumentalização como possibilidade de formação psicossocial nessa Era Digital”, finaliza.
**Lucio Massafferri possui um canal no Youtube onde debate questões relacionadas à internet, tendo já uma série chamada “Reagindo à Máquina do Caos e uma outra série sobre Edward Bernays. Para saber mais acesse o Portal Fio do Tempo.