O 1º de abril vem aí... a memória do golpe de 1964 está intimamente associada à data. Com 17 anos de idade, acompanhei o que acontecia, sem muito conhecimento sobre o que era aquilo, mas uma coisa me fez desconfiar que não era nada bom: uns dias antes, 19 de março, aconteceu em São Paulo a “Marcha com Deus pela Família”, liderada por extremistas de direita como setores da igreja católica, o integralista Plínio Salgado, a Fiesp e a deputada Conceição da Costa Neves, sempre acusada de não ser nada “família” e passou a ser aclamada como sua fiel defensora. Hipocrisia? Era o prenúncio do golpe.
Como eu via aquilo tudo? Eu não tinha a menor consciência política, só sentia que meus patrões (e outros também) não eram nada bonzinhos e fiquei com o pé atrás. Os diretores do supermercado em que eu trabalhava liberaram os empregados para participar dessa marcha. Mas tinham que ir com um chefe que fiscalizaria o tempo todo se algum empregado não aproveitaria para fingir que ia marchar com os diabólicos líderes e dar no pé. Muitos patrões fizeram isso. Não é à toa que o número de participantes foi avaliado em 500 mil.
Se nos liberavam para participar daquilo que, repito, eu não entendia o que era, mas não devia ser coisa que prestasse. E não fui.
Escrevi um pouco sobre isso no livro “1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura”, publicado em 2008, e relembro aqui, complementando o escrito na época.
Cultura inútil: sabe qual foi o primeiro supermercado da América Latina? Muita gente se engana, principalmente os mais velhos do tempo do Peg-Pag, que pensam que foi esta rede, cujo nome virou sinônimo de supermercado na década de 1960.
A resposta para esta pergunta é: o Sirva-se. Em 1954, me parece, criado pelo empresário Mário Wallace Simonsen, que não era parente do Mário Henrique Simonsen que participou com Roberto Campos da criação da política econômica da ditadura, e foi ministro durante o governo do general Figueiredo.
O Simonsen do Sirva-se era também um dos donos da Panair do Brasil (empresa de aviação de ótima qualidade, uma das melhores do mundo, com muitos voos para o exterior) e da TV Excelsior (na época, a de maior audiência em São Paulo – não havia redes de TV, eram todas emissoras locais). Interessante que ele não era golpista, mas os dirigentes que colocou no supermercado eram.
A primeira loja do Sirva-se existe até hoje, só que com o nome de Pão de Açúcar. Fica na rua da Consolação, entre a avenida Paulista e a alameda Santos, em São Paulo. A segunda loja, aberta uns anos depois, também existe com o nome Pão de Açúcar, fica na alameda Gabriel Monteiro da Silva, no Jardim Paulistano, também em São Paulo. Foi durante muito tempo a maior loja de supermercado em todo o Brasil, e considerada um modelo. Em qualquer parte da América Latina em que algum empresário resolvia abrir um supermercado, grande novidade num tempo de armazéns de secos e molhados, mandava alguém fazer um estágio nessa loja invejável.
Simonsen ficou contra o golpe militar e sofreu uma baita pressão econômica e fiscal. Claro que um dos caras mais ricos do Brasil não era de esquerda, e muito menos “comunista”, mas em 1961, quando Jânio Quadros renunciou e os militares tentaram impedir a posse do vice, João Goulart, ele engrossou a Campanha da Legalidade, liderada por Leonel Brizola. Desde então, os milicos o odiavam.
Depois do golpe, partiram para a perseguição a ele. Em fevereiro de 1965, cassaram a Panair e entregaram as suas linhas internacionais para a Varig. Não permitiram que a empresa funcionasse e mesmo sem ter credores reivindicando, decretaram a sua falência uns anos depois. As duas lojas do Sirva-se e mais uma em construção sufocadas, foram vendidas ao Pão de Açúcar, em 1965. Seus herdeiros perderam também, mais tarde, a concessão da TV Excelsior, que foi entregue à família Bloch e virou TV Manchete, e hoje é a Rede TV!.
No dia 31 de março de 1964 eu trabalhava na loja do Jardim Paulistano, e me diverti. Menor de idade, eu ganhava menos que o salário mínimo e mal conseguia pagar a pensão (depois, minha parte no aluguel de uma república) e o colégio. Isso mesmo: colégio pago, fiz o curso técnico de contabilidade à noite, pois não esperava fazer faculdade e precisava ter uma profissão. Técnico de contabilidade era o que eu podia fazer, não havia opção, e só tinha colégios particulares com esse curso, com mensalidades bem baratas. Então, fazia mais de um ano que não lia jornais, só via as manchetes nas bancas. Não tinha dinheiro. Por isso, estava mal informado e não tinha uma noção certa do que acontecia.
Ouvi no rádio o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, esbravejando contra João Goulart, e me parecia mais uma briga entre os governadores de Minas, inicialmente, e depois os da Guanabara (Carlos Lacerda) e de São Paulo (Adhemar de Barros), contra o governo federal. Só fiquei sabendo que era algo diferente disso depois de conversar com alguns trabalhadores já com alguma consciência política.
Mas a minha diversão, no dia do golpe, era ver o desespero dos ricos frequentadores do supermercado localizado no meio da alta burguesia de então. Com medo de uma revolução de verdade, esperando batalhas nas ruas e o comércio fechado, todos queriam estocar o máximo possível de comida e outros produtos. Correram em massa para o supermercado. Não cabia todo mundo, deixaram entrar um monte de gente e fecharam as portas, e formou-se uma fila enorme do lado de fora, controlada por seguranças. Quando saía um freguês, deixavam entrar outro. E assim foi o dia inteiro, até acabar tudo que havia nos estoques.
O pessoal passava pegando tudo que havia nas prateleiras, de grãos a latarias, papel higiênico, velas, fósforos... tudo mesmo. Os repositores vinham do depósito com carrinhos cheios de mercadorias que não chegavam nem a pôr nas prateleiras, os fregueses se apossavam dos produtos logo que eles entravam na loja.
Outro lado da minha diversão: o diretor, um homem autoritário, sério, mudou de papel nesse dia: virou empacotador. Os meninos empacotadores estavam sobrecarregados e o jeito foi reforçar o serviço com gente do escritório, inclusive o diretor. Detalhe: as pessoas davam gorjeta ao empacotador, inclusive a ele, que aceitava tudo.
No dia seguinte, 1º de abril, não havia nada para vender no supermercado, e nada no estoque para repor. Aí veio a notícia de que o golpe estava consumado: João Goulart foi para o Uruguai sem enfrentar os golpistas. Declarou que preferia entregar o poder do que derramar sangue de brasileiros.
E fez-se de novo uma fila na porta do supermercado, mas desta vez querendo devolver mercadorias compradas em excesso, o que não foi aceito. E me diverti nesse dia também, sem ter muita noção da trolha que viria a seguir. Sabia que não seria coisa que prestasse, pois tinha entre meus colegas alguns bem conscientes e eu conversava com eles. Mas nem mesmo eles, alguns militantes do PCB, esperavam 21 anos de ditadura, perseguições, prisões, torturas, assassinatos, violência incontida... “Bondades” cometidas em nome da “democracia”. Como uns saudosos daqueles tempos querem repetir dizendo que eles são os democratas, e nós os “inimigos da democracia”, não é?
Uma lembrança mais: Carlos Lacerda governava o estado da Guanabara, que era só a cidade do Rio de Janeiro (adquiriu o status de estado depois da mudança da capital para Brasília, e só uns anos depois se juntou ao resto do estado do Rio), e era um expoente da direita. Só que inteligente, bom de discurso... e golpista. Foi deputado e tramou golpes contra o governo Vargas na década de 1950, tentou impedir a posse de Juscelino, alegando que ele não foi eleito com maioria absoluta e fazia uma oposição golpista. Dá para lembrar de alguém dos tempos atuais, tirando a questão da inteligência?
Muito bem. No dia do golpe, ficou dentro do palácio do governo, com suas forças cercadas pelas do almirante Cândido Aragão, comandante do corpo de fuzileiros navais, fiel ao governo João Goulart, e ficou pedindo, se não me engano com um megafone, quase que chorosamente que Aragão não invadisse o palácio, porque lá havia mulheres e crianças. Quando chegou a notícia de que o golpe tinha vencido, mudou o tom, ficou corajoso, chamando Aragão pra briga. Só que Aragão foi preso, ficou durante quatro meses incomunicável e, muito torturado, perdeu um olho nesse período.
O golpe de 31 de março/1º de abril de 64 venceu, deu nisso e outras “bondades”. O 8 de janeiro de 2023 não venceu e o tom choroso do golpista ficou para depois da tentativa. Se tivesse vencido, certamente estaria dando provas de valentia e muitos dos que não aderiram teriam o destino do comandante Aragão, não é? Seriam mais 21 anos de trevas?
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