CINEMA

“Mickey 17”, diretor de “Parasita” volta a Hollywood – Por Cesar Castanha

Joon-Ho é capaz de entregar um cinema pop com uma forte marca de estilo próprio e uma boa leitura do contemporâneo

Robert Pattinson.Créditos: Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

Bong Joon-Ho não é um diretor estranho ao cinema estadunidense. Além de ter vencido o Oscar por “Parasita” (2019), o primeiro e até agora único filme em língua não inglesa a levar a estatueta de Melhor Filme, o diretor coreano já realizou “Expresso do amanhã” (2013) e “Okja” (2017) dentro da indústria. Cada “visita” de Joon-Ho a Hollywood conta sua própria história, reiterando o roteiro de um talentoso e respeitado diretor estrangeiro, com estilo único dentro de um cinema pop e posições políticas nada sutis, relacionando-se com um sistema criativo focado em resultados econômicos e protetor de uma higienização política – em que todos são convidados a falarem a linguagem do progressismo, mas não tanto.

Com “Mickey 17”, a terceira experiência de Joon-Ho em Hollywood, a situação não é diferente. Se “Expresso do amanhã” representava o resultado de embates criativos entre Joon-Ho e o infame produtor Harvey Weinstein, e “Okja” é parte de um investimento inicial da Netflix de convidar cineastas renomados e oferecer algo como uma carta branca para fortalecer o streaming em uma disputa de mercado direta com os estúdios que ainda priorizavam as salas de cinema, “Mickey 17” parece ter causado algum constrangimento ao cair no colo dos executivos da Warner, que produz e distribui o filme, em pleno ano eleitoral.

Sendo o primeiro filme do diretor depois do imenso sucesso de “Parasita”, deve ter parecido algo como uma aposta fácil a um grande estúdio investir em qualquer projeto que o interessasse. Esse seria a adaptação do romance “Mickey7”, de Edward Ashton. Com o filme finalizado para o lançamento em março de 2024, foi adiado um ano, inicialmente para janeiro de 2025, uma posição no calendário anual muito estranha para um realizador que tinha acabado de fazer história no circuito de premiações. Ainda que outros filmes também tenham sido adiados devido à greve do sindicato de atores nos EUA, a extensão do adiamento de “Mickey 17”, especialmente considerando o histórico recente de Joon-Ho, levanta suspeitas.

O filme, enfim lançado nos cinemas nesta quinta-feira, dia 6 de março, apresenta algumas pistas para uma possível solução desse mistério. Através da ficção-científica, e de um humor que é muito próprio a Joon-Ho, “Mickey 17” propõe uma sátira muito direta do trumpismo, explicitamente abordando a desumanização, a violência e o ímpeto neocolonialista que ao mesmo tempo criam e decorrem de uma carismática liderança autoritária e de seguidores igualmente investidos em seu projeto político. É evidente, e provavelmente o será a qualquer espectador, que Mark Ruffalo interpreta o vilão do filme, o guru político Kenneth Marshall, como Donald Trump, sem economizar nos maneirismos mimetizados do atual presidente dos EUA (os entusiastas de Marshall em “Mickey 17” vestem, inclusive, bonés vermelhos em apoio a seu líder maior, outra direta referência a Trump).

Marshall é líder e comandante de uma expedição colonial a outro planeta, visando a construção de uma nova sociedade a partir de sua própria projeção ideológica (armamentista, altamente militarizada e religiosa). O protagonista do filme é Mickey (interpretado por Robert Pattinson), a base da pirâmide social desenhada pelo projeto de Marshall, um “descartável”, ou seja, uma pessoa cuja principal função na expedição é cumprir todas as atividades de alto risco, morrendo, quando necessário, pelo bem desse projeto colonial. O trabalho de Mickey é possibilitado por uma inovação tecnológica que foi banida na Terra: a clonagem de humanos, com cópias de suas memórias. No lugar de abrir o caminho para a vida eterna, no entanto, essa tecnologia é utilizada como instrumento de trabalho repetitivo e radicalmente precarizado.

“Mickey 17” trabalha com algumas das ideias mais interessantes a aparecerem no gênero de ficção-científica nos últimos anos. O conceito de “morrer como trabalho” é uma delas e funciona como a base crítica do filme. Está nele indicado o corpo produtivo de que o fascismo depende, a suspensão de uma ética de trabalho que limita as possibilidades de produção do corpo que trabalha. Ora, se é possível para um trabalhador produzir com sua morte, por que impedir mais esse avanço do capital econômico? Aqui pode ser interessante reconhecer as metáforas com o Holocausto ou a aposta em uma “imunização de rebanho” durante a mais recente pandemia enquanto o corpo de Mickey se torna local de teste para novos vírus e o desenvolvimento de armas biológicas. O que é mais inteligente nisso, porém, é a maneira como o texto e o personagem repetidamente enfatizam o morrer como um gesto laborioso, como um trabalho repetitivo e por isso exaustivo.

É original, preciso em relação ao tipo de sátira que almeja e ao mesmo tempo muito bonito. A beleza é de uma ficção-científica que consegue habilmente juntar os pontos certos para funcionar como um comentário pertinente e tomado de uma concepção afetiva (com excessos, emoções, melodramas) do zeitgeist político e cultural contemporâneo. Pattinson deve também ser elogiado em sua abordagem interpretativa da submissão total, passividade e fragilidade social desse personagem. Essas características não aparecem como resultados genéricos da posição social de Mickey, mas como algo construído a partir de uma rede complexa, que envolve inclusive a sua apatia e neutralidade política. É o desinteresse em observar os padrões de autoritarismo e violência da ascensão política de Marshall que permite a Mickey consentir em sua própria desumanização e precarização. Há uma sugestão de que a massificação do fascismo depende de um consentimento voluntariamente ignorante, a recusa em participar da política que fabrica um movimento almejando destruir a própria política, isto é, a diferença e o dissenso que fundam a própria ideia de política.

Há muitas particularidades que merecem ser destacadas em “Mickey 17”, desde a maneira como organiza a sua sátira (como os momentos farsescos de “louvor” pontuando as cenas), até o engajamento do filme com a sexualidade de seus personagens de um modo raro para o gênero. Essa riqueza de detalhes em relação ao universo adaptado é bem sucedida em fazer transparecer toda uma cultura com hábitos, morais, relações sociais próprias – semelhantes aos nossos modos, mas ainda convincentes como algo novo, parte de um outro mundo ficcional. Essa mesma proliferação de personagens e complexidade interna do universo trabalhado leva Joon-Ho a recorrer eventualmente a um didatismo. O diretor já não é alguém que tem o hábito de favorecer ambiguidades, pontas soltas ou conclusões abertas, e o cinema dele já é de certo modo preparado para isso, com um gosto por se dirigir ao ponto do filme cedo e reiterá-lo algumas vezes mais. “Mickey 17” faz isso com um pouco menos de elegância narrativa que seus filmes coreanos, o que não é um aspecto novo também de suas incursões hollywoodianas. Ainda assim, Joon-Ho é capaz de entregar um cinema pop com uma forte marca de estilo próprio e uma boa leitura do contemporâneo.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.

Reporte Error
Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar